quinta-feira, 2 de setembro de 2021

O Tradutor do Necronomicon - A vida secreta de John Dee e seu envolvimento com os Mythos


Matemático, ocultista, médico, alquimista, espião e mago. A vida de John Dee, Astrólogo da Corte da Rainha Elizabeth I foi cheia de atribuições e qualidades impressionantes. Muitos estudiosos consideram Dee uma das personalidades mais injustiçadas do período, um indivíduo que ajudou a moldar a Era Elisabetana.

Dono de inúmeras habilidades e conhecimentos, Dee fazia jus à fama de feiticeiro que havia construído ao seu redor. As pessoas tinham receio de falar com ele, alguns podem dizer até que tinham medo. Afinal, aquele homem misterioso, que usava roupas escuras com símbolos arcanos costurados, envergava uma longa barba branca e óculos de aros grossos, não era um membro qualquer da Entourage Real. Ele era o Conselheiro da Rainha especializado em assuntos sobrenaturais, um posto de alta confiança e que lhe valia uma série de prerrogativas. Historiadores mencionam que o Dr. Dee, como ficou conhecido entre os demais cortesãos possuía um humor ácido e que se divertia com a maneira como as outras pessoas o tratavam. Andava pelos corredores do Palácio, com todos desviando de seu caminho - alguns até fazendo o sinal da cruz.

O Dr. Dee não apenas conhecia o Mundo Sobrenatural, mas tinha legítimo fascínio por ele. Antes de se estabelecer como Astrólogo da Rainha, ele empreendeu uma longa jornada pela Europa, entrando em contato com muitos estudiosos que assim como ele se arriscavam no estudo das Ciências Proibidas. Em Veneza ele estudou com um grupo de feiticeiros que dominavam um estilo de Necromancia que remontava aos Etruscos. Em Paris esteve em contato com uma seita de feiticeiros que se reuniam nos subterrâneos da cidade e conduziam rituais profanos na escuridão. No Norte da África, Dee conheceu bruxos que se diziam os derradeiros Guardiões da Sabedoria de Salomão. No Leste europeu, supostamente estudou com os mestres da infame Escola de Magia - a Scholomance. Cada novo saber, cada conhecimento adicional alimentava sua ambição maior: erguer o manto da ignorância e espiar os segredos que existiam ali atrás.   

Foi nesse período que Dee provavelmente tomou conhecimento à respeito da existência do Mythos de Cthulhu. Sendo ele um leitor compulsivo com acesso a várias Bibliotecas Proibidas de Sociedades Secretas, é justo afirmar que ele tenha consultado algum dos famosos tomos versando sobre os Mythos. Dee se gabava de ter consultado vários tratados de magia e graças a sua memória prodigiosa, ter feito cópia de trechos inteiros contendo rituais e magias. Em Caen, na França, ele teria conseguido acesso a uma edição do Liber Ivonis, um volume mantido em poder de uma cabala de bruxos que servia Zhothaqquah, um dos nomes pelos quais o Horror batráquio Tsathoggua é conhecido. Através de adulação, propina ou chantagem (ou uma combinação dos três métodos que dominava), Dee conseguiu subtrair para si o livro e levá-lo consigo em sua jornada. Por muito tempo ele acreditou que aquele era o mais poderoso Tomo de Magia escrito, embora já tivesse ouvido sussurros a respeito de outra obra incrivelmente rara, o tétrico Al-Azif do árabe louco Abdul Hazred, que ele acreditava ser uma lenda. O Livro de Eibon, como ele chamava, abriu as portas para novas modalidades de magia que ele estava ansioso por testar.


Apesar de muito curioso à respeito dos Mythos, Dee aprendeu da pior maneira possível a se tornar um conjurador cuidadoso. Seus rituais lhe permitiram abrir portais para dimensões e realidades habitadas por seres não-humanos que ele chamava genericamente de demônios. Em certa ocasião, na cidade alemã de Leipzig, ele concordou em demonstrar suas habilidades arcanas diante de uma cabala de feiticeiros que desejavam testar seus poderes. O experimento teve um desfecho inesperado quando o Ritual resultou na invocação de vários Andarilhos Dimensionais que devastaram a sede da Ordem. Dee foi o único a sair vivo do lugar, recorrendo a um Símbolo Ancião que ele trazia como amuleto de proteção. Mas apesar de ter sobrevivido miraculosamente, o incidente o assombrou por anos. 

Depois disso, Dee decidiu retornar para sua terra natal e se estabelecer em Londres, oferecendo seus préstimos como astrólogo àqueles que estavam dispostos a pagar pelas suas consultas. Além de ficar conhecido entre os nobres britânicos como mago e ser contratado para traçar mapas astrais, lançar e remover maldições, ele continuou atraído pelo pérfido conhecimento dos Mythos. Dee explorou o perigoso Vale de Severn onde entrou em contato com a colônia de Insetos de Shaghai que habita e exerce controle sobre essa região. Ele também teria descoberto o milenar culto da Cabra Negra, que na Inglaterra tinha como centro de atividades Goatswood, outro lugarejo decrépito no coração do Vale maldito. Especula-se que nessa época John Dee começou a atrair a ira da Rainha Mary de Escócia que havia ouvido rumores sobre as atividades perniciosas do mago. É possível que membros de cultos ou rivais, estivessem tentando colocar Dee em maus lençóis. 

Quando a Rainha Mary faleceu, a maré mudou rapidamente à seu favor. A fama de Dee havia crescido e ele se viu alçado a uma posição de enorme prestígio junto da Rainha Elizabeth I. Instalado na Corte, Dee rapidamente viu sua reputação crescer. As más línguas diziam que ele havia firmado um pacto com o Demônio em troca de sucesso, ou que realizaria satisfeito tal barganha se isso pudesse lhe render mais conhecimento. Alguns concluíam, que o Demônio teria de ser muito tolo para negociar com alguém astuto como o Dr. Dee. 


As muitas habilidades lhe renderam também um lugar no pequeno Conselho da Rainha. Este era formado por mestres na arte da espionagem e contraespionagem, que mantinham olhos e ouvidos abertos na corte e que vigiavam os diplomatas e nobres de outras terras que visitavam a Corte Real. Dee contava com uma rede de informantes que incluía damas de companhia, valetes, serviçais e prostitutas que lhe contavam tudo que acontecia na corte. Se fosse algo digno de nota, o bom Doutor transmitia a informação para a Rainha em despachos secretos com um rótulo onde se lia o código 007. Muitas vezes, era prerrogativa dele tratar dos problemas da corte pessoalmente, o que incluía enviar homens de sua confiança para eliminar obstáculos e rivais.   

Enquanto desfrutava das comodidades da corte, Dee modelava a sua propriedade particular em Mortlake, arredores de Londres conforme os seus gostos. Consta que sua mansão era equipada com um invejável Laboratório de Alquimia onde ele conduzia seus experimentos científicos. Na mesma Mansão ele mantinha sua inestimável Biblioteca particular, que biógrafos estimam como tendo possuído mais de 4,000 volumes, o que a tornava a segunda maior coleção da Europa.

Dee era um colecionador de livros impulsivo que beirava a obsessão. Ele sempre estava em busca de novos títulos para abrilhantar sua biblioteca particular e os tomos de magia, versando sobre conhecimento esotérico, estavam entre os títulos mais desejados. Os agentes de Dee vasculhavam bibliotecas e livreiros em todas as grandes cidades do período: de Toledo a Praga, de Paris a Constantinopla. Dominando vários idiomas, ele tinha facilidade em realizar traduções, e de fato, coube a ele o pioneirismo de converter para o inglês vários títulos que haviam sobrevivido à Era das Trevas somente em grego, árabe ou latim. Não há como saber quais raridades estiveram presentes na sua biblioteca, mas considerando os recursos ao alcance de Dee, é possível intuir que não foram poucas. Contudo, um título em especial continuava se esquivando das suas buscas - o Al Azif.


Enquanto desempenhava sua função na Corte, Dee começou a delinear o que viria a ser conhecido como modelo de Magia Enoquiana. É curioso, mas à despeito do profundo conhecimento de Dee à respeito da Mitologia dos Antigos, ele continuava acreditando numa estrutura teosófica clássica onde havia uma disputa entre Demônios (as Criaturas do Mythos) e Anjos (Entidades Celestiais). Ainda segundo suas crenças, estas forças antagônicas se enfrentavam desde o início dos tempos. O Mago acreditava que os Anjos poderiam se converter em valiosos aliados da humanidade, mas para isso, teriam de ser convencidos a compartilhar seus segredos, ritos e magias. O Sistema Enoquiano era a chave para essa aliança, pois continha o método para se comunicar com os Anjos. Em parceria com o vidente Edward Kelly, Dee começou a realizar invocações e compilar rituais para acessar os seres celestiais. Contudo, a parceria de Dee e Kelly jamais alcançariam seu objetivo. Talvez os anjos jamais tenham respondido às cerimônias, talvez eles simplesmente não existissem, ou pior, talvez eles fossem apenas uma outra faceta do Mythos - ninguém sabe ao certo!

No fim, o mago não teve sucesso em seus intentos e os rituais conduzidos por ele falharam miseravelmente. Há rumores de que um dos seus rituais mais importantes, aquele que permitiria convocar seu "Anjo da Guarda", resultou na invocação de um horror conhecido como Servo dos Antigos. Tamanho fracasso jamais foi bem assimilado por um perfeccionista virtuose como John Dee.

Para piorar as coisas, a morte da Rainha Elizabeth I em 1605 e a transição da Dinastia Tudor para Stuart através de James I, fez com que a posição do Astrólogo Real fosse colocada em risco. O novo monarca era um inimigo de todas tradições herméticas e de fato, combatia efusivamente o que considerava feitiçaria. Dee se viu ameaçado e temendo pelo pior, decidiu abandonar a Corte e retornar a Mortlake, mas lá se deparou com um cenário desolador - a Mansão havia sido invadida, seu laboratório destruído e a biblioteca pilhada de seus inestimáveis tesouros.


Uma série de infortúnios continuaram atormentando Dee no ocaso de sua existência; doença e a morte de seus filhos, perdidos para a Peste Negra. Ele foi nomeado para presidir o Christ College em Manchester na posição de reitor. Ironicamente, foi nessa época que uma das mais longas buscas de sua vida finalmente deu frutos. Um de seus agentes no continente teve sucesso em obter um exemplar completo do Necronomicon (supostamente em sua versão escrita em grego) e este lhe foi entregue com uma série de livros adquiridos pela Universidade.

Com 74 anos de idade, Dee sabia que sua vida estava chegando ao fim, mas que ainda havia tempo para completar um importante trabalho. Ele decidiu que o conhecimento blasfemo contido nas páginas do Necronomicon precisava ser compreendido e portanto, tomou para si a tarefa de traduzi-lo para o idioma inglês. O trabalho era monumental, não apenas pelas dificuldades oferecidas, uma vez que a obra era exasperantemente intrincada, mas por que as palavras ali contidas induziam a insanidade. Mesmo um erudito como Dee encontrou enormes dificuldades e repetidas vezes caiu doente, esgotado física e mentalmente em face do esforço empreendido. Atormentado por pesadelos, visões e demência induzidas pelas revelações, ele seguiu em frente trabalhando sem parar.

Em 1608, o trabalho finalmente foi concluído, mas a essa altura a tarefa havia exaurido seus últimos recursos financeiros o deixando perigosamente perto da miséria. Dee estava com 80 anos e resignado retornou a Mortlake onde passou seu último ano sob os cuidados de Katherine, sua única filha, dos oito originais. Ela cuidou dele até o fim. no leito de morte, suas últimas palavras teriam sido o  preâmbulo da obra blasfema que ele traduziu: "Não está morto, aquele que pode eternamente jazer. E em estranhas eras, mesmo a morte pode morrer".


Após a morte do pai, Katherine tentou atender seu último pedido: enviar o Necronomicom em inglês para a Biblioteca Real para que fosse mantido em segurança lá e consultado pelo próximo Astrólogo Real. Ocorre que o livro não foi aceito pelo Bibliotecário que considerou perigoso aceitar qualquer coisa enviada por alguém como o Mago Dee. O livro acabou sendo mandado então para a Biblioteca de Chethan, instituída em 1653, onde ficou por apenas cinco anos. Infelizmente, o Necronomicon em inglês acabou desaparecendo, subtraído por alguém que reconheceu a sua grandeza. Cerca de duas décadas depois, cópias do livro começaram a aparecer em oficinas gráficas da Inglaterra e dali para outros cantos da Europa. A obra apocalíptica de Al Hazred, traduzida por Dee, se tornaria a versão mais difundida do Al Azif original.

*     *     *


Quando delineou a origem de uma de suas mais famosas criações, o célebre livro conhecido como Necronomicon, H.P. Lovecraft tratou de incluir o Dr. John Dee na história. Um erudito como Lovecraft, é claro, já havia ouvido falar das façanhas do Astrólogo da Rainha e decidiu reputar a ele a façanha de ter traduzido o terrível livro para o idioma inglês.

A escolha parece perfeita: o autor sempre gostou de misturar personagens históricos e reais à sua mitologia particular, concedendo a ela nuances de realismo. Dee era uma ótima opção para ser o tradutor, já que em sua época ele realmente foi um dos maiores colecionadores de livros e detentor de uma vasta biblioteca com títulos ocultos.

É possível que Lovecraft tenha recorrido aos rumores de outro Grimório de alta magia, famoso por ter sido usado por Dee em seus estudos arcanos - o Livro de Soyga. Sobre este tomo de magia, totalmente real, falaremos em uma próxima ocasião aqui no Mundo Tentacular, mas cumpre dizer que o Livro de Soyga, assim como o Necronomicon eram considerados livros com conhecimento maligno e perigoso.

A vida do bom Dr. Dee, que mais parece extraída da ficção, rende ótimas histórias e o tornam um personagem realmente interessante. É justo que após tantos séculos, seu papel e suas contribuições estejam sendo finalmente redescobertas. 

*     *     *

Assista a seguir o vídeo feito pelos nossos parceiros do canal Explorando Segredos e Mistérios a respeito desse artigo. O material ficou excelente e vale a pena acompanhar o material produzido.



Nenhum comentário:

Postar um comentário