John Dee entrou para a História como o Mago particular da Rainha Elizabeth I, Conselheiro para assuntos sobrenaturais, vidente e astrólogo da corte. Também cabia a ele o título de Médico Real Extraordinário, responsável pela saúde de sua soberana. Mas há mais no filósofo medieval do século XVI do que a reputação de olhar para uma bola de cristal e mergulhar nos mundos místicos dos anjos sussurrantes.
Dee foi um gênio matemático e alguém incrivelmente preciso no que era então conhecido como Ciência Natural a fusão da Física e da Alquimia. Como seus quase contemporâneos Nostradamus e Cornelius Agrippa, também conhecidos por seus interesses no mundo além dos mortais, esse homem inquisitivo trilhou um caminho perigoso em uma época em que prever o futuro, conversar com os mortos e saber demais, poderia significar ser acusado de heresia e morrer numa fogueira.
O ofício de Astrólogo Real era especialmente perigoso para aqueles cujas previsões não eram precisas ou que traziam más notícias para os vaidosos monarcas. Diferente dos meros mortais, os Reis tinham a prerrogativa de se aconselhar com videntes e tentar descobrir de antemão o que o futuro lhes reservava. Esses videntes por vezes eram muito bem recompensados e até mesmo a Igreja Católica fazia vista grossa para tal profissional.
Antes de Dee, o Astrólogo que serviu ao Trono da Inglaterra foi um homem chamado William Parron. Mas ele não teve muito do que se orgulhar no cargo. Quando serviu a Henrique VII e, mais tarde, ao filho deste, Henrique VIII, Parron ficou conhecido como um dos astrólogos menos precisos do período. Empregado por Henrique VII, ele não conseguiu acertar uma única previsão importante e ainda profetizou que a esposa do Rei, a Rainha Elizabeth de York, viveria até os 80 anos de idade. Ela morreu aos 37 anos. Parron serviu mais tarde a Henrique VIII como seu astrólogo pessoal, mas parecia igualmente desfavorecido pelas estrelas que deveriam revelar os mistérios por vir. Embora sua previsão para o "casamento feliz" de Henrique possa ser explicada pelo fato de ele ter ficado casado com Catarina de Aragão por vinte e quatro anos, o famoso monarca falhou em gerar "muitos filhos" como Parron previra, ou ser um "servo dedicado da igreja católica". Pelo contrário, Henrique VIII casou-se seis vezes, gerou apenas um filho legítimo e, de forma controversa, separou a Inglaterra do Papa e da Igreja para sempre. Muito provavelmente Parron esperava evitar problemas ao fazer profecias favoráveis, particularmente porque Henrique VI executou dois infelizes astrólogos por traição quando previram que ele morreria de forma violenta. Mas de nada adiantou, já que o jovem rei, cujo reinado turbulento descambou na sangrenta "Guerra das Rosas", morreu na Torre de Londres, provavelmente assassinado. Parron escapou de tal destino e preferiu deixar a corte em desgraça após uma carreira fracassada como o "vidente que nada via".
Contudo, a forte influência das Profecias e da Astrologia sobre os Reis ingleses não diminuiu durante o período Tudor e foi uma obsessão constante deles. Apesar da péssima reputação de Parron, o Rei Henrique VIII estava constantemente em busca de qualquer um que oferecesse visões e profecias. Ele costumava manter observadores na corte que o informavam sempre que surgia um novo astrólogo de renome. Suas consultas eram frequentes e ele não se importava com os rumores de que muitas de suas decisões eram tomadas após consultar conhecidos farsantes. Quando Henrique VIII foi sucedido por Elizabeth I de forma inesperada, sua filha manteve a tradição de contar com conselheiros mágicos.
Entra em cena então John Dee que foi extremamente recomendado, não apenas por ser um Astrólogo capacitado, mas por deter habilidades únicas que o projetavam como uma das maiores mentes da Inglaterra. Elizabeth I obviamente conhecia a fama de Dee e aceitou de bom grado o aconselhamento dele.
Mas quem era o Dr. John Dee e de onde vinha essa sua fama?
Ainda jovem e recém formado no Trinity College, Dee conquistou a reputação de possuir um brilhantismo acadêmico invejável em diversas áreas de conhecimento. Mais que isso, ele era especialmente bom em causar uma impressão duradoura nas pessoas. Dono de uma segurança e determinação impressionantes para alguém de tão pouca idade, ele se orgulhava de falar o que se passava em sua mente, não em bajular as pessoas. Ele também era adepto de impressionar seu público recorrendo por vezes a truques teatrais e jogo de cena. Combinava compostos químicos e fórmulas para causar explosões, gerar fumaça, criar odores e sons estranhos que aos olhos de muitos parecia magia.
Dee caiu nas graças de vários aristocratas que patrocinaram viagens através da Europa para estudar em universidades renomadas e explorar bibliotecas famosas. Suas jornadas o colocaram em contato com alguns dos nomes mais famosos de sua época, incluindo astrônomos e cartógrafos judeus e árabes. Absorvendo todo conhecimento à sua volta, Dee se deixou fascinar pelo ocultismo e pelas Ciências Proibidas. Ele investigou rituais no Egito, se deixou encantar pelas religiões do Oriente e pelo misticismo de tradições ancestrais e Sociedades Herméticas. Um de seus interesses principais envolvia investigar as propriedades mágicas de objetos encantados em especial de cristais.
Com todo esse arcabouço ele decidiu retornar à Inglaterra e se fixar em Londres onde sua chegada causou imediata sensação. Dee viu sua estrela subir quando deixou uma impressão favorável em inúmeros membros da Corte que vinham até ele se consultar. Nessa época, as palestras de Dee o aproximavam de outro gênio do período, o filósofo alemão Cornelius Agrippa que era cortejado pela realeza da Europa central. Ele recebia o salário de vários mecenas que o mantinham como conselheiro particular, ao menos até sua fama chegar aos ouvidos da extremamente católica Rainha Mary.
Em 1555, John Dee foi preso e acusado de usar feitiçaria depois de traçar mapas astrais da Rainha Mary e de sua irmã mais nova, a Princesa Elizabeth. Quando as acusações de traição foram canceladas, com acusações infundadas de conspirações contra sua vida, Dee foi interrogado na Câmara das Estrelas, um tribunal inglês situado no Palácio de Westminster. Embora eventualmente exonerado pelos juízes, ele mais tarde foi examinado pelo infame caçador de hereges, o Bispo Bonner. Dee sabiamente fez do religioso e fanático Bonner - conhecido por sua crueldade - um amigo próximo, o que possivelmente o salvou de mais interrogatórios.
Apesar de ser um período perigoso, quando fanatismo religioso estava em alta e pessoas inocentes eram mortas por suas crenças, Dee conseguiu sobreviver ao reinado de perseguição de Mary e sua queima entusiástica de protestantes. Seus contatos o colocaram em uma boa posição quando a Rainha morreu em 1558 e a coroa foi passada para sua irmã protestante, Elizabeth I. Logo depois, Dee encontrou o favor de aristocratas, incluindo William Cecil, principal conselheiro da nova rainha.
Em 1564, Dee foi "apontado Conselheiro Real em segredos místicos", basicamente o Astrólogo da Corte. Agradecendo o apoio, Dee aplicou-se aos estudos com tal diligência que só se permitia quatro horas de sono e duas para suas refeições e recreação. O status de Dee como o conjurador da corte da Rainha Elizabeth havia começado. A rainha virgem frequentemente dependia de Dee para assuntos de ciência, medicina e exploração. Ele era seus olhos, seus ouvidos e seu conselheiro no mundo dos feitiços, do ocultismo e do sobrenatural. Dee chegou até a apresentar relatórios sobre questões que afetavam diretamente a Inglaterra, incluindo a sugestão do termo "Império Britânico". Acredita-se que a rainha Elizabeth e Dee se escreveram às vezes em código, possivelmente sobre a ameaça da Armada Espanhola ou questões relacionadas ao Novo Mundo que Dee acreditava serem terras por direito pertencentes à Inglaterra. Ele começou a assinar suas cartas usando um código secreto que apenas a Rainha podia ler. Qual era esse código? 007.
Embora alguns dos experimentos de Dee que foram meticulosamente executados e registrados pareçam estar mais de acordo com a física básica do que estudo do sobrenatural, a reputação do alquimista foi muito ridicularizada. Era uma época perigosa para mexer com forças sobrenaturais e no auge de sua influência na Corte é que o desastre aconteceu. A busca por conhecimento levou o Conselheiro a um novo campo de estudo, quando ele decidiu falar com os Anjos.
Na época, o reconhecimento da existência de "anjos" não era algo controverso, na verdade, tolo era quem não acreditava na existência de tais seres celestiais. A grande questão era se mortais deveriam ou poderiam se comunicar com eles. O que trouxe suspeitas a Dee foi que ele estava tentando estabelecer uma comunicação fora dos canais ortodoxos aceitos. Este era um território extremamente arriscado, particularmente por que ele pretendia estabelecer esse contato através de um médium chamado Edward Kelly, que alegava poder obter informações do mundo invisível.
Entrar em contato com anjos para prever o futuro e desvendar segredos arcanos era visto como algo além dos limites do aceitável. Tal coisa trouxe Dee perigosamente perto de outro ramo do ocultismo, uma disciplina amplamente condenada chamada Necromancia. Os necromantes se valiam de rituais que lhes permitiam falar com os mortos, comandar espíritos e estabelecer um canal de comunicação com aqueles habitando o além vida. Desse modo eles tinham acesso a segredos que os vivos não deveriam obter. Não por acaso, os teólogos cristãos censuravam aqueles que lidavam com necromancia, tida como uma das mais perigosas Ciências Proibidas - atrás apenas do Satanismo.
A prática mágica de Dee foi sustentada por teorias espirituais e filosóficas extraídas de escritores antigos e renascentistas. Essas atividades não significavam necessariamente que ele era um praticante da feitiçaria, mas que sua sede de conhecimento o levava a explorar vários caminhos. Foi justamente esse tipo de exploração que o levaria a uma busca que acabaria por arruiná-lo.
O grande problema é que Dee havia se associado com pessoas inescrupulosas. Edward Kelly era um oportunista acusado de falsificar dinheiro e que se apegou a Dee durante anos, incentivando as tentativas de estabelecer contato com os anjos. O processo um tanto teatral envolvia colocar um cristal sobre uma tábua de cera, enquanto Kelly entrava em transe. Ele esperava então por vários anjos que se manifestavam nos raios de luz filtrados pelo cristal. Quando os anjos desejados se manifestavam, Kelly interpretava o que eles diziam e Dee fazia anotações.
Essas notas, obtidas em várias sessões, sobrevivem num tratado intitulado "Livro de Mistérios" que revelava como os anjos, constituídos por vinte e quatro ordens governavam o universo. Isso marcou o surgimento de um complexo sistema de magia cerimonial baseado no comando dos espíritos, a "Magia Enoquiana". Através de Kelly, atuando como médium, Dee afirmou ter aprendido o Idioma Enoquiano, a língua oculta usada pelos Anjos.
Foi a partir desse ponto que os estudos tomaram um caminho estranho e positivamente bizarro.
O vidente, Edward Kelly, relatou ter estabelecido uma conversa intensa com um anjo, que o levou a fazer uma proposta ao colega. Kelly insistiu que os anjos demandavam que eles trocassem de esposas. Este pacto de troca de esposa, ditado por uma entidade celestial, era para formalizar o "acordo" por ter recebido informações divinas. Em uma espécie swing medieval, Dee acabou concordando com a proposta, para horror de sua esposa Jane Fromond que foi coagida a desempenhar esse papel. Mais tarde Dee também desfrutou da cama com a esposa de Kelly, cumprindo assim o "pacto". Não se sabe se um menino chamado Theodore, nascido de Jane nove meses após o incidente, era filho de Kelly ou Dee.
Talvez Dee devesse ter prestado atenção a seu predecessor, o famoso Cornelius Agrippa, que dois anos antes de sua própria morte, havia sido denunciado como feiticeiro e processado como tal. A punição por tal crime podia ser prisão ou morte. Dee acreditava estar acima dessas questões e que suas pesquisas justificavam o perigo. A Magia Enoquiana, na sua visão, seria uma grande contribuição sua para o mundo oculto, todo risco valia a pena. Ademais, ele acreditava que, por desempenhar um papel importante na Corte, seria protegido por algum aliado, ou pela própria Rainha.
É possível que assim fosse, mas a proteção duraria apenas enquanto Elizabeth continuasse usando a coroa. Quando a Rainha faleceu, ela foi substituída por James VI da Escócia, filho de Mary desafeto de longa data do mago. O novo Rei da Dinastia Stuart era um entusiasmado caçador de bruxas e defensor de uma teologia sinistra que poderia causar muitos danos aos envolvidos no tema. Dee estava preocupado de ser vítima do novo rei por qualquer coisa relacionada com Necromancia. O rei Jaime participou de julgamentos e implementou a Lei de Bruxaria de 1563, que resultaria em milhares de execuções brutais nas décadas seguintes.
Dee precisava tomar cuidado, realizar seus estudos em segredo e ainda afastar os informantes que rondavam a corte de James VI em busca de denúncias. Além disso, ele havia conquistado muitos inimigos que não toleravam a influência que ele havia granjeado junto do trono.
Apesar de sua reputação como alquimista famoso e dedicado Servo da Coroa, Dee acabou excluído da corte do Rei Jaime em meio a uma série de acusações e escândalos. Impotente e colocado de lado, teve de sobreviver com qualquer trabalho que pudesse conseguir e muitas vezes alienando seus bens. Seus últimos anos também foram marcados por doenças causadas pelo contato com substâncias e produtos químicos utilizados em seus experimentos. Mais tragicamente, sua esposa Jane e a maioria de seus filhos morreram após um surto de peste bubônica, em Manchester. Apenas dois de seus oito filhos sobreviveram. Afundando na miséria e ainda desesperado para entrar em contato com os anjos e receber mensagens, ele usou seus últimos recursos para publicar seu livro.
John Dee morreu em Mortlake, nos arredores de Londres no ano de 1608. Para todos que o conheceram, Dee seria lembrado pela sua busca incessante dos segredos do universo e sua associação com "anjos". Ele também colocaria seu nome entre os gênios matemáticos, sendo responsável pela criação de símbolos matemáticos usados até hoje. Também foi um astrônomo e químico de fama mundial. Dee está imortalizado na literatura, considerado a inspiração para o personagem Próspero de Shakespeare em A Tempestade e o Doutor Fausto de Christopher Marlowe.
Ainda persiste a visão de que magos e astrólogos medievais como Dee, eram simplesmente indivíduos excêntricos, criando poções de natureza duvidosa e praticando a clarividência por meio de adivinhações fraudulentas. Na realidade, homens como John Dee, sempre questionaram o mecanismo do Universo e foram precursores do que viríamos a conhecer como Conhecimento Científico.
Mais do que isso, pessoas como ele, possibilitaram o surgimento de um mundo racional.
Filósofo medieval... do século XVI?
ResponderExcluirNão sei porque ainda insisto, pois claramente os mantenedores do blog não estão nem aí pra isso, mas uma revisão dos textos antes de postar cairia bem.
lol, "swing medieval".
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