Algumas lendas parecem recorrentes, surgindo em tantas culturas diferentes que nos fazem pensar se elas não teriam um fundo de verdade. Afinal, elas não reconhecem fronteiras geográficas e se espalham naturalmente através das tradições orais, do folclore e por meio das superstições que moldam os povos. Uma dessas lendas, presente em várias mitologias, menciona uma bizarra transformação física sofrida por algumas pessoas afligidas pelo que se convencionou chamar de maldição. A transformação que faz com que indivíduos percam o controle e se entreguem à uma fúria animalesca e uma selvageria sanguinária os torna muito mais bestas do que homens. A condição tem vários nomes, mas ela é mais comumente conhecida como Licantropia, a horrível maldição dos Lobisomens.
Das lendas e folclore mais antigos, os lobisomens saltaram para a cultura popular aparecendo em contos, romances, filmes e séries de televisão. Mas séculos atrás, lobisomens não eram nada divertidos. A crença em homens que se transformavam em feras, era muito difundida, e as pessoas estavam dispostas a acreditar nessas histórias bizarras sem duvidar sequer dos seus aspectos mais perturbadores.
Homens viravam bestas, e quando o faziam, a morte e a destruição os acompanhava.
Um lugar onde as lendas sobre lobisomens sempre foram muito populares é a Ilha Esmeralda da Irlanda. Foi lá que surgiram incontáveis histórias sobre homens que viravam lobos e assombravam a noite com uivos, presas afiadas e garras sanguinárias. Supostamente, muitas dessas histórias tem origem em relatos reais que foram preservados para as futuras gerações. Um destes relatos cita uma misteriosa tribo de homens-lobo cuja lenda se mantém viva tanto tempo depois.
Embora os lobos tenham sido extintos há muito tempo na Irlanda, houve um tempo em que eles eram bastante numerosos naquele país. Sua presença serviu como inspiração para muitas lendas ao longo dos séculos. Uma das mais populares cita uma terra escura e isolada nos limites da civilização. Era um lugar inóspito com florestas fechadas que nunca foram tocadas por machados, um território sinistro chamado Ossory. O local gozava de má fama, diziam as lendas que, no passado, enormes lobos faziam daqueles bosques seu esconderijo. Eram animais assustadores do tamanho de pôneis e com olhos vermelhos brilhantes, muito astutos e ferozes.
Por muito tempo ninguém viveu em Ossory, ao menos até a chegada de uma tribo de bárbaros que vieram de terras distantes, um clã de guerreiros com aspecto primitivo dados a promover ataques noturnos. Tais ataques eram brutais, sempre resultando em massacres e violência. Em seu rastro deixavam corpos mutilados e fazendas incendiadas, levando por vezes mulheres e crianças como seus escravos.
Mais do que simples saqueadores, esses guerreiros eram temidos por outra característica, a capacidade sobrenatural de se transformarem em lobisomens. Havia muitas lendas, e uma das mais populares é que os Guerreiros de Ossory haviam firmado um pacto com os Lobos que um dia habitaram aquele ermo para que recebessem o dom de sua fúria. Por terem se deitado com lobos e deixado suas crianças mamarem nas lobas, eles se tornaram feras. Dizia-se que os Lobisomens de Ossory, mesmo em forma humana, tinham uma aparência selvagem: olhos injetados, cabelos longos desgrenhados e uma musculatura tensa que implicava força sobrenatural. Para completar a aparência ameaçadora, os guerreiros muitas vezes vestiam peles de lobo que lhes conferia os poderes de transformação.
Dizia-se que de tempos em tempos esses guerreiros eram possuídos pelo espírito das feras e que tomados de fúria animalesca corriam pelos campos nus em pelo, atacando o gado, bebendo seu sangue e devorando sua carne crua. Banhavam-se com o sangue de suas presas e num frenesi assassino dançavam à luz do luar, uivando e rosnando uns para os outros. Também atacavam quem tivesse o azar de cruzar seu caminho.
O Clã de Ossory era muitíssimo temido pelos seus vizinhos, mas sua coragem e fúria os tornavam guerreiros valorizados, tanto que alguns chegaram a recrutá-los como mercenários para lutar por suas causas. Os Bárbaros entretanto tinham uma natureza imprevisível e mesmo seus aliados próximos temiam tê-los lado a lado nas batalhas pois seus hábitos primitivos chocavam a todos. Preparavam-se para a luta matando bezerros e novilhos, comiam de sua carne e cobriam-se com o sangue, além disso cortavam uns aos outros e prometiam lealdade lambendo o sangue que escorria das feridas. Jamais rezavam antes da luta, ao invés disso rugiam e rosnavam como feras dando socos no peito. Em batalha eram uma visão pavorosa, que levava os inimigos a fugir em desespero. Avançavam sempre na linha de frente, correndo às vezes de quatro, como animais, brandindo facas e machados. No fim das batalhas continuavam a mutilar os cadáveres e dizem até que praticavam canibalismo.
"Há alguns homens da raça irlandesa,
Que tem essa natureza por ancestralidade e nascimento:
Sempre que assim desejam, eles podem rapidamente se transformar
Tomando a forma de lobos, para rasgar carne com dentes perversos:
Muitas vezes eles são vistos matando ovelhas e devorando-as.
Quando confrontados, arreganham suas presas e atacam [como verdadeiros lobos].
E quando tomados pela besta, deixam de ser homens
Lutam como feras, pois feras é o que são,
Não se importam com ferimentos e riem diante da morte
Não há guerreiro mais letal em batalha, do que os de Ossory"
A história mais famosa relacionada aos Lobisomens de Ossory envolve o lendário guerreiro chamado Laignech Fáelad, que se dizia ser o irmão de Feradach mac Duach, o último dos governantes depostos pelos normandos no século XII. Dizia-se que Laignech Fáelad era um dos guerreiros mais ferozes e estava entre os lobisomens mais poderosos de toda a Irlanda. Havia ainda a lenda de que foi ele quem deu segmento à linhagem dos homens-lobo, gerando muitos filhos que também carregavam a licantropia em suas veias. De fato, muitos contos afirmam que ele era o lobisomem original, do qual todos os outros foram criados.
"Era um homem que costumava vestir a pele do lobo, ou seja, que conseguia se transformar em lobisomem quando tomado pela fúria. Sua prole costumava ir atrás dele e eles estavam acostumados a matar os rebanhos à moda das feras: cercando e mordendo. Era um homem grande, poderoso e temido. Barba ruiva desgrenhada, braços grossos como troncos de árvore e comportamento feroz em tudo. ninguém ousava desafiá-lo pois temia-se sua capacidade de se tornar um lobo e como fera matar sem piedade".
Mas os Lobisomens de Ossory seriam enfim enfrentados por ninguém menos do que o Santo Padroeiro da Irlanda. Diz a lenda que São Patrício (St. Patrick), estava tentando acabar com o paganismo na Ilha através da introdução do cristianismo. O Santo considerava que as pessoas afligidas pela licantropia eram amaldiçoados por Deus devido à maldade e pecado que abraçavam de peito aberto. No início, o Santo acreditava que não havia redenção para essas pessoas e que elas eram malignas além da conta.
Um relato contido no De Ingantaib Érenn (Das Lendas da Irlanda) menciona a interação entre São Patrício e os Lobisomens de Ossory e como o Santo passou a acreditar que podia salvar até mesmo esse clã perigoso:
"Conta a lenda que quando São Patrício pregava o cristianismo na Irlanda, havia um clã que se opunha a ele mais teimosamente do que qualquer outro povo da terra. Essa gente (que vivia em Ossory) se esforçava para insultar de muitas maneiras, tanto a Deus quanto ao homem santo. E quando ele estava pregando a fé, vinham uivar perto das reuniões para aterrorizar as pessoas e fazer com que elas fugissem. São Patrício respondeu a esse desafio clamando ao Todo-poderoso para que o protegesse e ao mesmo tempo punisse o clã com um castigo adequado que lhes mostrasse o poder do Deus verdadeiro. Ao erguer a santa cruz diante dos lobisomens que avançavam para matá-lo, as feras tiveram seu ímpeto quebrado pelo brilho do sol que resplandeceu no símbolo divino. E por mais que quisessem avançar e matar o santo, não conseguiram fazê-lo, pois ele estava sob proteção divina. Furiosos e negados de seu desejo de sangue, os lobisomens avançaram então uns contra os outros até que no fim restasse apenas um deles sobre a pilha de seus companheiros mutilados. Patrício então se aproximou e tocou a testa do lobisomem e este voltou a ser hum homem. Vendo o que havia acontecido (que havia matado filhos e irmãos) ele lamentou o que fizera e implorou perdão. O Santo ofereceu sua mão e o homem coberto de sangue a beijou reconhecendo sua autoridade".
Depois disso, São Patrício pediu que o lobisomem o ajudasse a converter o restante da Ilha e que se tornasse o seu Campeão, lutando a seu lado contra os inimigos da cristandade.
Outro relato bastante famoso à respeito dos Lobisomens de Ossory foi escrito pelo historiador Gerald de Gales que também foi apontado como arquidiácono de Brecknock em 1175. Ele escreveu sobre os lobisomens em sua obra do século XII, Topographia Hibernica, ou "Topografia da Irlanda".
A história é sobre um padre que está viajando por Ossory na floresta escura a caminho de Ulster para Meath, junto com um jovem escudeiro. À noite, eles estavam sentados ao redor de uma fogueira quando ouviram uma voz vinda da escuridão além das árvores, que lhes disse para não temerem. O padre espiou na escuridão, mas não conseguiu ver de onde vinha a voz, então ele pediu ao estranho para entrar na luz do fogo. O estranho se recusa, explicando que sua aparência bestial os assustaria muito, pois ele estava vestindo a pele do lobo devido a uma maldição colocada sobre ele. O estranho então diz ao padre que sua esposa tem a mesma maldição, e que ela está morrendo e precisa dos serviços do sacerdote. O lobisomem diz:
Eu sou um membro do Clã Allta, uma tribo desta região, e como você, Padre, somos crentes em Jesus Cristo e no poder de Sua salvação. Somos nativos de Ossory, e pela maldição nos vemos compelidos a vestir a pele das feras nos despojando da forma humana. Eu vivo sob uma terrível maldição e sofro com o mal da licantropia. Uma vez eu era como você, mas agora sou forçado a usar essa forma terrível, imploro socorro e bênção. E ainda há mais de nós na floresta distante que são afligidos pela mesma maldição. Se curar à mim, poderia curar aos demais? Embora usemos essa forma medonha, somos humanos e necessitados de salvação tanto quanto qualquer outra pessoa. ‘O pecado que meu clã cometeu foi esquecido há muito tempo, mas a maldição ainda está em vigor.
O sacerdote então disse ao estranho que ele não tivesse receio, pois estaria protegido por Deus. Depois disso, há movimento nas árvores, e a forma volumosa de um enorme lobo escuro, quase do tamanho de um cavalo, vaga parcialmente no brilho bruxuleante da luz do fogo, seus olhos ferozes como pontos de luz vermelha brilhante. O padre mal pode conter seu terror com tal visão, e tem que consolar o escudeiro horrorizado ao seu lado, segurando seu crucifixo em direção ao lobo que se aproxima. O lobo não se incomoda com o crucifixo, dando mais um passo em direção a eles, e mais uma vez insiste que não quer machucá-los.
O padre se convenceu de que o lobo estava realmente dizendo a verdade e não era um servo do diabo. Ele concorda em ir à vila do lobo na floresta e se oferece para ajudar aos demais. Os lobisomens aceitam então servir à Deus por 7 anos e no fim desse período, se eles fossem virtuosos, a maldição terminaria. Metade dos homens consegue chegar aos sete anos de penitência e se livram da licantropia, mas outros, não tem a mesma sorte. Estes, se envolvem em lutas e batalhas, mas decidem servir à Causa Divina e se tornam guerreiros comprometidos em enfrentar os invasores ingleses.
Essa história é intrigante porque não apresenta os lobisomens como seres malignos ou como instrumentos do diabo, mas sim como vítimas de uma maldição com almas capazes de serem resgatadas. Mais do que isso, os guerreiros querem continuar lutando por uma causa que consideram justa - a liberdade de sua terra. Uma raridade em uma época em que tais criaturas eram matéria de pesadelos, vistas como símbolo de maldade e da completa escuridão.
Os Lobisomens de Ossory ocupam um lugar de destaque no folclore irlandês, sendo muito populares até os dias atuais. Essa lenda ficou tão enraizada no subconsciente dos Irlandeses que muitos esquadrões de nacionalistas filiados ao IRA adotaram como símbolo de sua luta contra os ingleses a figura do Lobo de Ossory.
A maioria dos historiadores apontam que as narrativas sobre os Lobisomens são apenas deturpações e relatos romantizados à respeito de guerreiros que viveram no passado e que apareciam como bárbaros, vestidos com peles de lobo. Eles são a fonte de muitas histórias e estórias, habitando um reino em algum lugar entre realidade, fantasia e lenda.
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