segunda-feira, 2 de outubro de 2023

" O Maior Crime da Terra" - Os Macabros Assassinatos da Rua do Arvoredo


Na crônica policial, certos casos ganham relevância com o passar dos anos e se tornam matéria para a vivência urbana. Se tornam ao seu modo lendários! São crimes inesquecíveis que causam comoção e que causam um misto de curiosidade e interesse mórbido numa verdadeira legião de pessoas. Tornam-se ironicamente por intermédio de sua bizarrice assunto de debate.

Não faltam crimes hediondos no Brasil, casos que, justamente pela sua natureza medonha, ganham manchetes na mídia. Creio que seja da natureza humana se interessar pelo horror sofrido pelo vizinho. Talvez a psicologia seja capaz de explicar porque essas coisas nos atraem e por que tais narrativas são tão fascinantes - não obstante o sangue, o pavor e a indignação que causam, ou justamente por esses fatores.

Não é de hoje que tais incidentes despertam o interesse das pessoas.

O caso examinado nesse artigo ocorreu há quase 160 anos, no rincão mais meridional do então Império do Brasil, a Província de São Pedro, como então era conhecido o Rio Grande do Sul. O incidente se deu na capital, a Cidade de Porto Alegre, na época, lar de cerca de 20 mil almas que se horrorizaram com os crimes pavorosos ocorridos numa sinistra casa localizada no número 27 da Rua Arvoredo.

Desconfio que alguns leitores do Blog, sobretudo do sul do país, já devem ter ouvido falar dessa história macabra. Nela, um casal de facínoras, um açougueiro e sua esposa, atraíam para a referida morada homens com a promessa de sexo fortuito, os assassinavam com requintes de crueldade, roubavam, desmembravam os corpos e num ato do mais fino horror, os transformaram em comida para serem vendidos na forma de linguiça para a população em geral.

A história dos crimes da Rua do Arvoredo foi tratada ao longo dos anos como um horror incomparável, chamado por alguns de seus estudiosos de "O Maior crime da Terra". Ganhou fama internacional e chegou a ser discutida na Europa. Charles Darwin após ler sobre o caso comentou "será que há um chacal dentro de cada homem"? Não eram apenas os assassinatos e seus detalhes sanguinolentos, que causam choque mas o fato dos criminosos terem transformado o povo de Porto Alegre em canibais inconscientes que contribui para o caráter nauseante desse caso. Por algum tempo se considerou o ocorrido um caso exagerado, cujos detalhes foram sendo assomados com o tempo e que talvez, nem tudo tenha realmente acontecido. Contudo, é inegável que os Crimes da Rua do Arvoredo de fato ocorreram, uma vez que os autos do Processo ainda existem.


Tudo começou no distante ano de 1863, durante a regência de Dom Pedro II e às vésperas da Guerra do Paraguai que lavaria com sangue as fronteiras cisplatinas.

Na tranquila cidade de Porto Alegre vivia um tal José Ramos personagem principal desta história hedionda. José era o filho mais velho de Manoel Ramos e Maria da Conceição. O pai foi batedor de um esquadrão de cavalaria de Bento Gonçalves durante a Revolução Farroupilha. Um homem violento descrito como alguém com muita habilidade no manejo da faca, que se notabilizou justamente por usar a lâmina de forma letal. Era um dos responsáveis pela mais temida forma de execução nos conflitos gaúchos - a Degola. Diziam que Manoel tinha muito gosto em passar a faca na garganta dos prisioneiros e separar cabeça do corpo em um movimento rápido de sua lâmina afiada.

Todavia, em algum momento o batedor se enjoou com todo aquele sangue e morte e decidiu desertar, fugindo para Santa Catarina, local onde fixou residência, casou e onde seu filho, José, nasceu.

Era hábito do pai contar façanhas da revolução, ouvidas com admiração pelo menino que nutria especial interesse nas narrativas sangrentas. Segundo os boatos, o pequeno Ramos insistia que o pai contasse amiúde as façanhas de seu esquadrão, especialmente  o que acontecia quando ressoava o infame toque de "degolar", ocasião em que as ordens eram acumular cabeças. Quanto mais, melhor... 

Na juventude, o pequeno José, filho mais velho de Manuel via a mãe ser agredida pelo pai embriagado. As surras frequentes continuaram até ele dar um basta naquilo. Ele tomou a faca e a projetou contra o pai, ferindo-o gravemente, levando-o à morte em poucos dias. Para não ser preso, o assassino fugiu para a Província de São Pedro, onde ironicamente se estabeleceu como membro da Polícia, exercendo a função de maneira digna, ainda que brutal na força de segurança municipal. Isso até o dia que é flagrado tentando degolar um preso célebre de alcunha Campara, uma espécie de Robin Hood dos Pampas. Dada a repercussão negativa, é exigida a baixa de Ramos que se torna civil. Ainda assim, ele  continua servindo como informante, subordinado diretamente ao Chefe de Polícia, o temido delegado Dário Callado, por quem, mais tarde, seria preso e julgado.

Diz-se de Ramos que era um sujeito mestiço claro, olhos enormes, voz sinistra, barba rala e de extraordinária força física. Alguns o descreviam como um gigante, verdadeiro Golias, com quase dois metros de altura, ainda que possa esse ser um dos tais exageros. Entre seus hábitos incomuns, o amor ao teatro e à música: era frequentador assíduo do recém inaugurado Theatro São Pedro, casa que atraía artistas e intelectuais de Porto Alegre. Ramos gostava de ópera, de música clássica e de peças dramáticas, chegava a chorar de emoção ao assistir as montagens clássicas. Vestia-se de maneira impecável, embora abusasse das colônias e perfumes, talvez para afastar os maus olores que sua profissão causava. Possuía ainda razoável nível de instrução, sendo considerado pelos vizinhos como muito religioso e sensível, em resumo, um cidadão acima de qualquer suspeita.


Foi na capital gaúcha que José Ramos encontrou e se apaixonou por sua cara metade, Catarina Palse.

Catarina Palse, embora não seja a "personagem principal", é elemento não menos importante, pois foi cúmplice de José Ramos, atraindo as vítimas para sua residência ou, simplesmente, pela omissão, acobertando os terríveis crimes do marido. Por algum tempo ela foi tratada como vítima inocente das ingerências do cônjuge, mas mais recentemente seu papel de coautora foi se consolidando tornando-a cúmplice no caso.

Catarina tinha origem Húngara, mas era etnicamente alemã, em razão de fazer parte de uma minoria alemã que povoou o território da Transilvânia que posteriormente constituiu aquele País. Filha de artesão, de família pobre, morava em uma aldeia com os pais e dois irmãos. Há rumores que ela teve a família inteira assassinada durante a Revolução contra a Áustria. Catarina de apenas 13 anos teria sido estuprada e abandonada inconsciente por soldados nas ruínas de seu vilarejo devastado. Saiu das ruínas da pequena propriedade, coberta de sangue, escoriações e vergonha. Vagou pelos campos, mas aos 15 anos, conheceu um sujeito cinco anos mais velho chamado Peter Palsen, um tosador de lã. Posteriormente, aconselhados pelos pastores protestantes, emigram para o Brasil, a fim fugir da miséria extrema em que viviam. À bordo do navio que fazia a longa viagem, o marido de Catarina, incerto diante do que os aguardaria no Novo Mundo cede ao desespero: comete suicídio se enforcando num compartimento do navio, deixando a jovem esposa viúva.

Em 1857, com 19 anos e solitária, Catarina chega à capital gaúcha junto com milhares de outros imigrantes alemães maltrapilhos. Todas as descrições da moça apontam que ela era realmente muito bonita e dona de dotes físicos - "uma visão de delicadeza e beleza". A pele branca, os cabelos finos e loiros, os olhos de um azul aquoso que brilhavam com intensidade, tudo era elogiado em sua pessoa. Era também vivaz, despachada e com uma inteligência considerável que lhe permitiu aprender o idioma em alguns meses, embora conservasse forte sotaque teutônico. 

Não há muitos registros de como Catarina viveu seus primeiros anos no Brasil, mas é de se supor que ela tenha ficado na companhia de outras famílias de colonos e lavradores em alguma comunidade fechada onde os costumes germânicos prevaleciam, já que aquela gente raramente se misturava com os brasileiros. Cinco anos após a sua chegada, sabemos que ela começou a se envolver com José Ramos embora não se saiba como se conheceram. Em 1863, o casal passou a viver junto, ainda que não fossem casados legalmente. Logo decidiram coabitar uma casa na Rua do Arvoredo 27 (atual Rua Fernando Machado), lugar próximo a um cemitério que se encontrava nos fundos da Catedral Metropolitana de Porto Alegre. 

É interessante abrir um parêntese sobre o tal endereço, pois este já gozava de certa infâmia antes do casal adotá-lo como sua residência. Aquele teto e aquelas paredes teriam testemunhado um dos primeiros casos de latrocínio ocorridos em Porto Alegre, no qual um oficial do Exército foi morto por dois subalternos que pretendiam roubá-lo. Os criminosos, um sargento e um praça da milícia local, emboscaram o superior e o mataram a facadas num dos aposentos. Cumprida a tarefa, lavaram o local e removeram o cadáver discretamente despejando-o no Rio Guaíba. O corpo achado semanas depois, inchado e semidevorado pelos peixes, causou indignação na sociedade gaúcha. Como era possível que coisa tão medonha acontecesse justo na capital? Os culpados foram presos tentando se livrar de objetos do morto e uma vez julgados foram sentenciados à morte. Justiça rápida, bem ao gosto da época.


Não se sabe se Ramos e Catarina conheciam a história da casa que escolheram viver ou se algo ali influiu para o caminho que acabaram tomando. É bem provável que soubessem, já que o aluguel da propriedade era mais barato uma vez que ninguém queria viver num lugar considerado por muitos como assombrado. Havia rumores, e todos davam conta de que coisas ruins aconteciam no sobrado de alvenaria. Era um verdadeiro palácio se comparado às demais residências mal ajambradas distribuídas ao longo da rua torta. Diferente das demais casas e casebres, o endereço era sólido, bem projetado e despontava como uma morada de respeito, ainda assim, poucos queriam viver sob o seu teto

Só as circunstâncias de sua história justificavam que o casal conseguisse aquele imóvel com três cômodos, pátio e frontão. Ali o casal passou a viver junto, desmerecendo e ridicularizando toda e qualquer história sobre fantasmas que chegava aos seus ouvidos. 

Como acontece em inúmeros casos sinistros de assassinato, ninguém desconfiava previamente dos criminosos ou de suas atividades, ao menos até elas serem reveladas. Para todos os efeitos, eram apenas duas pessoas comuns vivendo numa pequena e fechada sociedade. Quem poderia imaginar do que eles seriam capazes e de que maneira escreveriam seus nomes como um dos mais cruéis e pérfidos assassinos de nossa história?

Como se deu o caso e seus detalhes sanguinolentos?

Acompanhem a continuação do artigo.  

2 comentários:

  1. Cada história interessante e bem perto da gente...

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  2. Uma pena, que tudo isso que esta escrito aqui na pagina sejam só lendas , quase nada do que esta relatado é real ou esta nos registros oficiais dos crimes em questão. Catarina era analfabeta, José Ramos um pobre coitado, aleijado e incapaz de trabalhar, mortes mesmo cometidas foram somente do açougueiro original e do "bolicheiro", seu jovem mascate e sua cadelinha de estimação. A lenda que se desenvolveu em torno do caso real é enorme, chega a ser quase romântica. estou estudando sobre os casos reais para escrever um livro de horror com o desenrolar do caso e suas consequências no futuro da cidade.

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