quarta-feira, 4 de junho de 2025

RPG do Mês - Cthulhu Idade das Trevas - O Mythos na obscura e aterrorizante Era Medieval


A Era Medieval  desperta um estranho fascínio em todos nós. 

É curioso tentar entender porque essa era marcada pelo que muitos chamam de "A Longa Noite", desperta paixões tão grandes em nós. Estou ciente de que nem todos os historiadores hoje concordam com a noção de que o medievo europeu foi uma Era das Trevas, contudo é difícil afastar os indicadores contrários. Embora haja alguns lampejos de genialidade (na Filosofia, na Literatura, na Arquitetura), é indiscutível que guerra, doença, fome, ignorância e injustiça, mazelas tenebrosas foram alguns dos elementos que prevaleciam nessa Era das Trevas.

Apesar disso, não é raro que sejamos atraídos pelo período. Há algo na história medieval profundamente significativo. Seja a visão do heroísmo, da bravura, da perseverança ou outros elementos que devida ou indevidamente associamos aos homens e mulheres que viveram essa época tumultuada da humanidade.

Para nós, Jogadores de RPG, a Era Medieval é especialmente significativa. Nosso hobby nasceu envolto por esse período. Foi com base na Era Medieval que o mais conhecido dos RPG foi construído. Dungeons and Dragons tem como inspiração direta as sagas de cavalaria, de magia e de heroísmo, embora com um viés absolutamente fantástico.

Essa introdução é para falarmos de um outro RPG que nos oferece uma visão da Idade Média, embora se incline sobre elementos mais sérios e menos fantásticos. Em Dark Age Cthulhu temos a chance de vislumbrar um Mundo Medieval bem menos glamourizado e heroico do que em D&D, mantendo os dois pés firmes na realidade histórica brutal do período, com uma única concessão, a de incluir os Mythos de Cthulhu como parte do ambiente.

Cria-se assim um ambiente quase apocalíptico, de horrores profundos, mistérios insondáveis, segredos perigosos, devoção absoluta e fanatismo inquebrantável. Um mundo carregado de simbolismo, superstição e oportunidades narrativas.

Sejam bem vindos a Cthulhu Idade das Trevas. 


Cthulhu Idade das Trevas é um suplemento para a 7ª edição de Chamado de Cthulhu editado pela Chaosium e publicado no Brasil pela New Order. Cabe dizer que esta é a terceira encarnação deste livro. Ele começou como um suplemento alemão escrito por Stephane Gesbert com o título Cthulhu 1000 AD. Tornou-se Cthulhu Dark Ages em 2004 no formato de um RPG independente, contendo uma versão abreviada das regras de Chamado então na 6ª edição. A Chaosium publicou uma série de aventuras para ele como parte de sua linha de monografias e também o utilizou como base para o suplemento Mythic Iceland do BRP. Após o lançamento da 7ª edição, Chad Bowser e Andi Newton fizeram uma revisão, oficialmente conhecida como Cthulhu Dark Ages Second Edition, que ficou disponível em quantidade limitada. Cm a nova edição, a Chaosium lançou uma versão mais caprichada da obra de Bowser e Newton, colorida e com a diagramação de sua edição mais recente. 

Essa versão de Cthulhu Dark Ages tem 274 páginas, com material colorido e ilustrado por completo, com uma combinação de desenhos modernos e arte contemporânea que remete ao Livro de Kells e a Tapeçaria de Bayeux, talvez as duas mais importantes obras medievais. Há vários mapas no livro – da Inglaterra Anglo-Saxônica, da cidade de Totburh (base para aventuras nessa edição), um mapa das Fronteiras Ocidentais (perto da fronteira anglo-galesa, ao longo do Rio Severn – que inclui Totburh), o Mosteiro de St. Swithun, nas proximidades, e de locais das aventuras incluídas no livro. 

Enquanto o Cthulhu Dark Ages original (e Cthulhu 1000 d.C. antes dele) era um guia genérico para a Europa por volta do ano 1000 d.C., a versão mais recente, embora possa lidar com campanhas em qualquer lugar da Europa, concentra-se na Inglaterra anglo-saxônica de 950 a 1050 d.C. Lembro de ter gostado do Cthulhu Dark Ages original (a resenha inclusive pode ser achada aqui no Blog), mas de ficar um pouco perdido sobre como dar vida a ele. O período em torno do ano 1000 é bastante estranho para nós, ainda mais se considerar o realismo da ambientação. Embora os jogos tradicionais de Cthulhu sejam ambientados na década de 1920 e tenham seus próprios desafios, ainda é um mundo que conseguimos reconhecer. Já a Era Medieval é quase outra realidade. 

Essa aliás é uma das propostas do jogo. Cthulhu Idade das Trevas tenta se dissociar de toda e qualquer visão romântica da Era Medieval, apostando justamente nos elementos históricos que a descrevem como um lugar que, bem, você não gostaria de visitar (e se visitasse talvez não conseguisse sobreviver). A Era das Trevas descrita nesse Guia de Ambientação é suja, violenta, cheia de superstição e com personagens desesperados. Ao invés dos acadêmicos intelectuais e de indivíduos esclarecidos que marcam as ambientações clássicas de Cthulhu, aqui temos pessoas que temem a noite e o que ela esconde e que provavelmente resolverão suas desavenças na ponta de uma espada. 

O livro ajuda a estreitar o foco e fornece detalhes adicionais valiosos para compreender esse mundo. Isso deixa o leitor mais confortável para experimentar o jogo contando com uma rica tapeçaria histórica que serve como base para testar a ambientação.


Mas como funciona um mundo medieval no qual os horrores do Mythos de Cthulhu espreita nas trevas?

Muito bem, eu diria sem sombra de dúvida. Chamado de Cthulhu é por definição um jogo em que os personagens estão sempre em desvantagem em relação aos seus opositores, mas talvez em nenhum outro cenário isso seja tão dramático quanto aqui na Idade das Trevas. Se por um lado os personagens possuem acesso a armas, armaduras e uma fé implacável que lhes serve de cobertor, por outro eles tem que lidar com a mesma impotência diante das forças do Mythos - e com alguns agravantes. As armas que eles tem à sua disposição são incrivelmente ineficazes contra as criaturas, suas armaduras provavelmente não irão protegê-los e sua fé pode acabar sendo mais um revés do que um benefício, visto que se ela lhes for arrancada, o que resta para fornecer algum conforto?

Os personagens nessa ambientação são indivíduos que não tem a quem recorrer durante suas investigações. Muitos deles serão iletrados, e mesmo que eles consigam ler o que está em um tomo, este provavelmente estará trancado na biblioteca de um monastério. Mais perigoso ainda, enquanto nas outras ambientações você pode ser mandado para um manicômio, aqui o risco é ser queimado em uma fogueira como bruxo ou herege. Pior ainda, você pode ser preso, torturado e condenado sem a necessidade de provas já que a justiça depende mais de seu status do que dos seus crimes.

Finalmente não faltam cultos agindo às escondidas, sequestrando, sacrificando e louvando os Antigos com um fervor ainda maior do que em épocas mais esclarecidas. Aqui os cultos parecem ainda mais terríveis e muito mais determinados em seus planos malignos. Bruxas, feiticeiros e cultistas estão muito mais à vontade para agir do que em qualquer outro período histórico. Isso tudo sem mencionar que as próprias criaturas agem mais às claras, sob o véu de serem tratadas como demônios pela lógica cristã.

Em essência, essa é uma ambientação que oferece uma dramática mudança na forma como os investigadores terão de abordar os mistérios que lhes serão propostos e de como terão de resolver os casos. É quase como um jogo totalmente diferente.

O livro oferece bem vindos conselhos de como abordar essas diferenças com "Exemplos de Testes de Jogo" – discussões sobre como as coisas funcionaram em várias sessões. Achei bem interessante essas discussões, pois fornecem exemplos de como o cenário e as regras específicas se encaixam no jogo real, que tipo de coisas surpreenderam os autores etc.

A seguir, vou analisar mais a miúde cada capítulo do livro e falar um pouco sobre os temas bordados neles.

Capítulo 1: Inglaterra Anglo-Saxônica


Com a Inglaterra Anglo-Saxônica sendo o cenário padrão para Cthulhu Idade das Trevas, o capítulo de abertura nos apresenta o país em detalhes. Os vários tipos de assentamentos são descritos – incluindo os assentamentos fortificados conhecidos como Burhs – onde as moedas são cunhadas e que servem como centros de comércio. O Rei Alfredo planejou a rede de Burhs de forma que nenhum assentamento anglo-saxão estivesse a mais de um dia de marcha dos demais. Isso os torna excelentes bases para campanhas. A lista de Reis discute como o controle da Inglaterra começou com a Casa de Wessex, quando foi tomado pela Casa da Dinamarca, passando de uma dinastia para outra sucessivamente. Esse contexto histórico é bastante útil para entender o pano de fundo da ambientação base, ainda que não se aprofunde excessivamente na história - o que poderia ser um tanto chato. 

O capítulo também ensina muito sobre a estrutura social da Inglaterra Anglo-Saxônica, o papel da família, das mulheres, das crianças e do casamento na cultura. Nesse período, a escravidão ainda é praticada – com muitos se tornando escravos por não conseguirem pagar multas associada a uma pena criminal ou quitar os impostos.

A arquitetura é discutida, incluindo a prevalência de ruínas romanas na velha Província de Britania. Considerando que os personagens, além de enfrentar criaturas do Mito, enfrentarão humanos perigosos, a seção sobre crime e punição é de grande interesse. Os leitores notarão dois aspectos do código penal muito estranhos à nossa sensibilidade moderna. Um crime cometido em segredo acarreta uma punição maior do que um cometido abertamente, e a severidade da sentença depende da classe social da vítima. Além disso temos sentenças definidas por vontade divina - como se Deus separasse culpados de inocentes.

Aspectos como religião, entretenimento, guerra, alfabetização e outros são discutidos e todos são relevantes para a ambientação. Embora oficialmente a Inglaterra anglo-saxônica seja cristã, as influências pagãs dos "antigos costumes" das crenças anglo-saxônicas são discutidas, assim como o paganismo nórdico. Maneiras de vincular divindades do Mythos a crenças pagãs são oferecidas, com o aviso pertinente de não incluir o Mythos em tudo. Saúde, cura e morte têm sua própria seção – este não é um conjunto de regras do jogo, mas sim uma discussão sobre saneamento, doenças, tratamentos e práticas de morte e sepultamento.

A seção termina com um guia geográfico da Inglaterra anglo-saxônica, com opções para inserir elementos do Mythos. Tudo muito conciso e interessante para contexto do período.

Capítulo 2: A-Z da Idade das Trevas


O segundo capítulo fornece "detalhes resumidos" de vários aspectos da vida por volta do ano 1000. Isso inclui um lembrete de que a Idade das Trevas foi bem diferente da Alta Idade Média, da qual a maioria dos RPGs de fantasia se inspira. Ao contrário do capítulo anterior, esta porção é mais genérica, focada na vida das pessoas em geral. Ele aborda conceitos como batalha, castelos, o diabo, tomada de reféns, cavaleiros, alfabetização, tradições orais, magia, justiça criminal, hierarquia da igreja, vida rural, servidão, escravidão, o sobrenatural, contagem do tempo, viagens e a natureza selvagem.

Embora não haja mecânica de jogo neste capítulo, exceto por uma discussão sobre como representar a alfabetização em termos de jogo, trata-se de um capítulo bastante valioso. É repleto de detalhes para ajudar a conduzir ou jogar nessa época. Um lembrete da importância da comunidade, de como os estranhos são vistos com desconfiança, de como os castelos são geralmente de madeira e terra, com a pedra começando a ser usada nas torres normandas. Há até uma seção sobre humor, como a famosa anedota da Saga de Njal.

A exposição deste capítulo dá vida ao período de uma forma que listas de reis, condes e preços de equipamentos jamais dariam. Eu gosto de pensar nesse material como um compêndio útil para outras tantas ambientações mais realistas se passando na Idade Média. 

Capítulo 3: Investigadores da Idade das Trevas

Sem surpresas, esse capítulo aborda as mecânicas de jogo, detalhando como gerar um investigador da Idade das Trevas. O processo é basicamente o mesmo das demais ambientações, com algumas mudanças pontuais quanto a habilidades para melhor representar o período. Como nenhum investigador da Idade das Trevas terá a habilidade de dirigir um automóvel ou portar armas de fogo, então essas habilidades desaparecem sendo substituídas por outras mais adequadas. 

Algumas das mudanças mais notáveis incluem: Status – que substitui a classificação de Crédito, embora seja usado essencialmente para o mesmo propósito. Dependendo do seu estilo de jogo, há opções para ter um Status que varia de acordo com organizações/grupos. Ele mede sua importância, riqueza relativa e acesso a bens para troca (já que a troca é muito mais comum). Leitura e Escrita são coisas separadas, já que falar um idioma não se traduz em alfabetização. O Conhecimento de seu Reino natal e de Outros Reinos forma um conjunto de habilidades que permite aos personagens entender os costumes, as lendas e as tradições dos diferentes reinos.

Há uma lista de ocupações condizentes para o Período Medievo. Não são tantas opções quanto as presentes no Manual do Investigador, mas ainda assim é uma boa variedade – guerreiros, eremitas, curandeiros, menestréis, sacerdotes, eruditos, marinheiros, etc. De um modo geral, você encontrará várias opções interessantes para retratar os personagens.

As tradicionais tabelas para ideologia, pessoas significativas, locais significativos, posses preciosas e características também foram adaptadas para o período, e uma tabela para eventos de vida (que pode conceder pequenos bônus e penalidades a várias perícias e atributos) foi incluída.

Há uma seção que discute o sexo do seu personagem – incluindo uma discussão sobre mulheres excepcionais que tiveram importância histórica reconhecida. O livro tenta ser mais abrangente quanto a questões que envolvem o sexismo da época, mas a interpretação final cabe ao Guardião. Ele deve arbitrar o que é permitido ou não em sua mesa, dependendo apenas do quão realista ele prefere sua sessão.

Assim como no Manual do Investigador, há uma seção sobre organizações e sociedades que os investigadores podem fazer parte. Ela começa com a ressalva de que ordens de cavalaria, ordens religiosas de longo alcance e guildas mercantis não se tornarão predominantes até pelo menos o século XII – embora, deixando esse aviso de lado, os grupos sejam incentivados a ficar à vontade para usar tais organizações se isso facilitar suas campanhas. Duas organizações são apresentadas. A primeira são os Congregantes, grupos de monges beneditinos e irmãos leigos que investigam mosteiros – formados depois que um desses grupos encontrou horrores indizíveis em um mosteiro. A segunda é a dos Dízimos de Eawulf que busca confrontar religiosos que se voltaram para os Horrores ancestrais.

O capítulo termina com uma seção sobre equipamentos – que vão de instrumentos musicais a suprimentos básicos, provisões, armas e armaduras. As armas são basicamente o que se esperaria para a época – machados, manguais, facas, lanças, espadas, arcos, fundas e bestas. As armaduras oferecem uma proteção variável que pode ajudar os personagens a sobreviver aos combates, além de regras para o uso de escudos.

Capítulo 4 – Sistema de Jogo


Enquanto o Capítulo 3 abordou as regras para a criação de investigadores durante a Idade das Trevas, o Capítulo 4 se concentra nos elementos de jogo. Ele aborda itens que provavelmente surgiriam em sessões teste de Cthulhu Idade das Trevas, isso inclui notas sobre escambo, quebra de objetos, uso da tradição oral para transmitir o saber do Mythos, ajustes para o combate com regras opcionais como uso de escudos, montarias, etc. Há também regras para venenos, poções e doenças. A introdução de uma regra opcional contemplando ferimentos graves, torna o jogo ainda mais mortal. Outras opções abordam conceitos como quebra e desgaste de armas.

Há alguns ajustes bem vindos no que tange as regras de sanidade. Isso inclui uma discussão sobre problemas de saúde mental durante esse período – com duas doenças mentais reconhecidas – "idiotice" (algo com que você nasce) e "loucura" (algo que acontece com você). Não há conceitos como paranoia, agorafobia, etc. (embora os personagens ainda possam sofrer com elas). Dada a maior quantidade de violência na época, os personagens não precisam fazer testes de sanidade com tanta frequência para ocorrências dessa natureza, embora sejam tão vulneráveis ​​ao sobrenatural quanto os personagens modernos.

Personagens que sofrem crises de loucura têm tabelas ligeiramente alteradas para rolar. A recuperação de insanidade pode ser feita com cuidados domiciliares, em monastérios ou em peregrinação. Aqueles sem meios de recuperação podem ser expulsos e se tornar andarilhos, uma posição bastante perigosa em uma era em que a comunidade é vital para a sobrevivência.

Existem algumas regras alternativas para Testes de Sanidade: em vez de fazer testes de sanidade, os personagens fazem um teste contra sua perícia Mundo Natural ou Religião, dependendo da situação. Se obtiverem "sucesso" no teste, não serão capazes de processar a situação, como se tivessem falhado em um Teste de Sanidade. E uma mudança bem interessante e que faz sentido, considerando que os personagens tem uma forte afinidade com a sociedade a que pertencem.

Capítulo 5: Horror Investigativo na Idade das Trevas

O Capítulo 5 é um dos capítulos principais para o Guardião e foca na condução do jogo. Ele aborda tópicos como reunir o grupo, fazer ele funcionar e como dar vida ao mundo que os cerca. Também discute a eterna questão em jogos históricos: "quanta história é interessante introduzir na mesa?".

A seção sobre pistas discute a possibilidade muito real de que nenhum dos personagens tenha a habilidade necessária para ler os Tomos do Mythos, tão frequentemente encontrados em jogos da era mais moderna. Uma possibilidade é usar Tradição Oral. Um aviso comum é não fazer tudo ter elementos do Mythos. – nem toda saga precisa se referir ao Mythos, assim como nem todo livro da década de 1920 vem repleto com esse saber profano. Além disso, mesmo sem ler tomos, as pistas podem ser transmitidas de uma maneira alegórica perceptível – animais reagindo a efeitos sobrenaturais, velhos testemunhos e lendas fornecem as pistas de maneira bastante interessante.

Um conselho frequente envolve não esconder pistas importantes, ao invés disso, ao procurar uma pista, transforme uma falha em uma oportunidade para introduzir uma complicação em vez de simplesmente negar a informação. Há também orientações para evitar o hack & slash – algo interessante para conter o ímpeto de jogadores de fantasia medieval.

Capítulo 6 – O Mito de Cthulhu na Idade das Trevas

Os autores não oferecem uma visão "canônica" do que é o Mythos na Idade das Trevas, mas apresentam diversas opções. Isso inclui a opção tradicional de que o Mythos é totalmente alheio à experiência humana. Outra opção é adaptar criaturas do folclore e das lendas para mascarar as entidades e criaturas. Há também uma discussão sobre o uso de crenças religiosas – conceitos teológicos como o "O Livro dos Vigilantes", que discute os 199 anjos caídos, como o Limbo pode ter gerado Yog-Sothoth e o uso do avatar do Homem Negro, Nyarlathotep, como o Diabo em pessoa.

Vários locais do Mythos são detalhados para os Guardiões; desde ilhas perdidas a destinos na Inglaterra, passando pela Cidade Sem Nome no Grande Vazio da Arábia. Vários cultos são detalhados, algo muito útil para criar suas próprias histórias. Há também uma discussão sobre como as Divindades do Mythos poderiam ser interpretados na Idade das Trevas.

Há a seção obrigatória sobre tomos do Mythos, acompanhada por uma seção sobre poemas e livros de ocultismo que não são do Mythos, mas que ajudam a compor o rudimentar ambiente acadêmico. Há uma discussão sobre diferentes tipos de feitiçaria além da magia tradicional do Mythos – Magia Ritual e Magia Folclórica. O capítulo termina com uma lista de novos feitiços, muitos dos quais na lista de Folk Magic o que é bastante condizente com as superstições que permeavam pelo período.

Capítulo 7 – Bestiário

O Bestiário é dividido em três seções. A primeira detalha novos monstros do Mythos. A segunda aborda monstros do folclore, com Pôncio Pilatos fazendo uma aparição como um vampiro. Finalmente, há uma seção sobre animais mais mundanos. 

Há uma boa variedade de monstros, abominações e terrores únicos como os cu sith, servos dos Cães de Tindalos; a terrível Névoa sem Nome; e os selvagens skrælings, que travaram guerra contra os hiperbóreos, entre outros. Serei bastante vago sobre esse capítulo já que essas criaturas devem ser exclusivas para o Guardião.

Capítulo 8 – Totburh

Este capítulo faz um excelente trabalho detalhando a cidade fictícia de Totburh, que serve como uma espécie de base para os personagens dos jogadores. Ele evoca a aura de assentamentos rurais isolados e que constituem uma pequena luz de civilização em meio a um mar revolto de selvageria e incertezas. 

Totburgh é uma aldeia fictícia do final da Idade Média, como muitas outras que desapareceram com o passar do tempo. A maneira como ele é descrito faz com que o vilarejo ganhe vida com habitantes interessantes, lugares relevantes e ameaças que povoam os arredores e que tem muito potencial para a criação de cenários. A maioria dos habitantes locais tem ganchos opcionais para envolver o Mythos, permitindo que os Guardiões enfatizem o tipo de horror e as criaturas que mais lhes agrada. 


O vilarejo também pode ser um assentamento para os investigadores meramente visitarem. Ele é pequeno o suficiente para ser explorado numa noite, mas grande o bastante para que haja muitos mistérios a serem investigados. Um burh como Totburh é um lugar fortificado, criado para proteger uma espécie de casa da moeda. Três de seus lados são guarnecidos por muros de madeira, enquanto um quarto, próximo ao Rio Severn, é de pedra. Perto dali, há um mosteiro e uma vila viking que ameaça a região. Uma floresta próxima esconde segredos, bandidos e uma variedade de ganchos do Mythos. Também nas proximidades há um forte abandonado da Idade do Ferro e ruínas romanas cheias de lendas. 

Os NPCs possuem histórias interessantes que podem ser bem aproveitadas e que fornecem ideias para se tornarem importantes na vida dos personagens dos jogadores. Uma coisa que gostei é que o Guardião pode fazer uma campanha inteira acompanhando a passagem do tempo, com os investigadores envelhecendo, casando, tendo filhos e até netos. 

Quanto às aventuras dos capítulos 9 a 11, fico indeciso sobre quanto detalhe fornecer, visto que grande parte do prazer em aventuras vem da surpresa. Vou alertar sobre SPOILERS, dando uma visão geral bem básica sobre cada trama.

Capítulo 9: A Caçada

A Caçada foi projetada para ser uma aventura introdutória e, como tal, é bastante linear. Os investigadores participam de uma caçada a um lobo perigoso que vem aterrorizando a região durante o inverno. No entanto, à medida que o cenário avança, descobre-se que há mais do que um simples predador à solta. Embora linear, existem alguns caminhos que os investigadores podem seguir.

Como a maioria das boas aventuras introdutórias, esta apresenta uma série de conceitos importantes para os investigadores. Ela os familiariza com Totburh, seus habitantes e os arredores imediatos. Oferece várias maneiras de obter pistas – visitar um scriptorium religioso e examinar tomos são uma opção, mas é possível reunir pistas e informações apenas por meio da interação com os NPCs. O cenário oferece opções de expansão – encontros opcionais e oportunidades para aumentar a ação.

Capítulo 10: A Perdição que Veio a Wessex

Apesar da semelhança no título, este cenário não está relacionado ao conto de Lovecraft, "A Perdição que Veio a Sarnath". A trama é um pouco mais aberta do que o cenário anterior. Começa com uma cena de ação – um ataque viking a Totburh. De lá, os investigadores precisam ir ao mosteiro próximo, que pode também ter sido atacado pelos viking. O que eles encontram é um mosteiro sob a influência da magia do Mythos – os investigadores precisarão descobrir o que desencadeou isso e como desfazer esse mal. Há uma série de pistas para os investigadores encontrarem, tornando este, apesar da cena inicial, um bom exemplo de uma investigação durante a Idade das Trevas.

Capítulo 11: Eseweald

Este cenário final lida com Totburh sendo ameaçada em duas frentes – pelos vikings e pelos Cymric. Oswyn, o ancião da vila, envia seu filho para liderar uma delegação para negociar um tratado com os Cymric, mas não recebe resposta deles. Os investigadores devem determinar o que aconteceu com a delegação enquanto lidam com as relações desgastadas com a cidade vizinha de Corduon. 

Neste cenário, o Mythos é, em vez da ameaça principal, um catalisador que ameaça desencadear uma guerra na região. Gostei de como este cenário prepara a cena para eventos posteriores – as ações dos investigadores podem levar os Cymric a se aliarem aos anglo-saxões de Totburh ou a se aliarem aos vikings.

Apêndices

O livro termina com quatro apêndices. O primeiro deles é um glossário da Idade das Trevas. É um glossário abrangente, que cobre desde a aparência dos livros até relógios de água, idiomas e relíquias. Não é exatamente o tipo de coisa que Guardiões e jogadores irão consultar, mas sim um bom recurso para inspiração.

O segundo apêndice é uma linha do tempo da Idade das Trevas, abrangendo o período de 950 a 1054. Ao contrário da maior parte do livro, não se concentra na Inglaterra anglo-saxônica, embora os principais eventos ingleses, como a conquista dinamarquesa da Inglaterra em 1013, sejam abordados.

O terceiro é um Quem é Quem, discutindo uma variedade de monges importantes e listas de reis e imperadores – abrangendo regiões como o Império Bizantino, França, Inglaterra, o Sacro Império Romano Germânico, Papas e muito mais.

O apêndice final é uma bibliografia de fontes da época, tanto populares quanto acadêmicas, usadas para compor Cthulhu Idade das Trevas. Eu gostaria de mais detalhes sobre cada livro, quem os escreveu e onde poderiam ser encontrados. Ainda assim, é muito útil ter essas referências à mão. Há também uma lista de filmes para inspiração que incluem desde Monty Python em Busca do Cálice Sagrado até O Sétimo Selo e O 13º Guerreiro. Todos ótimos filmes para inspirar visualmente os cenários.

Considerações Finais


Quando terminei de ler Cthulhu Idade das Trevas surgiram muitas ideias para uma campanha se passando nessa ambientação, o que via de regra é um ótimo sinal. Apenas os melhores cenários mexem com nossa imaginação dessa maneira. O livro praticamente implora para não ser deixado na prateleira, ao invés disso, merece ser usado na mesa de jogo, nem que em uma one shot

É preciso deixar claro mais uma vez, correndo o risco de soar repetitivo, que esse não é um livro de D&D onde por acaso figura a presença de Cthulhu. Ainda é Chamado de Cthulhu, mas em um cenário diferente e muitíssimo interessante. O combate é tão mortal quanto sempre foi – talvez ainda mais sem acesso à medicina moderna. Ainda há a chance de aprender sobre o Mythos e receber feitiços, mas como sempre existe o risco de ser consumido por esse conhecimento perigoso. As investigações terão uma interpretação diferente e os jogadores terão de se virar para chegar a solução dos mistérios. Nada é garantido nesse lugar escuro, sujo e assombrado. 

Lovecraft escreveu: "A emoção mais antiga e forte da humanidade é o medo, e o tipo mais antigo e forte de medo é o medo do desconhecido". Como em qualquer jogo de Chamado de Cthulhu, os personagens enfrentarão horrores além da compreensão e da realidade de sua época. Em um jogo moderno, a compreensão científica e tecnologia se mostram incapazes de entender o Mythos. Na Idade das Trevas, é a crença religiosa e a superstição que falham nessa mesma tarefa. A compreensão do universo, tanto dos investigadores modernos quanto dos da Idade das Trevas, é incapaz de aceitar a realidade apocalíptica do Mythos. Não importa quando, não importa onde, qualquer um capaz de entender o Mythos já está perdido. 

Seja no ano 1000, em 1920 ou em 2025. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário