Roma e Cartago passaram os anos entre 264-146 a.C. engajados em um sangrento conflito para decidir quem governaria as rotas marítimas do Mediterrâneo. No fim Roma saiu triunfante e como bônus teve a destruição total de Cartago na conclusão da Terceira Guerra Púnica. A Primeira Guerra Púnica (264-241 a.C.) eclodiu em meio a uma acirrada disputa naval e guerras terrestres que lavaram o solo da Sicília, Córsega e Sardenha com sangue de soldados dos dois lados.
Até cerca de 260 a.C., os romanos estavam em desvantagem náutica, pegando barcos emprestados de seus aliados quando precisavam movimentar grande quantidade de tropas. Enquanto isso os cartagineses eram tidos como marinheiros experientes no mundo antigo, com vasta habilidade náutica e tendo aperfeiçoado estratégias de combate naval. Para fazer frente a isso, Roma decidiu que precisava de uma frota e necessitavam de embarcações à altura. Os romanos tiveram sorte de capturar um quinquereme cartaginês e o usaram como modelo para seus navios. Na melhor tradição romana de engenharia civil, eles construíram uma série de embarcações, incluindo uma inovação que tirava vantagem de suas incríveis habilidades de combate – o “corvus”, uma ponte de embarque que permitia que seus navios se conectassem ao do inimigo. Isso permitia despejar dezenas de soldados romanos armados com espadas curtas que podiam exercitar seu verdadeiro talento no combate corpo a corpo. Essa nova tática se mostrou um acerto decisivo para os romano e resultou em uma série de derrotas esmagadoras da marinha cartaginesa.
O sucesso naval romano na Batalha do Cabo Ecnomus (no sul da Sicília) em 256 a.C. encorajou os romanos a desembarcar um exército de 15.000 soldados de infantaria e 500 de cavalaria na África, perto da moderna Kelibia. O objetivo desse contingente era devastar o campo cartaginês e garantir uma cabeça de ponte para o desembarque de mais tropas. A força romana foi comandada pelo general (e ex-cônsul da República Romana) Marcus Atilius Regulus.
A historia começa com Regulus desembarcando em Túnis. Sua tropa precisaria atravessar o rio Bagradas no caminho para sitiar Cartago. Era uma boa ideia montar acampamento na margem do rio e esperar o amanhecer para fazer a travessia. Um pouco de descanso antes de empreender uma marcha árdua seria essencial para o moral da tropa. Foi nesse descanso que algo inusitado aconteceu, algo envolvendo uma coisa assustadora que espreita nas águas.
Os escritores latinos ao falar do incidente descrevem o encontro com uma criatura que poderia ser traduzida como “serpente” ou “dragão”. O monstro seria gigantesco, um réptil de corpo sinuoso, coberto de escamas e com uma ferocidade incomparável. A criatura habitava uma cova na margem do rio e quando os soldados se aproximaram para pegar água, atraíram sua atenção. O monstro matou alguns legionários que chegaram perto de seu esconderijo. O historiador romano Tácito Lívio (59 a.C. – 17 d.C.) que era o cronista que acompanhava a tropa registrou o encontro.
Tal como acontece em muitas histórias clássicas, o texto original do historiador romano Quintus Aelius Tubero (século I a.C.), escrito um pouco mais tarde se perdeu nas areias do tempo, mas felizmente o autor e gramático romano Aulus Gellius ( 125-180 d.C), dispunha de uma cópia em sua biblioteca. Esta fornece uma descrição bem mais detalhada do que teria acontecido.
Tubero escreve em sua história, que o Comandante Attilius Regulus, o cônsul, estando acampado na África, perto do Rio Bagrada. Lá ele teve um severo combate com uma serpente de extraordinária ferocidade, cujo covil se localizava nos bancos lamacentos do rio. A besta se lançou em um ataque furioso contra o exército, desafiando os homens armados com lanças, pilluns e gladius (as armas da infantaria romana). A besta era tão terrível que muitos legionários foram esmagados sob suas escamas, outros tantos acabaram mordidos e um grande número envenenado pelos vapores tóxicos que se projetavam de sua bocarra. Os legionários encontraram dificuldade em romper a couraça de escamas do monstro que repelia seus ataques. As lâminas romanas não conseguiam romper a sua resistência, ao passo que as lanças tiveram maior sucesso. Ainda assim as pontas agudas não foram capazes de penetrar fundo em sua carne. Os soldados sem escudo ou com armadura incompleta não tinham defesa contra a força esmagadora da criatura.
Regulus deu ordens para que os soldados se afastassem para que os arqueiros tentassem encurralar a besta, enquanto a balista e catapulta eram armadas. Apenas assim, a criatura foi mantida à distância e liquidada por três disparos devastadores, um deles na cabeça.
Mesmo morto, os legionários não arriscaram a se aproximar pois o veneno do réptil ainda podia ser sentido no ar. Só algumas horas depois, os primeiros homens foram até ele e constataram que a criatura estava morta. Eles então esfolaram sua pele que, na descrição de Tubero, tinha trinta e seis metros de comprimento. A pele, as presas, a cabeça e frascos com o veneno da Besta de Bagaras foram enviados para Roma como troféus e para corroborar a narrativa. Era algo tradicional para as legiões no exterior, matar animais incomuns e enviar os restos aos parentes, amigos e conhecidos.
Outro historiador romano do século IV, Paulus Orosius, deu uma descrição ainda mais completa da batalha contra a besta, atribuindo a morte da criatura (após o fracasso de lanças e espadas) ao uso de flechas, pedregulhos e principalmente as grandes setas da balista. Apenas o uso de armas de cerco, adequadas a destruir muros e paredes de pedra, deram cabo da monstruosidade.
Segundo os registros feitos por Orosius, baseados em narrativas mais antigas, a Fera de Bagrada matou nada menos que 23 legionários, deixando outros 12 feridos em diferentes graus de gravidade. O ferimento principal e causa da maioria das fatalidades foi o veneno do monstro que deixou alguns homens paralisados, cegos ou ambas as coisas. Aqueles que entraram em contato direto com a bile escura que vertia das presas do Dragão morreram quase que imediatamente.
Esse não foi o único caso de um monstro abatido por legionários romanos. Qualquer criatura de proporções anormais ou ainda, desconhecida na Europa, era tratada como um monstro. Em geral, os soldados atacavam avidamente esses seres. Estes homens estavam em busca de conquistas, fortuna e glória e tais coisas podias ser alcançadas com a fama que essas batalhas proporcionavam. Algumas se tornavam lendárias, com os participantes celebrados por seus feitos e elevados ao status de heróis em Roma.
Mas até que ponto a história envolvendo essa misteriosa serpente ou dragão que habitava o Rio Bagrada pode ser levada à sério? Até que ponto ela é crível e onde a realidade cede espaço para a fantasia? Não parece muito razoável supor que um serpente medindo 36 metros estivesse viva por aí dois mil anos atrás no norte da África, contudo, as lendas, mesmo as mais absurdas, geralmente encontram fundamento em fatos. É possível que os soldados sob o comando de Marcus Atilius Regulus tenham se deparado com algo estranho que desconheciam e que eles tenham enfrentado esse perigo e até que alguns deles tenham sido feridos ou mesmo mortos pela fera.
O austero comandante da tropa e seu historiador creditam o acontecimento como fato. Eles dificilmente inventariam tal coisa, contudo, ao longo dos anos a coisa foi crescendo. Todos que já participaram de uma pescaria, sabem como funcionam essas coisas: a história sobre o peixe que escapou, geralmente diz que ele é bem maior do que realmente era. É provável que a história sobre a serpente gigantesca tenha ganhado proporções com o passar do tempo até se tornar o relato de uma épica batalha contra um dragão.
Seja como for, a história da Serpente de Bagrada, a besta que enfrentou uma Legião Romana é uma narrativa incrível.
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