Canibalismo em massa parece algo saído de historias de terror e não da historia real. Contudo, um inverno particularmente severo na era medieval deixou muitos questionamentos em aberto sobre o tema e poucas respostas.
Por mais que queiramos nos dissociar dessa ideia atroz, os rumores sobre o que aconteceu naquele inclemente início do século XIV, jamais será esquecidos e segue nos assombrando. A tragédia deixou um lembrança amarga que marcou a Europa para sempre.
O que dê fato aconteceu nesses anos congelante e que as pessoas preferiam não falar a respeito? Seriam os rumores murmurados verdadeiros? Teria esse sido um dos piores anos da humanidade coo dizem alguns cronistas?
Para entender como as coisas aconteceram, temos de voltar no tempo até o distante ano de 1320. Aquele foi um ano que se iniciou como qualquer outro na Europa continental, ao menos até a natureza aparentemente se revoltar e parar de oferecer alimentos para a sobrevivência da população.
O que se iniciou com chuvas fortes fora da estação, progrediu para enormes enchentes de proporções nunca antes vistas. As inundações se provaram um verdadeiro desastre: mudaram o curso de rios e áreas ribeirinhas foram consumidas por uma torrente de água que arruinou a agricultura. Campos de cultivo viraram um lamaçal, plantações morreram inundadas e silos de estocagem foram destruídos por completo. O Verão, Primavera e Outono foram marcados por chuvas torrenciais que pareciam não ter fim. Como o Dilúvio bíblico, a Europa se viu de baixo da água.
Para piorar os anos anteriores também haviam sido de escassez e as reservas de alimentos estavam perigosamente baixas. Quando as chuvas começaram a amainar, os fazendeiros se viram a diante da horrenda constatação de que suas reservas de alimento para enfrentar o rigor do inverno estavam muito abaixo do necessário. De fato, em breve não haveria o que comer.
As fazendas ainda tentavam se recuperar do catastrófico ano de 1316 que resultou em colheitas insatisfatórias e em um período de fome sem precedente. Contudo, o que viria a seguir era muito pior, muito mais perigoso e terrível.
Muitos fazendeiros foram obrigados a abater seus animais após fazer as contas e constatar que não haveria como mantê-los ao longo da estação mais fria do ano. Simplesmente não tinha como alimentá-los. Contudo, a única maneira de conservar a carne também se tornou dispendiosa, já que as enchentes alagaram as minas de sal. Com efeito, sal passou a valer tanto quanto ouro, um recurso que a maioria não podia pagar.
Os grãos estocados começaram a apodrecer por conta da umidade, assim como a lenha usada para alimentar os fornos e fogueiras. Logo, o pão atingiu um preço nunca antes visto, custando mais do que uma pessoa recebia em uma semana. A fome começou a se espalhar com enorme rapidez. Vilarejos e aldeias foram se esvaziando, com a população vagando sem destino em busca de um lugar menos depauperado. Infelizmente, constatavam que a tragédia havia atingido todas as regiões vizinhas. A fome era geral, o desespero completo!
Quando o estômago começou a reclamar, e nada havia para aplacar o vazio as pessoas recorriam a qualquer coisa que pudesse aplacar a sensação. Isso os levava a comer coisas que jamais considerariam anteriormente. Grama, embora rara, se tornou uma opção viável quando fervida em um caldeirão numa massa verde e insossa. Madeira de Árvore também era fervida ou transformada em sopa. Ossos de animais que já haviam sido descartados ganhavam uma segunda chance, moídos e dissolvidos em água fervente para virar um cozido ralo. Até itens de couro se tornaram alimento emergencial, com cintos, luvas e mesmo sapatos sendo fervidos até amolecer e poderem ser comidos.
Cães, gatos e ratos se converteram numa ração necessária para sustentar famílias inteiras. O sangue de cavalos era drenado e misturado a qualquer alimento para dar algum gosto. Pombos e pássaros silvestres eram capturados e assados inteiros, nem mesmo as penas eram desperdiçadas. A ordem do dia era conseguir qualquer fonte de proteína. Fungos e liquens podiam ser raspados de pedras indo direto para a panela. Ate mesmo lama e barro cozido podia ser comido na esperança de absorver alguns minerais.
O desespero e carestia fez com que o pior aflorasse endurecendo o coração de pais e mães que abandonavam seus filhos à própria sorte. As crianças mais fortes eram escolhidas, as que aparentavam fragilidade não tinham tanta sorte.
Mas mesmo essas medidas desesperadas não foram suficientes para algumas pessoas e limites que geralmente não são cruzados por constituir tabus ancestrais acabaram sendo ultrapassados.
Registros de cortes de justiça desse período contam historias que parecem inacreditáveis. A fome conseguiu empurrar as pessoas além de todas as fronteiras morais e éticas pelas quais elas viviam até então. O sistema legal começou a documentar crimes que ninguém poderia prever, quanto mais categorizar e menos ainda julgar. Havia casos de pais que cozinharam e devoraram seus próprios filhos. Juízes tinham de lidar com famílias que estavam literalmente morrendo de fome e que escolheram sacrificar alguns dos seus para que outros sobrevivessem.
A justiça da Alemanha condenou uma mulher por matar e transformar os restos do marido em carne moída para a vizinhança. Um mercado de carne de procedência duvidosa supostamente de porco, começou a operar no submundo de Bremen. Alguns se perguntavam que carne era aquela, outros preferiam não saber. Vilarejos em Flandres reportaram o desaparecimento de pessoas e mesmo em Paris, na calada da noite, mendigos sumiam em vielas escuras. Ao mesmo tempo, o açougue local recebia um misterioso estoque de carne que chegava sem ninguém saber de onde vinha.
Ate mesmo os corpos de prisioneiros executados, orgulhosamente pendurados em muros ou postes, sumiam de madrugada. Mesmo os mortos não podiam descansar em paz já que cemitérios eram constantemente escavados por ladrões famintos. Crônicas da Dinamarca e Países Baixos atestam que cemitérios eram constantemente vasculhados em busca de mortos recentes. Algumas pessoas eram contratadas para vigiar os mortos ou parentes devotos ficavam de prontidão. Ainda assim, cadáveres sepultados recentemente seguiam sumindo. Os corpos duros e emaciados eram carregados para as casas, esquartejados e fervidos em potes e caldeirões.
As florestas e matas eram uma espécie de campo de caça para camponeses famintos que vagavam aos bandos cercando e perseguindo grupos menores que cruzasse seu caminho. As turbas de canibais se multiplicavam. Os ladrões habituais de beira de estrada passaram a visar mais do que objetos e posses, eles desejavam a carne de suas vítimas.
A maior parte dos casos de canibalismo ocorriam depois de os recursos se exaurirem por completo e pelo menos um membro da família morrer de inanição. A maioria das comunidades tentava recorrer a outros métodos antes de abraçar o canibalismo, afinal essa não era uma decisão fácil. Nessa época, estranhos ou forasteiros corriam enormes riscos ao viajar para lugares onde não eram conhecidos. Eles podiam afinal, serem convidados a ficar para o jantar, sem saber que seriam o prato principal.
Curiosamente, a Grande Fome atingia a todos, ricos e pobres, nobres e plebeus. De nada adiantava ter ouro e tesouros, se estes não podiam comprar nada. Alguns se tornavam predadores, outros se convergiam em presas. Órfãos, velhos e prisioneiros eram alvos prováveis, pois não haviam muitas pessoas dispostas a protegê-los da sanha faminta das multidões. Se eles desapareciam, ninguém dava pela falta. Algumas aldeias da Normandia organizavam ceias nas quais a origem do alimento oferecido não era questionada. Ao mesmo tempo, masmorras e orfanatos eram esvaziados da noite para o dia. A regra era não discutir, aquilo que não valia a pena discutir.
Igrejas e monastérios conseguiam lidar um pouco melhor com a situação pois muitos possuíam despensas cheias de anos anteriores. Mas quando a população descobria esses depósitos ocultos, muitas vezes se iniciava uma revolta e saque. A devoção religiosa diminuía com a fome. As instituições europeias não estavam preparadas para lidar com a gravidade da situação e não conseguiram reagir a tragédia. Líderes religiosos eram questionados por uma solução para o sofrimento. O Papa declarou que a Grande Fome era uma punição divina pelos muitos pecados cometidos pela humanidade. Padres sugeriam que se rezasse e jejuasse, quando o problema era justamente a falta do que comer. Era como prescrever dieta para quem já estava faminto.
Os Reis descobriram que sua autoridade de nada valia, quando os exércitos minguavam e as estradas se transformavam em um caos. Mesmo os monarcas mais poderosos da época não podiam criar comida do nada. Silos de estocagem acabaram sendo pilhados e preciosos grãos levados pela população, o que motivou a defesa desses lugares por tropas implacáveis. Qualquer um que fosse pego roubando grãos podia ser executado imediatamente. Essa foi a época em que leis encaravam roubar pão ou abater um gamo, motivo para enforcamento.
Revoltas ocasionadas por fome se tornaram cada vez mais comuns pela Europa à fora. As leis se derreteram e a obediência civil com ela. O ódio pelos ricos - que supostamente escondiam comida, se tornou endêmico e plantou as sementes de futuras revoltas de camponeses. Nem a Igreja católica escapava da fúria do povo.
Eventualmente a longa provação do inverno passou e as chuvas diminuíram trazendo uma primavera mais amena, ainda assim, os profundos traumas deixados por esse terrível ano não foram esquecidos facilmente. O temor de que isso voltasse a acontecer fez com que o cotidiano medieval fosse alterado para sempre. Antes havia um receio quanto a passar fome, agora havia um terror paupavel de tal coisa voltar a acontecer. Conselhos municipais exigiam que impostos fossem usados para comprar rações emergenciais que estivessem disponíveis para o inverno seguinte. Agricultores foram forçados a usar métodos de revezamento do solo e promover a estocagem de grãos.
Centenas de vilas foram abandonadas e jamais foram reconstruídas e a sensação de que as cidades grandes lidaram melhor com a crise motivou uma enorme evasão dos campos inflando os centros urbanos com mais e mais gente.
O folclore medieval incorporou dezenas de fábulas populares à respeito de crianças atormentadas por bruxas famintas dispostas a lançá-las em seus caldeirões e transformá-las em refeição. Muitas dessas historias aterrorizantes se originaram durante a Grande Fome, mas acabaram sendo disfarçadas como parte do folclore local. Em seu íntimo, as pessoas sabiam que não havia encanto na fábula de João e Maria.
A Fome se Fim, como ficou conhecido o período mostrou como o senso de preservação pode se impor aos dilemas éticos. A sociedade humana parece ser bem mais frágil do que imaginamos quando colocada face a face com o impensável. Só podemos esperar que tal provação não venha novamente.
Conhecia esse período medieval de fome e escassez. Mas não sobre esse canibalismo generalizado. Horror!
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