terça-feira, 29 de outubro de 2024

RPG do Mês: Symbaroum - Fantasia Dark em um mundo assustador


Ambria é um reino jovem. Com apenas duas décadas de existência, ele foi fundado como o refúgio para os sobreviventes do Reino de Alberetor, pessoas que cruzaram perigosas montanhas para escapar da ameaça dos Senhores da Escuridão que devastaram seu lar.

Ao chegar ao seu destino, decidiram  construir sua nova vida sobre as ruínas de um império muito mais antigo e quase desconhecida chamado Symbaroum. Governado por uma Rainha jovem e justa chamada, Korinthia, os habitantes de Ambria enxergam a si mesma como o último bastão de civilização e que constitui seu dever conter as trevas que habitam a assustadora Floresta de Davokar que domina a terra onde hoje vivem e que se estende sem fim, rumo ao norte. A Capital de Andria, Yndaros é como um farol luminoso de cultura e civilização em meio a noite escura, mas pequenas cidades como Thistle Hold, talvez tenham se estabelecido perto demais das matas fechadas de Davokar. De lá, seus moradores conseguem ouvir os sussurros das coisas que habitam os ermos.

De Thistle Hold e pequenas aldeias adjacentes, caçadores de tesouros, teurgistas de Prios, o Deus do Sol, Místicos da Ordo Magica, e outros aventureiros se lançam para explorar a floresta, esperando revelar seus segredos, localizar ruínas perdidas de Symbaroum, e talvez retornar com riquezas e tesouros do passado que os tornarão ricos para sempre.

Na conquista das terras luxuriantes que se tornaram Ambria, o reino submeteu à força clãs de bárbaros e tribos goblins, que viviam na borda exterior de Davokar. Na ânsia de domar essas terras e fazer desse lugar seu novo lar, eles impuseram seu estilo de vida arranhando o Pacto de Ferro. Esse acordo firmado entre os homens e os elfos, o povo misterioso que vive na floresta, vigorou por séculos com a promessa de que a santidade de Davokar não seria conspurcada. Agora, a medida que os forasteiros que construíram Ambria exploram cada vez mais profundamente o que existe sob as copas das árvores ancestrais, os elfos reagem. Flechas voam na direção de invasores, aldeias ardem em chamas e bebês humanos são raptados na calada da noite e trocados por changelings.


Muitos dos anciões bárbaros e bruxas aconselharam os líderes dos clãs bárbaros a manter o Pacto de Ferro, mas alguns decidiram esquecer os antigos rituais. E de dentro da Floresta, de tempos em tempos, vem a lembrança de que coisas ainda mais implacáveis que a fúria dos elfos devem ser temidas. Lá, nas profundezas indevassáveis dos ermos, habitam criaturas e plantas aterrorizantes, existem lugares intocados que contaminam seus visitantes, corrompem suas almas e abrem as portas para as trevas. Tudo isso, além dos muitos perigos que fazem da floresta seu reduto, em especial magia que permeia esse terreno. Há magias e rituais poderosos ligados à floresta, mas abusar desse poder pode corromper a alma e custar muito mais do que a vida do mago e de seus aliados. As disciplinas teúrgicas, a feitiçaria primitiva e a magia arcana oferecem os meios conhecidos para canalizar essa energia, mas mesmo os magos mais talentosos se arriscam ao manipulá-la. E ainda há aqueles que não se importam com os efeitos desencadeados...     

Esta é, em linhas gerais a ambientação de Symbaroum, um RPG sueco publicado pela Järnringen que foi lançado em inglês após uma campanha de financiamento bem sucedida. Agora, distribuído pela Modiphius Entertainment ele está prestes a desembarcar no Brasil através de um Financiamento Coletivo nacional por intermédio da Pensamento Coletivo.

É surpreendente como esse jogo de fantasia, com uma proposta fincada n gênero dark encontrou rapidamente seu caminho para o público norte-americano. Ele foi publicado originalmente em 2014 e logo no ano seguite foi traduzido para atingir um número maior de jogadores. Em geral, leva alguns anos, ou mesmo décadas até que os jogos sejam devidamente traduzidos e convertidos para o mercado americano, que até pouco tempo era bem mais fechado a jogos estrangeiros. Parece que essa mentalidade está mudando e aos poucos, os jogadores americanos estão abrindo suas mentes e descobrindo que mundo afora existem jogos e ambientações que valem a pena ser exploradas.


O que Symbaroum apresenta é uma ambientação de fantasia pesada, com uma região bastante limitada, na fronteira entre civilização e selvageria, com um forte senso de maus agouros e presságios. Com base nessa ambientação, é possível traçar alguns paralelos entre Symbaroum e outros RPG. O primeiro que vem à mente é Dragon Age da Green Ronin (aqui no Brasil lançado pela Jambô), sobretudo pelo tema em comum envolvendo invasões demoníacas e pela estrutura de classes para criação dos personagens. A ambientação encontra ecos também em Numenera (da New Order), na qual antigas civilizações e seus tesouros esquecidos servem de catalizador para aventuras em terras antigas que pertenceram a povos muito poderosos. Entretanto, o jogo que Symbaroum talvez tenha mais em comum é o RPG francês, Shadows of Esteren (Les Ombres d'Esteren), em particular pelo estilo claustrofóbico e sombrio de seu background. Em ambos permeia uma aura de ameaça, isolamento e maldade invisível, que quando decide se manifestar arrasta bons e maus para um abismo profundo.

Em Symbaroum é justamente a noção de confinamento e limitação espacial o elemento que chama mais a atenção. Essencialmente o jogo se passa em um pequeno território mais ou menos desconhecido e inóspito. Enquanto várias ambientações se preocupam em apresentar diferentes áreas como uma forma de diversificar o mundo e oferecer um rico panorama de possibilidades, Symbaroum vai no caminho inverso. O livro descreve apenas duas regiões: A primeira é Ambria, o Reino erguido recentemente e a outra, a misteriosa Floresta de Davokar.

Isso não significa que o livro seja econômico ao descrever essas duas regiões. Pelo contrário! O primeiro quarto do Livro Básico do Symbaroum Livro de Ambientação é criterioso em suas descrições, pode-se dizer até obsessivo. Tudo é esmiuçado em detalhes: da história, às tradições, dos costumes passando pelas personalidades políticas, religiosas e sociedade. As principais localidades exploradas são a Capital de Ambria, Yndaros, com todos os seus segredos; Thistle Hold, o entreposto mais ao norte de onde parte a maioria das expedições para a perigosa Floresta, Karvosti, um grande penhasco que serve de casa para o maior dos líderes bárbaros e sua Huldra (Bruxa) e  Thingstead um entreposto mercantil que também é sede da Igreja de Prios.


Embora existam muitos deuses - e cada clã bárbaro reza para sua própria divindade que represneta um aspecto da natureza, em Ambria, Prios se tornou uma espécie de Deus Único pois foi graças a ele que a Rainha Korinthia teria encontrado o lugar onde a população se fixou. Prios também seria a única esperança de proteção contra os terrores de Davokar. Embora Yndaros seja a capital e maior assentamento do Reino, Thistle Hold tem um tratamento todo especial uma vez que sua localização estratégica permite que a floresta seja explorada. De fato, a paliçada que cerca Thistle está praticamente colada em Davokar e bastam alguns passos para dentro da mata para que o aventureiro devidamente licenciado para explorar o lugar, se veja mergulhando nos ermos.

A Descrição da Floresta de Davokar infelizmente é bem mais sucinta. Não é algo que chegue a comprometer, mas em comparação a descrição parece bem menor. É provável que a grandiosidade da floresta seja propositalmente disfarçada em comentários mais breves para conservar um véu de mistério e segredo em torno dela. É nessa floresta fechada que irão se desenrolar muitas das aventuras de exploração, com incontáveis lugares a serem vasculhados, clareiras misteriosas, árvores anciãs e grutas secretas, além de velhas construções dos tempos de Symbaroum - verdadeiros depositários de magia, riqueza e tesouros.

Cada personagem em Symbaroum é definido através de um Arquétipo, Atributos, Raça e Habilidades. O livro Básico oferece três Arquétipos básicos: Guerreiro, Místico e Ladino - que fazem as vezes de classes que são refinadas através de ocupações específicas. Dessa forma, existem quatro ocupações dentro de cada Arquétipo, cada um deles oferecendo sugestões para construção dos personagens e distribuição de atributos e habilidades, além é claro, das raças mais adequadas. Isso significa que um Guerreiro pode escolher uma ocupação dentre duelista, capitão, cavaleiro e mercenário, um Místico pode ser um bruxo, mago, feiticeiro ou teurgista e um Ladino pode ser um caçador de bruxas, de tesouros ou ranger. Esse sistema de escolha de arquétipo fornece um bom número de opções, mas é claro, o jogador é livre para definir seu personagem da maneira que quiser. Cada personagem possui um conjunto de oito atributos - Accurate (Acurácia), Cunning (Astúcia), Discreet (Discrição), Persuasive (Persuasão), Quick (Rapidez), Resolute (Decisão), Strong (Força), e Vigilant (Vigilância) - que são medidos em números que vão de 1 a 20.


No que diz respiro à raças jogáveis, temos cinco opções: Ambriano e Bárbaro (ambos humanos com algumas variações), Changeling, Goblin, e Ogre. Changelings são criaturas trocadas pelos elfos que sequestram crianças deixando para trás criaturas que assumem a forma humana. Eles parecem humanos quando bebês, mas crescem com peculiaridades élficas o que em geral significa ser desprezado pela família e forçado a viver por conta própria. Os Goblins tem uma expectativa de vida curta e também não são muito bem quistos pelos humanos, ainda que trabalhem em muitas cidades. Também possuem um gênio difícil com uma tendência a se meter em encrencas. Ogres também são pouco tolerados, mas eles são mais fortes e duros. Eles habitam florestas e sabem pouco a respeito de sua origem e papel, em geral são adotados por goblins e humanos que os encaixam em suas sociedades. Cada raça possui as suas próprias características inerentes à espécie, por exemplo, o povo de Ambria possui contatos e privilégios, Ogres tendem a ser robustos, enquanto Changelings conseguem mudar de forma.

Embora cada espécie tenha suas próprias características, todas personagens tem acesso a um conjunto de habilidades, onde cada qual representa um conjunto de capacidades e conhecimentos. O livro apresenta uma lista de trinta habilidades que vão de Acrobacia, Alquimia, e Emboscada até Feitiçaria, Visão de Bruxa e Magia. Também há habilidades atípicas como Berserker, Loremaster, Guerreiro de Escudo, Estrangular, e Ataque Duplo. Cada habilidade possui uma graduação de três níveis - Novato, Adepto, e Mestre - assim como algumas Características raciais. Então, por exemplo, no nível novato um personagem com a habilidade Man-at-Arms aprende como usar uma armadura adequadamente (aumentando sua eficiência em defesa); no nível Adepto, armadura deixa de impedir ações baseadas no atributo Rapidez; e na graduação Mestre, é possível adaptar a armadura para resistir ao efeito de certas armas que penetram a proteção. 

A criação dos personagens consiste em uma série de escolhas nas quais o jogador opta por um arquétipo e uma ocupação, seguido de uma raça. Pontuações são divididas entre os atributos ou um pacote de pontos pré-determinados são escolhidos e distribuídos em cada atributo. Seja qual for o método utilizado, um personagem não pode ter um atributo maior do que 15 ou menor do que 5. A seguir, ele tem 5 pontos para gastar em Habilidades (e algumas características), com nenhuma graduação sendo maior do que o nível de Adepto. Isso dá uma das seguintes opções: duas habilidades como novato e uma como adepto ou então cinco habilidades como novato. Por fim, cada jogador deve escolher dois aspectos a respeito de seu personagem. Um deles diz respeito ao objetivo do personagem, o outro trata de sua Sombra, uma expressão de sua essência espiritual e alinhamento. Por exemplo, personagens alinhados com a natureza possuem uma sombra com cores vibrantes, já aqueles devotados a civilização, possuem tons metálicos em sua sombra. Uma sombra corrompida ou conspurcada aparece escura ou manchada e assim por diante. A natureza e aparência da Sombra pode ser enxergada e interpretada por certas magias e habilidades como a Visão de Bruxa.


Symbaroum usa uma mecânica muito direta em seu sistema. Em essência, ele envolve um rolamento contra uma determinada dificuldade em um dado de 20 lados. Todos os rolamentos são realizados pelos jogadores e o Mestre sequer toca nos dados. Em uma cena, um jogador pode rolar seu atributo Vigilância para perceber a presença de um ladrão, e na cena seguinte testar seu atributo Discrição para não ser visto pelo mesmo ladrão. Esse sistema concentra nas ações dos jogadores todos os testes. Os modificadores tendem a ser estáticos ou opostos, ambos girando em torno de um espectro que vai de +5 a -5. Estes modificadores são inseridos de acordo com as circunstâncias, por exemplo, uma fechadura complexa impõe uma penalidade para ser aberta, enquanto uma parede com pontos seguros de escalada, garante um bônus. Tudo muito intuitivo e simples. Já nos testes opostos, um personagem com atributos superiores ao personagem que tenta a ação, impõe a ele uma penalidade, enquanto um com habilidades menores, garante um bônus.  

O combate utiliza uma mecânica similar. Acurácia é testada para fazer ataques e Defesa é rolada para evitá-los, mas ambos, o Dano e a Armadura - chamado dado de efeito - são rolados. O mais interessante é que não existe Iniciativa. Ao invés disso, a iniciativa é condicional. Portanto, um personagem com uma lança ou cajado podem atacar primeiro pois sua arma garante um alcance maior, mas apenas na primeira rodada pois depois o oponente consegue se aproximar para realizar seus ataques. Outros atributos também oferecem vantagens na iniciativa, como Sacar Rápido. Uma vez em combate, um personagem possui uma ação de movimento e uma ação de combate na mesma rodada. Qualquer dano sofrido pelo personagem é deduzido de sua Resistência. É importante notar que existe um Limiar de Dor, que se for ultrapassado em um único ataque acarreta na perda da consciência. A maioria dos monstros e NPCs morrerão ao perder todos os seus pontos de Resistência, já os jogadores estarão gravemente feridos e terão de fazer Testes de Morte até serem estabilizados, se recuperar ou morrerem em decorrência dos ferimentos sofridos.  


As Artes Místicas em Symbaroum são dividida em quatro tradições: Feitiçaria, Teurgia, Bruxaria e Magia, e cada tradição introduz sua própria lista de feitiços e rituais ainda que algumas sejam partilhadas por diferentes tradições. Cada Tradição, aliás, possui a sua ideologia e ponto de vista a respeito do uso da magia. Feiticeiros acreditam que o mundo já foi corrompido e abraçam essa corrupção através de magias profanas que visam escravizar ou impor sua vontade. Teurgistas são devotos do Deus Solar Prios, e utilizam as dádivas concedidas por Ele. Bruxas abraçam a natureza e, portanto, suas magias se refletem em efeitos sobre plantas, animais e elementos. Já os Magos trabalham seus encantamentos através de uma visão lógica e estruturada da magia como se ela fosse uma espécie de ciência. Em Ambria a Ordo Magica congrega os Magos em uma Sociedade que desenvolve suas próprias magias e rituais. Seriam estes os magos default.  


Em Symbaroum, magia faz parte do dia a dia e qualquer um pode aprender a lançar um encantamento ou realizar um ritual, mas mexer com essas forças pode ser perigoso. O risco da Corrupção está sempre próximo quando se aprende ou emprega uma magia. Tipicamente, a magia causa corrupção e personagens que a utilizam indiscriminadamente acabam sofrendo seus efeitos danosos o que atrai a atenção de caçadores de bruxas. É por isso que as tradições são tão importantes, uma vez que elas ensinam aos seus membros formas de lidar com a Corrupção e expurgar seus efeitos. Isso não impede que um Místico desenvolva Corrupção e se transforme numa aberração, mas ele saberá como proceder com maior segurança mitigando os danos. Em essência o uso indiscriminado (e prolongado) de magias e rituais é prejudicial e potencialmente perigoso. A Corrupção é insidiosa, ela vai aparecendo aos poucos em marcas pelo corpo e mudança de personalidade. A Corrupção, no entanto, não está restrita ao uso de Magia, pondendo ser adquirida pelo contato com lugares malditos ou criaturas impuras. Uma exploração da Floresta de Davokar, o combate contra algum monstro ou a descoberta de um artefato, podem disseminar Corrupção.

Mecanicamente, cada Tradição, cada Magia e cada Ritual são tratados como Habilidades com as mesmas três graduações. Com apenas três pontos para distribuir nessas Habilidades durante a criação dos personagens, um Místico irá dispor de um repertório de magias bastante enxuto. Symbaroum não possui uma diversidade muito grande de magias e rituais, mas de qualquer maneira, um Místico jamais irá possuir uma vasta quantidade dessas habilidades. As magias se enquadram bem nos temas das Tradições com boa descrição de seus efeitos, adicionalmente elas são mais práticas e discretas do que espetaculares e explosivas. 

Para o Mestre, há um capítulo com dicas e sugestões para criar as aventuras e regras opcionais que cobrem ataques críticos, falhas, morte por dano maciço e até permite aos jogadores criar personagens tomados pela Corrupção. Conselhos bem vindos a respeito de como lidar com situações inesperadas e aplicação de regras também podem ser encontrados nessa seção. Há um capítulo que trata especificamente de Monstros e Criaturas, que são divididos em níveis de desafio que vão de Fraco a Poderoso - o que permite escolher aqueles que mais se encaixam no nível do grupo. Os Monstros são Criaturas e Coisas - Seres de Horror e da Natureza Primeva - que habitam os Ermos e os Confins da Civilização. Há algo que remete às criaturas de One Ring, com terríveis aranhas, forças da natureza e seres bizarros que habitam o Coração da Floresta Davokar, espreitando os que invadem seus domínios. O tratamento de Symbaroum aos Elfos se destaca, colocando tais seres como uma raça incrivelmente alienígena para a humanidade, com tradições insondáveis e costumes bizarros. Antes que você pergunte, NÃO, Elfos não são uma raça jogável e nem adaptável para os jogadores.

Symbaroum já vem com um cenário pronto chamado "A Terra Prometida" (The Promised Land) que ironicamente não se passa em Ambria (o local mais importante da ambientação), mas nas Titãs, uma cadeia montanhosa entre Ambria e Alberetor. Os personagens estão atravessando a região, fugindo de Alberetor em direção à segurança de Ambria - A Tal Terra Prometida. O roteiro da história é linear e a escolha da localização é um tanto curiosa, sobretudo para quem leu e se empolgou a respeito da Floresta e demais lugares descritos detalhadamente. Dividido em três atos, com uma forte narrativa, o cenário faz um trabalho decente ao introduzir o sistema e alguns temas. Eu compreendo que a opção dessa aventura introdutória seja para introduzir os personagens em um mundo novo a ser descoberto e explorado nas futuras sessões, afinal eles estão apenas chegando, ainda assim, parece uma opção um tanto equivocada.

Mecanicamente, Symbaroum apresenta um sistema em que o foco primário está nos jogadores e nos personagens que eles interpretam. É um jogo complexo que demanda conhecer com profundidade a ambientação e dominar as regras para tirar delas o necessário para o desenvolvimento e aprimoramento dos personagens. Da mesma forma, se os jogadores não comprarem a ideia da ambientação e aprenderem o mínimo sobre ela, a experiência do jogo ficará comprometida. 

Fisicamente, o livro é impressionante, com um layout limpo e elegante, agradável de ler e prazeroso de folhear. A escrita é fluida e em geral a leitura se desenvolve de maneira agradável que o compele a prosseguir. Alguns leitores americanos reclamaram um pouco da tradução de alguns termos e da construção das frases, em parte pelo livro ter sido escrito originalmente em sueco, mas isso não deve atrapalhar o trabalho de tradução para o português.

É preciso elogiar a arte de Symbaroum que é simplesmente deslumbrante! Não estou exagerando, que livro bonito e que trabalho gráfico primoroso. As ilustrações parecem se integrar perfeitamente ao texto e passam toda a dimensão de escuridão e isolamento do jogo. Apenas de olhar algumas imagens surgem ideias e inspiração para narrar aventuras. Quando o trabalho dos artistas é tão evocativo, a função do mestre fica mais fácil. O fato das dimensões do mundo serem tão contidas num espaço geográfico consideravelmente exíguo, também desperta estranheza à primeira vista, mas esse no meu entender é um dos charmes do jogo. Ele permite que os personagens explorem praticamente a ambientação toda, ainda que, ao longo de muitas aventuras, eles perceberão ter arranhado apenas superficialmente os segredos e mistérios da região. 

Symbaroum se destaca como um jogo de fantasia com algo a mais. 

É um jogo onde os personagens enfrentam mistérios e encaram uma atmosfera de ameaça perene. Imagine que você entra em uma floresta e tem a sensação de estar sendo observado por uma presença invisível que você sabe ser perigosa, mas que não é capaz de ver. Esse é o clima do jogo! Além disso, é um mundo ao mesmo tempo violento e majestoso, com beleza e horror na mesma proporção. Nesse ambiente hostil, os personagens rapidamente aprendem a temer o que vão encontrar em suas incursões pela Floresta e receiam cruzar o caminho de outros povos. Não há certezas, não há garantias...

Para quem ficou curioso e interessado, aqui está o link para o Financiamento Coletivo. Ele já está financiado, então corre lá para dar uma olhada.

https://www.catarse.me/symba


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

O Mastim Alado - A Criatura maldita do conto "The Hound" de H.P. Lovecraft

Dentre as várias criaturas dos Mythos de Cthulhu existe uma relação de horrores intimamente  relacionados a objetos amaldiçoados. O mais conhecido talvez seja o lendário Assombro na Escuridão, um dos avatares do Caos Rastejante, Nyarlathotep em forma de um ser quiróptero que habita o igualmente legendário Trapezoedro Brilhante

Mas há muitos outros horrores que residem objetos aparentemente inofensivos e que justamente por conta disso são ainda mais perigosos. 

Um tipo de objeto que se insere nesta categoria são os macabros Amuletos do Mastim Alado. Estes talismãs são usados por membros do decrépito Culto dos Devoradores de Cadáveres de Leng, uma sociedade secreta criada pelo degenerado povo Tcho-Tcho. Ao longo dos séculos, outros povos se juntaram a suas fileiras assumindo posições proeminentes na seita a medida que ela avançava para as terras ocidentais. 

Os membros mais proeminentes da seita recebiam como presente por seus serviços prestados um amuleto de jade com a figura do horror chamado por eles de Mastim Alado. Haja vista, a maneira de se referir a esse horror é alegórica, visto que ele embora lembre um enorme cão dotado de asas, não pode ser jamais compreendido como algo nem remotamente encontrado em nosso planeta.

O Mastim Alado é antes de tudo um protetor do Culto, chamado para cumprir tarefas e missões ditadas pelo detentor do amuleto. Ele é um habitante de planos distantes, gerado na intercessão de realidades e livre para percorrer diferentes dimensões com a desenvoltura que transitamos em nossa realidade tridimensional.

Há conjecturas sobre o berço desses seres bestiais, alguns ligam sua origem aos infames e muito temidos Mastins de Tindalos. De fato, há tomos esotéricos que supõem que os Mastins Alados possam ser uma espécie derivada do mesmo cantão dimensional que gerou essas bestas. O excessivamente raro Monstres and their Kynde faz essa ligação, postulando que magias para contatar os Mastins de Tindalos (feitiços incrivelmente raros e perigosos) por vezes acabam atraindo Mastins Alados em seu lugar.

O Manuscritos Pnakotico, outro livro esotérico, desfaz essa contradição ressaltando que se tratam de entidades distintas. Enquanto os Mastins de Tindalos estão sujeitos às marés do tempo existindo nos ângulos temporais, os Mastins Alados rompem o tecido dimensional sem carecer de ângulos pré-determinados ou conformidades de hiper geometria favorável. Os segundos tampouco são atraídos por incursões no tempo-espaço, algo que parece de grande importância para os Mastins de Tindalos.

Finalmente existe a diferença da aparência geral. 

As feras de Tindalos são maiores, possuem o corpo coberto de uma conhecida substância azulada e tem uma longa língua serpenteante. Os Mastins por sua vez possuem grandes asas coriáceas em seu dorso delgado. Em comum o fato de haver uma identificação com o biótipo da família canídea de corpo esguio e musculoso. Dali eles terem sido chamados de cães e até mesmo galgos em certas interpretações. 

Conforme dito esses seres não podem ser compreendidos formalmente como cães, embora sejam quadrúpedes com patas poderosas e uma cabeça em formato vulpino. Eles não possuem qualquer sinal de pelos em seus corpos lisos e fibrosos que se assemelham a ligamentos de um músculo descarnado. A coloração deles é acobreada, com traços castanhos avermelhados variando para um marrom profundo, sendo as asas mais claras. As asas são reminiscentes às de um morcego, surgindo no dorso da criatura atingindo uma envergadura de 2 metros. Elas são fortes o bastante para impelir a fera pelo ar e permitem que ele se desloque a uma velocidade considerável.

Essas criaturas medem aproximadamente 180 centímetros de comprimento, com 85 centímetros de altura, embora possam haver indivíduos maiores. A cabeça é maciça e forte, com um focinho proeminente e orelhas pontiagudas eretas. A criatura possui sentidos de faro e audição aguçados. Seus olhos são pequenos de uma coloração amarelada sem íris e que costumam brilhar intensamente. Ele enxerga perfeitamente na escuridão. 

A mandíbula é extremamente forte, dotada de presas afiadas e poderosas, projetadas para rasgar e lacerar. A mordida de um Mastim Alado é equivalente a do Kangal, o canídeo com a mordedura mais potente no mundo. Ele pode arrancar pedaços inteiros da carne de uma presa e partir ossos com facilidade. 

O Mastim ataca majoritariamente mordendo mas ele também é capaz de atacar com suas enormes garras que são afiadas e resistentes. A criatura investe saltando e usando seu peso considerável para derrubar e prender a presa, usando em seguida a mordida que visa invariavelmente a garganta. Alternativamente o Mastim pode investir voando afim de surpreender e derrubar a presa. Uma vez prendendo a vítima com sua potente mandíbula, o Mastim tende a dilacerar seu corpo com movimentos bruscos de sua cabeça.

Uma das características mais infames do Mastim Alado é o seu uivo que transcende os planos e é detectado apenas pela presa que ele busca. Quando empreende uma caçada, a criatura anuncia sua chegada com longos e lamentosos uivos que no início parecem distantes. Este som vai se tornando cada vez mais ameaçador e próximo com o passar do tempo. Essa medida visa minar a sanidade da presa fazendo com que ela sinta que seu fim está cada vez mais próximo. Há um efeito psicológico desconcertante que incide sobre os nervos da presa fazendo com que ela não consiga dormir ou relaxar sabendo que a criatura está cada vez mais próxima. Depois de ser comandado a buscar um alvo, o Mastim não se desvia de sua tarefa e irá empreendê-la de maneira implacável. Não há nenhuma maneira de postergar ou cancelar a caçada. 

A chegada do Mastim Alado ocorre quando ele literalmente rasga o véu dimensional penetrando em nossa realidade para fazer sua coleta. Testemunhas que presenciaram tal coisa afirmam que a criatura surge no ar em meio a uma cacofonia aterrorizante de alarido e uivos. A presa pode ser morta imediatamente pelo Mastim ou carregada por ele até sua dimensão de origem. Lá seu destino é incerto, mas considerando que ninguém levado através da fenda dimensional retornou, é justo supor o que acontece.

MASTIM ALADO para Chamado de Cthulhu

FOR 100   CON 120   TAM 95   

INT 70      POD 130   DEX 90   

HP: 22

Bônus de Dano (BD): +1D6

ATAQUES: Mordida 60%, dano 1d10*

Garras 45%, dano 1d6 + BD

* O Dano ignora todas as armaduras, mesmo as mágicas

Ao Morder uma vítima o Mastim Alado a mantém capturada em suas presas e causa 1d6 pontos de dano por rodada posterior sem precisar realizar testes adicionais. Uma vitima capturada nas mandíbulas da fera pode testar sua FOR contra a FOR da criatura para se livrar.

ARMADURA: Nenhuma, porém nenhuma arma física pode ferir o Mastim Alado. Feitiços e armas mágicas são capazes de ferir a criatura normalmente. Ao ser reduzido a 0 HP, o Mastim desaparece em uma nuvem de fumaça, ele se reintegra em 1d6 noites e ressurge para continuar a caçada.

 MAGIAS: O Mastim conhece 1d10 magias à escolha do Guardião.

HABILIDADES: Esquiva 90%, Saltar 90%, Farejar 90%, Rastrear 100%

CUSTO DE SANIDADE: 1/1D10 pontos de sanidade por ver um Mastim Alado. Ouvir o uivo da criatura tem um custo de 0/1d2 pontos por noite.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Portlock, Alasca - A lenda da Cidade que foi abandonada pelo medo do Pé Grande


Perdido na imensidão do Alasca encontram-se os restos de uma cidade fantasma.

Não é uma visão agradável! Tudo o que sobrou foram uma velha mina desativada, pilhas de entulho, algumas casas de madeira apodrecendo e maquinário enferrujado. Há também memórias amargas de tempos antigos. Esses são os últimos resquícios da Cidade de Portlock, um dos lugares mais isolados do mundo e lar de várias histórias estranhas e perturbadoras.

Os residentes dessa vila abandonada que um dia foi um próspero assentamento que possuía porto e uma fábrica partiram por volta de 1950. A versão oficial é que os habitantes de Portlock foram embora em busca de melhores condições de vida em um local menos insalubre e perigoso. A abertura da Alaska Route One, uma estrada que conectou cidades (e que deixou Portlock de fora) também é apontada como uma explicação razoável. Afinal, Portlock, não era um lugar tranquilo que pudesse realmente ser chamado de lar pelos seus residentes. Por volta de 1951, os últimos habitantes já haviam partido e a cidade estava praticamente deserta.

Pelo menos, é essa a história oficial.

As lendas urbanas que circulam à respeito de Portlock, no entanto, indicam que algo bem mais sinistro teria motivado a partida dos moradores. Sempre existiu algo de positivamente estranho no lugar, isso é fato! 


Desde 1700, a área no extremo sul do Alasca localizada na Península de Kenai atraiu habitantes. Estes eram em sua maioria pescadores, madeireiros e mineiros, quase todos descendentes de russos nascidos nas aleutas e nativos oriundos das tribos locais. Além de uma pequena indústria pesqueira relativamente próspera, eles tinham uma pequena reivindicação à fama: o renomado Capitão britânico Nathaniel Portlock ancorou lá em 1786. O evento motivou a troca do nome original Port Chatham para Portlock como forma de marcar a visita do ilustre viajante. 

A baía calma e a pesca abundante de salmão motivaram o estabelecimento de uma empresa americana por volta da virada do século XX. Toda uma frota de barcos pesqueiros foi trazida, bem como equipamento e infraestrutura. O porto foi modernizado para a chegada e partida de embarcações de maior porte. A empresa batizada como Portlock Cannery obteve relativo sucesso e em 1921 era a principal empregadora da cidade. No seu auge ela teve uma população de 750 pessoas.

Mas apesar do sucesso do empreendimento mercantil, sempre houve histórias estranhas sobre o povoado. 

Os nativos Inuit falavam que era aquela era uma terra ruim que atraía coisas assustadoras que transitavam nos limites da lenda e realidade. O folclore do Alasca é rico em lendas sobre espíritos que habitam esses rincões afastados. São entidades com apetite voraz que tomam o corpo dos homens e os obrigam aos atos mais desprezíveis. Relatos de violência, selvageria e até canibalismo são corriqueiros entre as lendas locais. Contudo na região de Portlock havia algo ainda mais assustador do que espíritos desencarnados. Segundo os relatos, a Península do Kenai era o território de caça de uma criatura selvagem, uma fera meio-homem meio-fera que espreitava pelas florestas e planícies nevadas. A Besta reminiscente das lendas do Pé Grande (ou Sasquatch) era conhecida pelos locais como Nantiinaq


O termo Nantiinaq (non-tee-nuck) remete ao idioma inuit conhecido como Dena’ina, enquanto a raiz "nant’ina" pode ser traduzida como "aquele que rouba as pessoas". O Nantiinaq é uma fera enorme de forma humanóide, mas muito mais alto que um homem adulto. Ele tem o corpo coberto por uma pelagem crespa escura que acaba se cobrindo de neve permitindo-lhe se mesclar à paisagem branca. A criatura é um predador inteligente que estabelece uma área de caça em busca de carne fresca. Ele se satisfaz com peixes, renas, caribous e outros animais da floresta selvagem, mas quando experimenta carne humana passa a preferi-la sobre todas as outras. Dotado de uma força sobre-humana, a fera tem presas e garras afiadas que usa para lacerar as presas, que são então devoradas vorazmente. Seu covil, que pode ser uma caverna ou gruta é coalhada de ossos quebrados e carcaças descartadas.

O Nantiinaq não é apenas um animal selvagem, ele é uma entidade muito conhecida entre os Inuit e temida na mesma proporção. É dito que nos primórdios, quando o mundo ainda era jovem, os Deuses criaram esses seres para vagar pelas florestas e proteger as regiões pristinas onde os mortais não eram bem vindos. Entretanto, em algum momento, os Nantiinaq se ressentiram de sua função específica e escaparam dos limites das terras que deveriam vigiar. Passaram então a caçar os homens o que desagradou os deuses criadores. Eles foram então banidos para os recessos mais afastados do mundo e lá deveriam ficar isolados para sempre. Contudo, os homens acabaram esquecendo as lendas dos Nantiinaq e passaram a viver cada vez mais próximos a seus territórios, atraindo a atenção das feras.

Foi exatamente isso que teria acontecido com Portlock. Um ou mais Nantiinaq viveriam na Pensínsula do Kenai e eles foram responsáveis pelos misteriosos desaparecimentos de dezenas de pessoas. A situação se tornou dramática a  partir de 1900 quando a população da cidade aumentou, atiçando o instinto primal da criatura. Ela havia provado de carne humana, tenra e saborosa, e nada a impediria de conseguir mais.

Mas seria verdade que as pessoas de uma vilarejo proeminente teriam partido por conta dos ataques de um monstro? 


Se você perguntar a respeito, as pessoas dirão que a população partiu por conta da melhor oferta de moradia no caminho da estrada. Não oficialmente, elas partiram por conta de décadas de ataques aterrorizantes empreendidos por um monstro.

Lendas sinistras sempre fizeram parte do dia a dia dos moradores do local. Havia uma história em particular que dava conta de três marinheiros que haviam desembarcado na cidade em meados de 1875. O grupo recebeu ordens de ir à terra e caçar algum animal para suprir a despensa de carne de sua embarcação. Os três ouviram conselhos para não se afastarem demasiadamente pois corriam o risco de encontrar urso polar ou coisa pior. Eles não quiseram contratar um guia Inuit assegurando que não iriam se aventurar pela tundra interior. Passados três dias sem qualquer notícia dos homens, um grupo de resgate foi organizado para descobrir seu paradeiro. As lendas asseguram que rastros misteriosos de um humanoide de grande porte foram encontrados na neve e estes levaram até a sangrenta cena de um massacre. Os corpos mutilados de dois dos marinheiros foram recuperados, mas do terceiro jamais se soube o destino. Acredita-se que a fera tenha o levado para seu covil afim de devorá-lo mais calmamente. 

Em 1905 houve outro evento curioso. Os empregados nativos que trabalhavam na empresa de empacotamento de peixe decidiram se demitir e partir ao mesmo tempo. Há especulações de que esse foi um protesto pelas más condições de serviço e por ganharem menos que seus colegas brancos, entretanto há outras versões dessa história. Segundo alguns, a partida dos Inuit se deu por conta do desaparecimento de duas crianças que teriam sido levadas na calada da noite pelo Nantiinaq. A fera teria sido inclusive avistada por dois respeitados caçadores da tribo que alertaram os demais de que continuar ali era perigoso para as famílias.

Com a partida dos nativos, a companhia focou em contratar homens solteiros para dar sequência no trabalho, trazendo uma nova leva de pessoas que vinham principalmente do Canadá. Em 1908, um outro acontecimento bizarro ganhou projeção. O aumento de homens solteiros no assentamento, motivou o surgimento de uma taverna na cidade. Esta era de fato um bordel que operava com grande interesse dos locais. O estabelecimento foi um sucesso, ao menos até que o dono e duas moças que ele havia recém contratado foram massacrados no caminho que levava do porto até a casa. Os corpos foram horrivelmente mutilados e as pessoas culparam uma fera selvagem já que o treno em que eles seguiam, e que estava repleto de suprimentos valiosos, sequer foi tocado. Seja lá quem causou a matança queria apenas carne, e a conseguiu já que os corpos tinha marcas inequívocas de terem sido mordidos.


Além desses incidentes sinistros, os locais citavam desaparecimentos esporádicos nos arredores da cidade. Pessoas frequentemente desapareciam e seus corpos jamais eram recuperados. Em um lugar perigoso como o Alasca não chega a ser exatamente uma surpresa que pessoas sofressem acidentes fatais ou que acabassem sumindo nos ermos gelados, contudo os locais tinham uma explicação corriqueira para quando alguém sumia da face da terra: o Nantiinaq!

É claro, ursos, lobos, nevascas ou outras coisas podiam ser responsáveis pelos desaparecimentos. Além disso Portlock havia se tornado um lugar bastante violento atraindo a presença de indivíduos perigosos com passado de crimes. Entretanto a maioria preferia culpar a fera sobrenatural pelos desaparecimentos. Em 1920 o Anchorage Report, jornal da capital deu enorme destaque aos rumores de pessoas desaparecidas na região. Um conhecido caçador que vivia em Portlock contou ao repórter que o Nantiinaq havia sido visto repetidas vezes nas proximidades de uma mina desativada que ele provavelmente usava como covil. O repórter ficou impressionado com a história e escreveu uma matéria que estampou a capa do diário com a seguinte manchete: "MONSTRO DE PORTLOCK RESPONSÁVEL POR DEZENAS DE MORTES".    

Outros jornais enviaram correspondentes para cobrir a história. O Chicago Tribune publicou fotografias que mostravam árvores arrancadas pela raiz supostamente pelo monstro, além de rastros de uma criatura bípede que havia deixado pegadas de 46 centímetros na neve. Para muitos essa matéria publicada em 1925 foi uma das primeiras a lançar o nome "Pé Grande" que se tornou imediatamente um perfeito adjetivo para feras humanoides nas florestas da América do Norte. Outro diário, o Seattle Times também publicou uma matéria com fotografias mostrando uma rena que havia sido horrivelmente mutilada por uma fera desconhecida. "Os sinais eram inequívocos e mostravam que uma criatura grande e feroz perseguiu e mutilou uma rena de 100 quilos na tundra. O pobre animal foi feito em pedaços por garras e mordidas medonhas".

Então, em 1931, outra morte chocou o vilarejo. Um madeireiro chamado Andrew Kamluck, homem experiente e bem quisto em Portlock sofreu uma morte misteriosa e violenta. Kamluck foi supostamente atingido na cabeça por uma peça de metal  – algo pesado demais para um ser humano usar como arma. Embora houvesse sangue em um guindaste próximo, Kamluck foi encontrado a 3 metros dele com a cabeça arrebentada como um melão. Segundo boatos partes de seu corpo foram mordidas e arrancadas. A fera foi novamente culpada pelo acontecimento macabro e um grupo de caça se organizou para encontrar e abater a fera. Apesar de rastros terem sido encontrados e alguns calçadores terem avistado uma silhueta gigantesca na neve, a criatura não foi encontrada. A fera continuaria à solta, atacando de tempos em tempos!


A Alaska Magazine relatou em uma edição de 1934 que um professor que lecionava na escola local desapareceu sem deixar vestígios. Em 1940, outro grande massacre envolveu quatro trabalhadores de uma fábrica de conservas que foram mortos enquanto caçavam ovelhas e ursos a cerca de quatro quilômetros da cidade. Apenas um cadáver foi mais tarde encontrado, horrivelmente desmembrado em uma lagoa local.

Ao longo das décadas, histórias como essas aterrorizaram os moradores de Portlock. Um a um, eles começaram a abandonar a cidade em busca de pastagens mais seguras.

"Deixamos nossas casas e a escola e começamos tudo de novo em Nanwalek", contou Malania Kehl, que nasceu em Portlock em 1934, ao Homer Tribune em uma reportagem publicada em 1952. Durante um "longo período de tempo", explicou ela, "um monstro aterrorizou os residentes da cidade a ponto de fazer com que todos fugissem de lá pois temiam serem os próximos"

De fato, Portlock era um lugar de sucesso, a Indústria Pesqueira estava em expansão e a companhia de enlatados tinha uma demanda considerável até a debandada final de mais de duzentas pessoas ao mesmo tempo. Elas resolveram partir antes do inverno de 1950 deixando a cidade quase vazia.

Histórias como essas abundam em artigos e sites que relatam a história de Portlock, Alasca. Mas os antigos moradores da região frequentemente contestam a veracidade desses relatos. 


"Malania meio que inventou tudo porque ela estava ficando cansada de pessoas perguntando se as histórias sobre Portlock eram verdadeiras", disse Sally Ash, prima de Kehl que serviu como tradutora para outra publicação do Anchorage Press em 1958. "Ela inventou a história sobre como o Pé Grande estava matando muitas pessoas. Não era verdade! Pessoas morreram em acidentes e ataques de urso, mas quando se vive no Alasca, um um lugar afastado, essas coisas aconteciam".

Ash cresceu em Nanwalek e sua mãe nasceu e viveu em Portlock até a saída. "Ela falava sobre sua cidade natal, dizendo que era lugar assustador e perigoso. A natureza era inclemente ali e qualquer deslize podia ser fatal. Fora isso, havia todo tipo de gente morando na cidade. Muitos eram ex-criminosos que buscavam um lugar afastado para trabalhar e se esconder. Não duvido que muitas mortes tenham sido causadas por desentendimentos. Quando se vive num lugar remoto como Portlock qualquer discussão pode descambar para algo físico". 

Mas ainda há quem culpe o Nantiinaq pelas mortes naquilo que hoje é uma cidade fantasma.

"Lembro dos meus pais dizendo que para podíamos sair em dias de neblina. Era quando o monstro saía de sua toca para caçar. Você podia topar com ele e acabaria morrendo”, conta Albert Vissey que nasceu e viveu na cidade até os 10 anos. "Meus pais acreditavam no Natiinaq e não tinham qualquer dúvida sobre sua existência. Um tio participou de uma caçada certa vez e viu a criatura. Ele e mais uma série de pessoas contavam que o monstro estava sempre por perto do centro da cidade. Ele era uma presença assustadora".

Ele acrescentou que a criatura deve estar lá até hoje. "O Nantinaq é imortal... ou pelo menos vive muito mais do que um ser humano. Ele deve estar lá ainda na tundra gelada... respeite-o! Mantenha distância... era o que se dizia na época e creio que continua valendo".


Os conselhos de Albert são realmente bem vindos já que nas últimas décadas as ruínas de Portlock se converteram em uma espécie de atração turística. Elas recebem pessoas interessadas em conhecer uma velha cidade pesqueira da virada do século quase que perfeitamente preservada. As lendas, é claro, são um atrativo adicional para visitantes em busca de histórias assustadoras.

Se há algo real sobre o abandono de Portlock não se sabe, mas as lendas sobre o Pé Grande do sul do Alasca, essas provavelmente serão contadas ainda por muitos e muitos anos. 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O Profeta Adormecido - As notáveis Visões de Edgar Cayce


Poucos videntes desfrutaram do renome e popularidade de Edgar Cayce, o celebrado "Profeta Adormecido" dos Estados Unidos. Durante sua vida, Cayce fez mais de 14.000 leituras documentadas para uma grande variedade de pessoas, inclusive celebridades como Harry Houdini, Thomas Edison, Woodrow Wilson e Marilyn Monroe. Os ricos e famosos buscavam suas premonições, pois a precisão de Cayce havia se notabilizado. Diziam que ele era capaz de fazer maravilhas.

Suas leituras cobriam uma grande variedade de tópicos, inclusive assuntos pessoais e condições de saúde. Ele seria capaz de alertar uma pessoa de riscos durante viagens, apontar possíveis traições e de detalhar esquemas prejudiciais ocultos. Por essa razão ele ganhou projeção até mesmo entre empresários e especuladores de Wall Street. Mais do que isso, ele alegava ter salvo a vida de vários de seus clientes apontando para doenças e aflições que em estágio inicial poderiam ser corretamente tratadas e sanadas.

Contudo, foram as previsões ligadas ao mundo esotérico que conferiram a Edgar Cayce sua enorme fama. Ele previu eventos que incluíam desde a descoberta da lendária cidade perdida de Atlântida até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, oferecendo sempre uma riqueza de detalhes desconcertante.

O místico ganhou seu famoso apelido, o de "Profeta Adormecido", devido à sua suposta capacidade de adormecer sobre livros, despertando com total retenção dos fatos e ilustrações neles contidos. Mais tarde, essa habilidade se transformou na capacidade de diagnosticar e recomendar tratamentos para doenças em um estado de sono semelhante a um transe. O próprio Cayce não tinha treinamento médico formal mas fornecia aos interessados uma relação de doenças e de possíveis curas meramente escutando o coração ou prestando atenção na maneira como a pessoa respirava.


Os talentos preternaturais de Cayce, as previsões surpreendentes e os diagnósticos médicos fascinantes, garantiram a ele enorme fama, dinheiro e certo grau de notoriedade. Para alguns ele foi o maior vidente do século XX.

Edgar Cayce continua sendo uma figura controversa mesmo décadas após seu falecimento, e há boas razões para isso. As histórias que envolvem o início de sua vida são sensacionalistas e difíceis de acreditar, mas o que é normal na vida de tal personagem? No entanto, esses relatos fornecem os elementos fundamentais para a ascensão dessa fascinante figura. Entre suas primeiras façanhas estava a habilidade de ver seres invisíveis e de comunicar-se com seu avô morto.

Ele considerava essas entidades incorpóreas, espiritos que continuavam apegados ao mundo dos vivos e que ele podia enxergar, bastando para isso que meramente se concentrasse. Em 1889, Cayce, com 12 anos de idade, relatou a visita de uma mulher alada que prometeu responder às suas orações. Ele também enxergava crianças que vinham brincar com ele, crianças que teriam morrido décadas antes dele mesmo nascer.

As entidades que ele descrevia como "luzes incorpóreas" eram entretanto as mais enigmáticas. Estas falavam com o menino mentalmente, com sons rítmicos e zumbidos que ressoam em sua mente e faziam seus dentes e a cabeça latejarem. Mostrando a ele imagens de coisas que viriam a acontecer como filmes incrivelmente realistas. Foram eles que mostraram naufrágios, explosões, assassinatos e a tragédia da guerra. O menino assistia tudo aquilo com um horror petrificante. Ele não compreendia que era uma espécie de antena para captar essas imagens bizarras de um temo que não era o seu.


Com todos esses seres sobrenaturais circulando ao seu redor, não é de se admirar que Cayce tivesse dificuldade para se concentrar em seus trabalhos escolares. Certo dia ele recebeu um relatório insatisfatório de seu professor por causa de sua má ortografia. O pai de Cayce um homem severo o puniu pelo seu baixo aproveitamento nos estudos, mas o jovem foi consolado pelos seus amigos espirituais. Cayce lembrou de ter ouvido as vozes ordenando que ele adormecesse um pouco para que "eles" pudessem ajudá-lo. Depois de pedir ao pai para tirar um cochilo rápido, ele colocou a cabeça sobre um livro de ortografia e dormiu. Quando acordou, o rapaz lembrava perfeitamente do conteúdo do volume que estava embaixo de sua cabeça. Seu pai ficou surpreso ao descobrir que o filho tinha memorizado todas as páginas do livro.

Cayce repetiu o processo com outros livros escolares. Em 1892, sua professora o considerou o melhor aluno da classe. Quando ela o questionou sobre como ele havia mudado suas notas escolares, ele mencionou que dormia em cima de livros. Toda vez que fazia isso, acordava e se lembrava completamente do conteúdo de suas páginas. 

Nascia assim a lenda do "Profeta Adormecido". Com o tempo, sua capacidade de absorver o conteúdo de livros durante o sono foi eclipsada por outros talentos. Por exemplo, sua notável habilidade de fornecer às pessoas diagnósticos médicos completos durante o sono.

A atuação como médico clarividente começou com o autodiagnóstico. Depois de ser atingido na coluna vertebral por uma bola durante um jogo escolar, Cayce agiu de forma estranha. Seus pais o colocaram de cama. Para a surpresa deles, ele começou a falar enquanto dormia, diagnosticando sua condição e descrevendo como curá-la. Depois de seguir as instruções do filho adormecido, os pais foram capazes de restaurar sua saúde. 


Logo, os jornais anunciaram Cayce como o "homem comum [que] se tornava médico quando dormia". Em seguida ele aprendeu a estabelecer uma espécie de transe que lhe permitia fazer suas leituras de maneira mais conveniente. Cayce estabelecia um ritmo respiratório, fechava os olhos, murmuravam algumas palavras e então as órbitas rolavam sob as pálpebras, sua pele enrijecia e ficava pálida. O transe estava funcionando e ele falava numa voz monótona diferente da sua, com zumbidos e estalidos. 

Durante sua vida, Cayce fez mais de 14.000 leituras abrangendo uma ampla gama de tópicos. De acordo com seu biógrafo Thomas Sugrue, "Há centenas de pessoas em todos os Estados Unidos que testemunharam a exatidão de seus diagnósticos e a eficácia de suas sugestões de tratamento."

Se todas essas previsões se concretizaram, ainda é motivo de acirrado debate entre defensores e críticos. Mas as análises de saúde de Cayce das décadas de 1920 e 30 impressionam visto que muitas estão de acordo com recomendações válidas para tratamentos nos dias de hoje. Cayce certa vez disse que suas dicas médicas eram sussurradas em sua mente pelas luzes que forneciam as informações durante o transe mediúnico. Elas tinham alegadamente possuíam um conhecimento médico profundo da anatomia e fisiológicas humana. Algo que Cayce jamais poderia saber sem a devida instrução.

Já as fascinantes profecias que ele obtinha durante o transe eram ainda mais difíceis de compreender. Embora algumas tenham se provado precisas, outras permanecem sujeitas a interpretação ou segundo os crentes, ainda irão acontecer. 

Entre as previsões atribuídas a ele estão a Quebra da Bolsa de Valores de 1929 em duas ocasiões distintas, a primeira em fevereiro de 1925 e a segunda seis meses antes do evento, em março de 1929. Ele previu o naufrágio do Titanic e do Lusitânia. Falou do Hindemburg Zeppelin que via envolto por chamas. Também mencionou a Gripe Espanhola e segundo alguns o advento da AIDS. Alguns supõem que ele falou da Pandemia do Covid e previu um surto ainda não ocorrido do que muitos acreditam seja uma mutação do vírus Ebola.


Em 1935, ele previu o desenrolar da Segunda Guerra Mundial, descrevendo uma aliança sem precedentes entre alemães, austríacos e japoneses. Vale a pena observar que essa aliança só viria à tona com a assinatura do Pacto Tripartite em 27 de setembro de 1940. Cayce também previu que "o mundo inteiro seria incendiado pelos grupos militaristas radicais", os homens de botas e uniformes que marchavam orgulhosos para campos de batalha. 

Ele previu as batalhas do Pacífico, a traição da Alemanha Nazista contra os Soviéticos, o cerco de Stalingrado e a queda do Reich. Cayce teria precisado a data da morte de Hitler e o fim da Guerra com o Japão de uma maneira notável. 

Outras previsões surpreendentes do "Profeta Adormecido" incluem o uso do sangue como ferramenta de diagnóstico, os avanços da medicina, os efeitos do fenômeno El Niño e a convergência das empresas de comunicação de forma cooperativa e estruturada. Ele especificou que o mundo seria unido por um sistema de informação acessível a todas as pessoas individualmente. Cada indivíduo teria aparelhos portáteis para comunicação e obtenção de informações. Cayce afirmava ter uma grande sensibilidade para captar abalos sísmicos e quando se mudou para a Califórnia chegou a avisar as autoridades a respeito de tremores mais fortes dias antes deles ocorrerem. 

Um assunto notável foi sua previsão sobre a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto e as pessoas que os criaram, os essênios. Segundo o vidente, este era um povo dotado das mesmas faculdades metafisicas que ele possuía. Os documentos só foram encontrados em 1947, dois anos após a morte de Cayce, mas ele os descreveu com detalhes notáveis fornecendo inclusive dados sobre a forma de escrita dos essênios que sequer era conhecida na época. Para alguns ele disse "eu conheço essa escrita, eu a usei em outra vida".


Uma das mais sensacionais previsões do Profeta Adormecido sem dúvida diz respeito a cidade perdida de Atlântida. Cayce previu sua redescoberta próximo do Atol de Bimini entre os anos de 1968 ou 1969. 

No exato ano de 1968, arqueólogos submarinos encontraram uma formação rochosa subaquática na costa da ilha bahamense de North Bimini. A formação fica a 18 pés abaixo da superfície. Alguns levantam a hipótese de que ela marca a entrada da cidade submersa. Embora o debate ainda esteja em andamento sobre se a estrada de Bimini é natural ou feita pelo homem, sua descoberta aumentou o interesse, e concedeu credibilidade ao vidente favorito dos Estados Unidos. Para alguns Cayce teria dito que as luzes seriam espíritos de Atlântida extremamente avançados que podiam viajar através do tempo e espaço. Por que eles escolheram justamente Cayce para ser o seu porta voz, ele não sabia explicar. Era uma questão que o atormentou até seus últimos dias de vida.

Os testamenteiro de Cayce supostamente mantém cadernos com previsões e envelopes lacrados com datas para eles serem abertos. Alegam que eles contém previsões que ainda irão se realizar, mas que o teor de algumas exige cuidado, pois são demasiadamente perturbadoras. Cayce teria previsto tempos confusos e desafios enormes para a humanidade após o ano 2030. O tempo, é claro, dirá...

Quantas outras previsões ainda aguardam em segredo? Quem seriam as luzes misteriosas que enviavam previsões a Cayce? Qual sua relação com povos antigos que escreveram os Documentos do Mar Morto? Seria ele, realmente um dos últimos Prrofetas tocados por forças desconhecidas?

Só há uma certeza: a de que essas questões jamais serão respondidas satisfatoriamente e que Edgar Cayce continuará sendo pela eternidade um enigma.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O Amuleto do Mastim Alado - Um artefato aterrorizante de um Culto tenebroso

No caixão estava um amuleto de desenho curioso e exótico, que aparentemente tinha sido usado em volta do pescoço do cadáver. Era a figura estranhamente convencionalizada de um cão alado agachado, ou esfinge com um rosto canino, e foi primorosamente esculpido em estilo oriental antigo a partir de um pequeno pedaço de jade verde. A expressão de suas feições era extremamente repulsiva, saboreando ao mesmo tempo morte, bestialidade e malevolência. Ao redor da base havia uma inscrição em caracteres que nem St. John nem eu conseguimos identificar; e na parte inferior, como o selo de um fabricante, estava gravado um crânio grotesco e formidável.

H.P. Lovecraft - O Mastim

Agindo no submundo, longe dos olhos de testemunhas inocentes, os Cultos devotados aos horrores do Mythos de Cthulhu tentam a todo custo manter uma fachada de sigilo indevassável. Afinal, é uma das prerrogativas mais valiosas de qualquer sociedade secreta, manter-se como tal, privando o público de suas ações perniciosas. De que outra forma conseguiriam prosperar se os seus rituais e tradições fossem partilhadas abertamente?

Entretanto, de tempos em tempos, um fragmento de tais atividades medonhas acaba escapando e rompendo a superfície para ser resgatado por indivíduos que só então conseguem obter um lampejo desses cultos abomináveis. Muitas vezes, é por intermédio de artefatos pertencentes a cultos e resgatados por terceiros que temos uma visão das suas atividades mais reprováveis. Os artefatos usados por um Culto dizem muito a respeito dele e de seus membros, lançando uma luz sobre aquilo que eles tem de mais enigmático.

Tomemos por exemplo o blasfemo Culto dos Devoradores de Cadáveres de Leng sobre o qual se sabe muito pouco, mas cuja existência é comprovada pela existência de amuletos usados por eles em seus ritos mais sagrados. Sobre o Culto falaremos mais a miúde posteriormente, já que esse artigo se debruça sobre os curiosos artefatos usados por estes devotos como uma espécie de distintivo de honra.

Esses pequenos berloques são muito bem protegidos pelos sectários e é extremamente raro que um deles seja encontrado ou reclamado. Em geral, ao tomar conhecimento que uma dessas joias cai em mãos de estranhos, os membros do Culto devotam grande esforço para recuperá-las. Há boatos de que uma peça em poder do Museu de Chicago, que estava em exibição na ala de antropologia oriental, foi roubada em plena luz do dia por um indivíduo que quebrou o display e tomou a peça antes de poder ser detido. Outro amuleto similar encontrado pelo arqueólogo e aventureiro Monterrey Jack em uma expedição a Península de Yucatán, teria sido roubado do Museu Nacional de Antropologia da Cidade do México em 1932. Na ocasião um guarda de segurança foi morto e um escândalo foi abafado à respeito de como se deu o roubo na instituição. Seja como for, é possível que outros desses amuletos tenham chegado às mãos de colecionadores privados e museus ao redor do mundo. É provável que muitos deles desconheçam o perigo que correm, meramente em possuir tais objetos em seus acervos.

Os amuletos podem se diferenciar em pequenos detalhes, variando em decorrência do ramo do culto que o criou, mas em geral eles guardam similaridades. São talhados em uma peça única de jade verde profundo. De fato, seus criadores se esmeravam em selecionar as melhores peças minerais, quanto mais verdejante melhor, para a criação dos artefatos. Os amuletos eram confeccionados por artesãos experientes que faziam parte do culto e que concediam à peça a forma desejada. Ele poderia ter formato arredondado achatado, uma forma de drágea ou ainda ser esculpida como uma pequena estatueta. No oriente esta última modalidade é a mais comum, enquanto na América Central, a preferência seja por formas arredondadas. Sabe-se de um secto na Rússia que utilizava peças em forma de gota com detalhes em ouro. De todo modo, os amuletos possuem um cordão, geralmente de couro cru, para que possa ser vestido ao redor do pescoço como forma de identificação.

É comum a todos os amuletos, não importa a cultura, que ele traga a imagem de uma criatura agachada semelhante a um grande cão de corpo delgado dotado de asas, do qual decorre seu nome - Amuleto do Mastim Alado. A representação lembra uma esfinge, com feições claramente caninas, embora um exame mais detalhado mostre detalhes perturbadores na anatomia da criatura. Alguns estudiosos que examinaram o item conceberam erroneamente a teoria de que a entidade retratada fosse o Deus central do Culto, quando na realidade ele é uma espécie de Guardião ou Custodes da seita. É comum que o amuleto traga inscrições com símbolos no verso, em geral caracteres do degenerado povo Tcho-Tcho que teriam sido os precursores na criação desses artefatos. Esses caracteres por vezes sofrem alterações, perdendo seu significado ao longo das gerações, ainda que no Planalto de Leng as peças encontradas mantenham os símbolos intactos. A tradução do trecho é aberta a interpretações, mas acredita-se que o significado mais correto seja algo como:

"Oh, morte fiel que vem nas asas do guardião, 

Não se atrase jamais"

Os amuletos muitas vezes trazem em algum lugar o desenho de um crânio humano estilizado, com a boca aberta deixando à mostra dentes afiados. Este emblema é o símbolo mais conhecido do Culto dos Devoradores de Cadáver de Leng, uma imagem tétrica que se traduz em terror para muitos povos que tiveram o azar de cruzar o caminho dessa seita profana de canibais.

Segundo as crenças sagradas do Culto, os amuletos são criados quando uma vítima usando o amuleto em volta do pescoço é sacrificada por um sacerdote. Geralmente esse sacrifício se dá por enforcamento através de um garrote, mas algumas seitas utilizam um pesado porrete para desferir um golpe certeiro na testa da vítima. O cadáver então é preparado ritualisticamente para consumo, com o Sacerdote responsável pelo ritual se alimentando do coração e oferecendo o restante do corpo aos demais membros numa ceia comunal. Simbolicamente a alma da vítima é marcada e conduzida para um limbo dimensional em que os Mastins Alados habitam. Lá essa alma infeliz é caçada, feita em pedaços, mutilada e devorada pelas grandes bestas através da eternidade. Esse sustento espiritual é oferecido ritualisticamente a cada ano. O amuleto então é removido e presenteado a um membro escolhido pelo sacerdote e que provou seu valor diante da congregação. Ele simboliza um reconhecimento a dedicação e lealdade de um cultista.

Uma vez que o amuleto foi usado para capturar um espírito, acredita-se que ele conserva uma parcela de sua energia vital, podendo ser drenada pela pessoa que o possui. Alguns acreditam que o detentor de um amuleto é capaz de se comunicar com a alma da vítima presa no limbo e que sofre tormentos inenarráveis. Esses amuletos permanecem geralmente escondidos, sendo usados apenas durante os rituais e reuniões do Culto. Membros fora da Seita não devem tocá-los ou mesmo saber de sua existência. Geralmente esses colares são recolhidos após a morte de seu dono e concedidos a outros membros, contudo não é impossível que eles possam ser sepultados junto com cultistas de grande status. 

Os amuletos são imbuídos de poderes ligados à feitiçaria do Povo Tcho-Tcho e são itens que conservam capacidades necromânticas latentes. Além de permitir que seu detentor fale com o espírito aprisionado em seu interior e se valha de energia mística contida nele, os colares são usados como foco em diferentes rituais ensinados aos cultistas a medida que eles avançam nas fileiras da seita. Há relatos de amuletos sendo utilizados para consagrar os doentios rituais antropófagos, para se comunicar psiquicamente com outros membros, para comungar com entidades não humanas e principalmente para invocar os Guardiões do Culto, os terríveis Mastins Alados.

Para esse propósito, o cultista deve ter aprendido o ritual com algum sacerdote que o julgou apto dessa honraria. Para trazer um Mastim Alado ao mundo dos homens é necessário realizar um ritual em que o sangue do invocador é coletado em uma cabaça combinado a raízes e ingredientes e usado para pintar símbolos arcanos em seu corpo. A magia só funciona à noite, e tem maior chance de ser bem sucedida nas noites sem lua. 

Após cumprir os preparativos e pintar no chão um círculo de magia iluminado por nove velas, o realizador entoa um cântico lamuriento no idioma dos Tcho-Tcho que irá estreitar a barreira entre as dimensões e permitir que o Mastim Alado rasgue esse tecido e adentre nossa realidade. O ritual em geral demora nove horas para ser concluído. Se a invocação for conduzida corretamente, um Mastim Alado irá surgir no centro do círculo desenhado com sangue para ouvir o pedido de quem o conjurou. Em geral, esse pedido envolve a destruição de um inimigo, a obtenção de algum objeto de poder ou alguma outra missão em nome do Culto. 

O Mastim, se julgar o pedido aceitável, partirá então para concluir sua parte do acordo, e ao regressar, cobrará um sacrifício a ser entregue pelo invocador. Entre os Tcho-Tcho esse sacrifício podia ser de qualquer mortal, oferecido como tributo e levado para a Dimensão dos Mastins Alados. Dentre as seitas Mesoamericanas convencionou-se que os feiticeiros oferecessem uma criança para saciar a fome das feras.

Possuir ou pior ainda, vestir o Amuleto do Mastim, é um perigo para qualquer um não iniciado nos mistérios do Culto dos Devoradores de Mortos de Leng. Não apenas os cultistas são capazes de rastrear e atacar quem estiver de posse dele, como entidades sobrenaturais terminam por tornar a vida do infiel desagradavelmente curta. Eventualmente o uso de um desses amuletos acaba por atrair a atenção de um Mastim Alado que aos poucos começa a fazer seu caminho para punir o transgressor que inadvertidamente utiliza o amuleto. Estas bestas ferozes de dimensões distantes são mestres na caçada e terríveis rastreadores. Aos poucos a presença deles pode ser sentida com manifestações selvagens ocorrendo ao redor da pessoa amaldiçoada que passa a ver os contornos de outra realidade e sentir a presença cada vez mais próxima da fera. Algumas vítimas descrevem sentir o cheiro nauseante, o som dos uivos cada vez mais próximos e os latidos ferais das criaturas. Por fim, percebem o contorno dessas criatura se formando cada vez mais perceptível em nosso plano.

Acredita-se que feiticeiros Tcho-Tcho saibam como aplacar a fúria dos Mastins e evitar que eles apareçam para demandar sua vingança perante o transgressor. Mas parece pouco provável que eles compartilhem esse saber.

Eventualmente o Mastim Alado irá conseguir atravessar para nossa dimensão com o intuito de perseguir o transgressor. A criatura buscará capturá-lo e este será carregado de volta para o Limbo Dimensional onde amargará um terrível destino. Não existe nenhuma maneira de ludibriar o Mastim que inicia uma caçada, mas é possível que poderosos feitiços de proteção que envolvem o Símbolo Ancestral ou relíquias extremamente poderosas como o Olho da Luz e Trevas possam ajudar.

NOTA: O Conto "The Hound" escrito por H.P. Lovecraft em 1922 e publicado na Revista Strange Tales de fevereiro de 1924 apresenta esse perigoso objeto amaldiçoado e também o Mastim Alado. 

A história narra as desventuras de uma dupla de violadores de cemitérios que roubam e colecionam peças removidas de ataúdes ao redor do mundo. Em uma visita a Holanda eles encontram uma sepultura incomum e dela extraem um amuleto que tratam como um grande prêmio. No decorrer da história descobrem o terrível preço a ser pago por reclamar inadvertidamente esse objeto. O conto é notável por conter a primeira menção ao célebre tomo de conhecimento blasfemo, o Necronomicon

Ele também é notável pela qualidade repulsiva dos dois protagonistas que não apenas são ladrões de sepultura, mas pessoas de hábitos e costumes extremamente reprováveis. Lovecraft se esmerou ao criar dois de seus personagens mais detestáveis, o narrador da trama e seu amigo, identificado como St. John.

A dupla tem um fim medonho, sendo levados às raias da completa insanidade pela vinda cada vez mais próxima do Mastim Alado que chegaria para puni-los.