quarta-feira, 29 de junho de 2022

Reescrevendo a História - Os misteriosos Manuscritos de Shapira


Sempre existiram manuscritos estranhos que surgem praticamente do nada para desafiar tudo aquilo que que pensamos saber. Ao longo da história, muitos textos, pergaminhos e manuscritos perdidos foram descobertos em lugares remotos do mundo, colidindo com nossas noções preconcebidas da história e abalando nossas certezas. Um destes documentos é um suposto texto bíblico antigo que teria sido descoberto em uma caverna. O achado causou enorme controvérsia e suas ondas seguem reverberando nos campos da arqueologia e dos estudos bíblicos causando um acalorado debate até os dias de hoje.

A história é curiosa e começa da seguinte maneira.

Em 1883, um negociante de antiguidades de Jerusalém chamado Moses Wilhelm Shapira veio à público alegando ter em sua posse algo que ele afirmava ser um pergaminho bíblico até então desconhecido. O manuscrito teria sido encontrado em uma caverna ao longo do rio Wadi Mujib. O riacho é citado por textos bíblicos e sua localização próxima do Mar Morto, onde hoje é a Jordânia, corresponde a muitas das histórias que ele relata. O tal manuscrito em si tinha a forma de quinze tiras de couro velhas e um tanto enegrecidas, sobre as quais foram inscritas caracteres paleo-hebraicos. Ele seria uma versão inicial do Livro de Deuteronômio

Segundo seu descobridor, a obra era possivelmente uma cópia que chegou a pertencer ao próprio Patriarca Moisés. O material era tão importante que chegava a trazer um décimo primeiro mandamento que dizia: "Você não deve odiar seu irmão em seu coração: pois Deus está nele, seu Deus.


Segundo Shapira, os pergaminhos pertenciam ao período do Primeiro Templo, anteriores, portanto, ao exílio babilônico, o que os tornaria por uma longa margem de tempo, o texto bíblico mais antigo jamais encontrado. Uma descoberta crucial para entender a história do Povo Prometido de Deus.

Exatamente como Moses Shapira tomou posse do que viria a ser chamado de Manuscritos de Shapira, também constituía um mistério. Ele próprio afirmava que um dia ouviu de um xeque beduíno que o misterioso manuscrito havia sido encontrado na parte mais profunda de uma caverna considerada sagrada. O item estaria dentro de um vaso de cerâmica, enterrado em um nicho e protegido por peles de carneiro. Ele contaria sobre como conseguiu o pergaminho em uma carta ao estudioso bíblico, Christian David Ginsburg:

"Em julho de 1878, o xeque Machmud Arakat, um conhecido chefe de guias de Jerusalém no Vale do Rio Jordão, me fez uma visita. Como o xeque tinha beduínos do Oriente em sua casa, ele os trouxe todos com ele. Ouvi no dia seguinte que alguns homens de sua confiança haviam se escondido numa caverna para escapar de inimigos que os perseguiam. Isso aconteceu na época em que a Dinastia dos Wali de Damasco lutava contra os árabes, travando uma guerra sangrenta. Eles sabiam que aquela caverna em particular era sagrada e que a entrada nela era proibida, mas temendo pelas suas vidas, os homens não viram outra opção. A caverna possuía várias câmaras que pareciam escavadas na própria rocha, perto do Modjib. Enquanto esperavam o perigo passar, vasculharam o interior usando tochas e encontraram alguns fardos de linho velho. Eles descobriram que o linho marcava o lugar em que algo havia sido enterrado. Escavaram cuidadosamente o nicho e descobriram o vaso contendo as tiras de couro com inscrições. À princípio, acharam que não era nada demais e já pensavam em abandonar o achado, mas um dos homens que conhecia algo de caracteres antigos achou que poderia ser algo importante. Ele salvou as tiras em seu alforje e as protegeu, trazendo até o xeque para que ele as avaliasse.

Quando o xeque me contou essa história, pedi que enviasse o homem e sua descoberta ara que eu conversasse com ele. Meu objetivo era examinar as peças e determinar sua idade e importância. Nos dias que se seguiram analisei febrilmente o conteúdo das tiras, maravilhado pelo significado daquilo tudo, não apenas como homem de fé, mas como historiador.

Enquanto ainda tinha as tiras em seu poder, Shapira recebeu a notícia de que seu amigo, o Xeque, havia ficado doente e que morrera. Mas não sem antes dar ordens expressas para que os artefatos fossem legados ao historiador que segundo ele "melhor do que qualquer outra pessoa poderia determinar sua serventia".


Shapira de posse do material passou alguns anos estudando-o antes de finalmente apresentar suas descobertas à comunidade histórica. Os manuscritos se tornaram uma sensação imediata, e sua descoberta foi publicada nos principais jornais da Europa. Ainda assim, embora o público tenha reagido com interesse pelo assunto, os especialistas mais respeitados se mostravam céticos sobre sua autenticidade. Shapira enviou cópias dos pergaminhos para vários estudiosos e especialistas alemães em um esforço para autenticar a descoberta, mas os pergaminhos foram quase unanimemente tratados como falsificações. Em particular, Shapira abordou o teólogo e orientalista alemão Hermann Leberecht Strack, que era a principal autoridade cristã na Alemanha em literatura talmúdica e rabínica, mas Strack descartou a obra como uma fraude grosseira. A Biblioteca Real de Berlim até se ofereceu para comprar os pergaminhos de Shapira, não porque eles pensassem que eram reais, mas para que os alunos pudessem estudar como a falsificação havia sido feita.

Era compreensível que os pergaminhos recebessem uma reação acadêmica tão negativa, pois Shapira já havia conquistado reputação de falsificador. Certa vez ele tentou vender um falso caixão que supostamente encerrava os ossos do herói bíblico Sansão. Ele também foi pego vendendo 1.700 estatuetas falsas para um museu de Berlim, o que justificava a desconfiança dos museólogos. Contudo, Shapira insistia que neste caso, tudo era autêntico e de máxima relevância histórica. Ele levou os pergaminhos até Londres e ofereceu o tesouro ao Museu Britânico por um milhão de libras. Dois dos  fragmentos foram postos em exposições, visitados e apreciados por multidões de pessoas, inclusive o primeiro-ministro inglês, William Gladstone. No entanto, mais uma vez, os estudiosos foram amplamente céticos sobre sua veracidade. Mesmo o estudioso da Bíblia, Christian David Ginsburg com que Shapira mantinha correspondência examinou os pergaminhos e os descartou como falsificações. 

Toda a experiência fez Shapira cair em desgraça diante dos especialistas. E ele escreveria a Ginsburg:

"Você me fez de tolo publicando e exibindo coisas que acredita serem falsas. Acho que não vou conseguir sobreviver a essa vergonha. Embora eu ainda esteja convencido de que o manuscrito é autêntico e algo incrivelmente precioso". 

Shapira deixou Londres e se refugiou em Amsterdã, e durante os anos restantes de sua vida afirmando que os pergaminhos eram reais, implorando a Edward Augustus Bond, principal bibliotecário do Museu Britânico, assim como Ginsburg, que reconsiderassem sua posição, mas eles mantiveram seus veredictos. Desonrado e muito envergonhado, tendo sua maior descoberta denunciada como fraude por quase todos estudiosos que a examinaram, Shapira cederia ao desespero. Ele cometeu suicídio em 1884. 


Depois disso, o Museu Britânico vendeu os fragmentos que ainda estavam em seu poder por uma ninharia e eles foram vistos pela última vez em 1889. Os demais pergaminhos que se encontravam em poder de Shapira antes de sua morte também desapareceram, supostamente foram parar nas mãos de negociantes e vendidos para colecionadores particulares. Seu paradeiro é desconhecido e possivelmente jamais irão ressurgir novamente. Sem o material original para ser estudado, o pergaminho de Shapira permanece como um mistério, com algum debate nos anos mais recentes que reacenderam a discussão sobre se o pergaminho era real ou não. Incrivelmente, hoje em dia, a resposta para a questão não é tão simples quanto se imagina. 

O respeitado especialista israelita-americano Idan Dershowitz, da Universidade de Potsdam publicou artigos em que afirma acreditar que o pergaminho de Shapira precisaria ser reavaliado. Ele crê não apenas que o pergaminho poderia ser real, mas que seriam os mais importantes artefatos bíblicos já descobertos. Dershowitz examinou evidências nos arquivos que sobreviveram. Ele comparou fontes linguísticas e literárias usando técnicas modernas de estudo bíblico e reconstruiu o texto das transcrições e desenhos originais para pintar uma imagem que ele afirma, indica que o pergaminho seria autêntico. 

Ele também teve acesso aos papéis de Shapira na Biblioteca Estadual de Berlim e afirma ter encontrado três folhas manuscritas que parecem mostrar que Shapira estava tentando traduzir o texto por conta própria, com muitas notas, cálculos e informações. Para Dershowitz, tudo o que ele encontrou aponta para que a descoberta poderia ser real. A maneira como eles foram inicialmente descartados como falsos é uma “tragédia tanto para Shapira quanto para toda a existência da disciplina de estudos bíblicos”. 

Sua opinião contundente atesta o seguinte:

"Os documentos são incríveis, pois abrem uma janela para a mente de Shapira. Se ele os forjou, ou fez parte de uma conspiração, não faria sentido que ele estivesse sentado tentando adivinhar qual é o texto e cometendo erros enquanto o fazia. É incompreensível que, durante quase toda a existência da disciplina de estudos bíblicos, esse texto que nos diz mais do que qualquer outro manuscrito descoberto antes ou depois, não tenha sido levado em consideração. Como alguém que passa o dia todo reconstruindo textos originais, muitas vezes sonhei em encontrar algo assim. Mas jamais imaginei que pudesse ser algo que se tornaria realidade."


Dershowitz, que escreveu um artigo sobre suas descobertas na revista Zeitschrift für die Wissenschaft, chamado "A Validação de Moses Shapira: Um Livro Proto-Biblico", também acredita que o pergaminho ainda existe em algum lugar e que, se encontrado, poderia responder às perguntas feitas por todos. 

Outros estudiosos continuam a sustentar que os Manuscritos não passam de uma farsa muito bem fabricada, seja pelo próprio Shapira ou como parte de alguma conspiração maior. Dois dos críticos mais ferinos ao manuscrito são os estudiosos bíblicos Ronald Hendel da Universidade da Califórnia, e Matthieu Richelle da Université Catholique de Louvain, na Bélgica. No final, sem os pergaminhos para serem estudados, sua veracidade permanece no reino da especulação. Os analistas são forçados a trabalhar apenas com fotografias do século XIX, gráficos de roteiro, notas e desenhos dos pergaminhos.

A história de Shapira parece levar a um redemoinho tentador de hipóteses. Se o seu descobridor fosse alguém com uma reputação menos duvidosa o que aconteceria? E se Shapira não tivesse cometido suicídio? E se os manuscritos não tivessem sido vendidos? Será que nesse caso os estudiosos veriam o caso de maneira diferente? 

Embora os pergaminhos de Shapira tenham sido amplamente esquecidos e considerados por muitos como meras falsificações, eles ainda persistem levantando discussão. Nunca foi realmente provado se eles são reais ou não, e eles continuam sendo uma estranha nota de rodapé para os estudos bíblicos e a arqueologia.

domingo, 26 de junho de 2022

Trazidos de Volta - Galvanismo e Ressurreição dos mortos através da Eletricidade


Os séculos XVIII e XIX trouxeram consigo uma explosão de interesse pelas ciências e pela forma como o mundo e o corpo humano funcionavam. Esta foi uma época de conhecimento, com uma enxurrada de novas descobertas no campo da biologia, física, química e medicina. A humanidade começava a compreender o seu papel na natureza e desvendava segredos muito bem guardados desde a criação. Segredos estes que mudariam para sempre a maneira como víamos o mundo no qual estávamos inseridos. 

Um dos maiores avanços foi quanto ao funcionamento do corpo humano, dos organismos vivos como um todo e do mundo natural que está à nossa volta. Os pesquisadores estavam apenas começando a entender o conceito de como as doenças se espalhavam, como a eletricidade funcionava e como os elementos químicos interagiam. Isso deu origem a uma área que estava começando a ser examinada pelos cientistas: O Reino da Morte

Um dos maiores temores do homem sempre foi a morte. O que haveria quando a vida se encerrava? O que a pessoa experimenta? Há uma alma imortal que se solta do corpo quando esse morre? Um dos sonhos do homem sempre foi se perpetuar eternamente, mas para isso, ele teria de ir contra a única certeza que se tem ao longo da vida: morrer. 

Vencer a morte constitui o maior dos desafios e houve um tempo em que os cientistas que se debruçavam sobre o assunto acreditavam piamente que o segredo para a ressurreição residia nas inconstantes forças da Eletricidade.

O pós-morte era uma questão há muito ponderadas pela humanidade, um debate teológico e filosófico que já vinha de séculos. Contudo, foi apenas no século XVIII que as pessoas começaram a tentar encarar essa pergunta de forma científica. Na época, surgiram novas teorias sobre a natureza da morte, e uma delas era a noção de que, na verdade havia duas classificações de morte chamadas de "incompleta" e "absoluta". 


Pensava-se que, desde que o corpo não estivesse putrefato ou decomposto demais, a morte seria "incompleta" e que a pessoa poderia ser ressuscitada. Uma morte "absoluta" significava simplesmente que o corpo físico havia decaído a tal ponto que não seria mais funcional e, portanto, incapaz de ser trazido de volta à vida. Foi essa ideia generalizada de que os organismos vivos poderiam ser trazidos de volta que levou os cientistas da época a tentar descobrir como fazê-lo.

Uma das primeiras tentativas de buscar a ressuscitação dos mortos coube à Sociedade para a Recuperação de Pessoas Aparentemente Afogadas de Londres na década de 1770, que mais tarde se tornaria a Royal Humane Society. Estabelecido por dois médicos chamados William Hawes e Thomas Cogan, a sociedade buscava criar métodos para trazer vítimas de afogamento de volta dos mortos. Para tanto, empregava uma variedade de metodologias e dispositivos, alguns bastante peculiares. A sociedade reivindicou muitas histórias de sucesso, que deixaram o público fascinado. Alguns destes métodos envolviam entre outras coisas banhos quentes para ressuscitação, inserir uma mangueira na boca do indivíduo para drenar água ou ainda remover seus pulmões e trocá-los por balões de ar.  

Essas tentativas inspiraram outros cientistas da época a tentarem suas próprias maneiras de trazer os mortos de volta, o que nos leva a um dos movimentos mais estranhos e macabros de que se tem notícia, envolvendo descargas maciças de eletricidade que supostamente teriam o poder de ressuscitar os falecidos.

Na época, a natureza da eletricidade ainda era pouco compreendida e, em muitos aspectos, era vista quase como uma espécie de força mágica e mística. Em 1780, o médico, físico, biólogo e filósofo italiano Luigi Galvani observou como as pernas de um sapo morto se contorceriam quando atingidas por uma faísca elétrica acidentalmente durante um experimento não relacionado, e isso despertou nele um fascínio pela ideia de que a eletricidade poderia ser usada para efetivamente reanimar o tecido morto. Galvani teorizou que havia algo que ele chamou de "eletricidade animal", que ele postulou ser a Força Vital que animava toda matéria orgânica. O princípio era que, se a quantidade de energia correta fosse ministrada os mortos poderiam ser reanimados. 


Galvani começou uma série de experimentos nos quais encostava eletrodos de metal de latão conectados à medula espinhal do sapo e a uma placa de ferro para fazer os músculos do animal morto convulsionarem e se moverem como se estivessem vivos. Ele perseguiu obsessivamente ao longo de onze anos de pesquisa e experimentação o assunto, que culminou em seu livro sobre "eletricidade animal" de 1791. Suas pesquisas conduziriam ao termo "Galvanismo" que em sua homenagem passou a designar a corrente elétrica gerada pelos organismos biológicos e a contração ou convulsão dos tecidos em contato com uma corrente elétrica.

Quando Galvani morreu em 1798, seu sobrinho Giovanni Aldini continuaria seu trabalho e também se graduaria para novos níveis de morbidez empregando suas descobertas em cadáveres humanos em vez de animais. Ele faria uma demonstração pública de eletroestimulação no cadáver de um criminoso executado chamado George Foster, sobre o qual um observador chocado escreveria:

"Na primeira aplicação do processo no rosto, as mandíbulas do criminoso falecido começaram a tremer, e os músculos adjacentes foram terrivelmente contorcidos, e um olho se abriu piscando nervosamente. Na parte subsequente do processo, a mão direita se levantou e fechou, enquanto as pernas e coxa se moveram."


Embora hoje possa parecer antiético fazer isso, na época, a Inglaterra havia aprovado o Murder Act, que basicamente permitia que os cadáveres de assassinos condenados fossem usados ​​para experimentos científicos. Com as descobertas de Galvani, esses cadáveres foram cada vez mais procurados à medida que outros cientistas precisavam de cobaias. Um dos mais notórios experimentos com galvanismo foi realizado pelo químico escocês Andrew Ure em 1818. Em novembro daquele ano, ele reuniu uma plateia de estudantes, anatomistas e médicos da Universidade de Glasgow, que se sentaram para ver Ure apresentar o cadáver de um assassino que acabara de ser enforcado. Em suas mãos, o cientista segurava duas hastes de metal ligadas a uma bateria voltaica, que ele então começou a tocar em diferentes nervos expostos no cadáver, cada vez induzindo o assassino a convulsionar, estremecer e sacudir, para grande fascínio, repulsa e horror do público. 

Ure descreveria o que aconteceu com o cadáver nos seguintes termos:

"Quando uma única haste foi aplicada à leve incisão na ponta do dedo indicador, este se estendeu instantaneamente; e pela agitação convulsiva do braço foi possível apontar para os diferentes espectadores, alguns dos quais pensavam que ele havia ressuscitado. Os dedos moviam-se com agilidade, como os de um violinista. Cada músculo em seu semblante foi simultaneamente lançado em ação temerosa; raiva, horror, desespero, angústia e sorrisos medonhos uniram sua expressão hedionda no rosto do assassino, superando em muito as representações mais selvagens de um Fuseli ou um Kean. Nesse período, vários espectadores foram forçados a deixar o local por terror ou náusea, e um cavalheiro presente desmaiou."

Embora o corpo não tenha sido reanimado, Ure atribuiria essa falha ao fato de o homem ter morrido de lesão corporal grave durante a execução. Ele insistiria que o método em si teria funcionado com um cadáver que não estivesse tão danificado. Na verdade, Ure passou a dar palestras extensas sobre suas ideias e publicar um panfleto sobre o assunto, embora a maioria da comunidade científica dominante o visse como um charlatão. No entanto, a ideia de usar a eletricidade para trazer os mortos de volta era tão atraente que as pessoas não paravam de falar sobre isso. 


Outros experimentos se seguiram , por vezes resultando em espetáculos macabros nos quais os cadáveres se incendiavam, desmanchavam ou derretiam mediante um choque poderoso. Há relatos de experimentos públicos nos quais a descarga elétrica se espalhou atingindo curiosos que estavam mais próximos que foram fulminados. Em outro experimento, em Devon, um incêndio causou pânico e deixou feridos. Isso levou as autoridades sanitárias a restringir a presença de pessoas aos "espetáculos de ressurreição", como ficaram conhecidos esses experimentos. 

À despeito das falhas sucessivas, alguns cientistas respeitados como Sir Humphry Davy, um químico da Cornualha, acreditava que era questão de tempo obter o sucesso. Ele diria sobre esse misterioso e novo reino:

"A composição da atmosfera e as propriedades dos gases foram determinadas; os fenômenos da eletricidade foram desenvolvidos; os relâmpagos foram tirados das nuvens; e, finalmente, uma nova influência foi descoberta, que permitiu ao homem produzir a partir de combinações de matéria morta efeitos que antes eram ocasionados apenas por órgãos animais. A reanimação não será apenas conquistada, é questão de tempo até ela ficar à nossa mercê". 


Curiosamente, no mesmo ano em que Ure realizou seu experimento macabro, Mary Shelley publicou seu clássico de terror gótico Frankenstein, que foi profundamente influenciado pelo galvanismo e tem alguns paralelos assustadores com esses experimentos. 

Shelley escreveria no seu imortal clássico de reanimação:

"Talvez um cadáver pudesse ser reanimado; o galvanismo havia dado sinal de tais coisas: talvez as partes componentes de uma criatura então pudessem ser fabricadas, reunidas e dotadas de calor vital."

A essa altura, havia muita discussão ética sobre a eletricidade, uma percepção de que ela talvez fosse uma espécie de "faísca da vida", não apenas útil para trazer os mortos de volta, mas também capaz de criar vida do nada; processo conhecido como abiogênese. Os defensores dessa teoria acreditavam que a eletricidade era o componente vital para iniciar a vida o que gerou ainda maior debate, com cientistas sendo acusados (ou afirmando categoricamente) ter ao seu alcance uma faculdade única, até então exclusiva de Deus.

O uso da eletricidade estava se ramificando em outras maneiras de afetar o corpo humano, como o uso de choque elétrico para curar a insanidade, agora conhecido como terapia eletroconvulsiva, e uma vasta gama de outras condições médicas. A eletricidade se consolidava cada vez mais como um meio através do qual tudo era alcançável. 


Embora ninguém tenha sido trazido de volta dos mortos com galvanismo, o uso da eletricidade abriu o caminho para a aplicação moderna de eletricidade ao corpo humano para fins médicos e o estudo das propriedades elétricas de células e tecidos biológicos, chamados eletro fisiologia. Ao mesmo tempo, ampliou nosso conhecimento das vias neurais e ao monitoramento da atividade elétrica do coração, dos músculos e até do cérebro. Os teóricos afinal não estavam inteiramente errados, a eletricidade era partícula essencial para a vida. 

Ainda que a eletricidade nunca tenha reanimado um cadáver, o trabalho de Galvani e até de Ure estabeleceu um legado duradouro na medicina e no campo da neurociência moderna. E tudo teve início de forma muito estranha na história da ciência médica, um olhar sombrio sobre o desejo da humanidade de mergulhar em reinos que não entendemos, e talvez não sejamos feitos para entender.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Mesa Tentacular: O Deus Pálido no Diversão Offline 2022 em São Paulo


Salvem Investigadores e Cultistas,

Nossa tradicional Mesa Tentacular está de volta, com o relato da muito especial e aguardada Mesa que rolou no Diversão Offline 2022.

Depois desse "longo inverno" sem poder narrar presencialmente em eventos ou mesmo comparecer a encontros de RPG, é um alívio e uma alegria conseguir rodar uma mesa presencial para jogadores.

Eu ponderei bastante a respeito de qual aventura escolheria para esse evento em especial, e depois de pensar bastante acabei decidindo por "O Deus Pálido" (The Pale God) do livro The Great Old Ones.

Eu já devo ter narrado essa história uma dúzia de vezes e sempre achei a proposta dela e o desfecho muito bons. De uma forma geral é uma aventura que oferece boas oportunidades para interpretação e momentos bem climáticos de tensão e horror.

Além disso, ela tem um começo que já coloca os jogadores na ação e não demora a engrenar. Quando eles percebem, já estão no meio dos acontecimentos pavorosos e sanguinolentos.

A premissa é incrivelmente simples, começando com o tradicional telefonema de um amigo que não é visto há anos no meio da noite. Um encontro é marcado, mas logo a reunião se transforma em um espetáculo de horror com uma cena macabra e perda maciça de sanidade. Os investigadores recuperam da cena sangrenta as pistas que servirão para entender no que seu amigo havia se envolvido e o que eles precisam fazer para reverter um horror ancestral.

O cenário tem um roteiro bastante intuitivo, os jogadores tendem a seguir um encadeamento de pistas que vão sendo encaixadas uma a uma e levam ao próximo estágio. Logo eles ficam sabendo qual o mistério e invariavelmente seguem para uma casa com fama de ser mal assombrada numa região isolada da Nova Inglaterra. A exploração desse lugar e de seus segredos conduz o grupo a um novo pesadelo do qual parece não haver escapatória. E justo quando eles imaginam que conseguiram escapar, tudo começa de novo.

Eu adoro essa aventura! Ela é perfeita para encontros e one-shot no estilo moedor de carne.

Quando ela é narrada para o grupo certo de jogadores, flui muito bem e geralmente o resultado é ótimo. 

AS FICHAS DE PERSONAGENS:  

Eu sempre gostei de fichas diferentes para os personagens, mas geralmente costumo usar a ficha básica que vem no livro. Mas para essa sessão encontrei na internet essas fichas coloridas que podem ser preenchidas e impressas.

Achei o material de ótima qualidade, tudo é bem fácil de encontrar e apesar delas estarem em inglês e eu preferir em eventos oferecer fichas em português, acho que funcionaram muito bem. 


Criei cinco personagens para a aventura, um grupo bem clássico (e com alguns estereótipos) de Chamado de Cthulhu.

Um Detetive Particular Durão, uma Diletante ricaça, um Médico bastante curioso, um Atleta forte e de bom coração e um Autor de contos de Terror. Escrevi um background curtinho com a história dos personagens e colei num cartão para ficar diante do jogador, com o nome do personagem do outro lado.

O mix do grupo ficou bom. 


OS RECURSOS/ PISTAS

Eu já tinha prontos a maioria dos recursos e pistas desse cenário, mas quis dar uma arrumada neles e torná-los mais bacanas. Imprimi novas versões das fotografias com papel fotográfico, plastifiquei algumas pistas e envelheci alguns papéis para que eles parecessem antigos.

Essas pistas ajudam a criar a ilusão de que o grupo está analisando e processando aquilo que foi encontrado numa cena de crime. 


Eu gosto de esconder pistas e deixar o grupo procurar por elas, por isso usei uma carteira velha e coloquei vários documentos dentro dela, deixando o grupo procurar em cada compartimento por alguma pista escondida.


Deus Pálido tem um dos meus Recursos do Guardião (Handouts) favoritos de Chamado de Cthulhu. Trata-se do desenho de um monstro bizarro feito por uma criança que não sabia exatamente o que estava vendo.

Eu pedi para meu afilhado, que tinha 6 anos na época, para desenhar o monstro a medida que eu ia descrevendo ele, então ficou bem condizente com aquilo que uma criança veria. Não se preocupem, a parte dos corpos e do sangue eu coloquei depois. 

Esse handout funciona que é uma beleza... quando os jogadores o veem pela primeira vez, eles invariavelmente se entreolham.

A CRIATURA NO VIDRO:


Para essa história quis fazer a criatura para representar visualmente aquilo que o grupo encontra durante a investigação. Nem deu muito trabalho criar esse monstrinho com massa bisqui e enfiar ele num vidro de amostras.

Esse tipo de prop é ótimo para evocar aquilo que o grupo está encontrando. Toda vez que eu falava que um dos monstrinhos aparecia na aventura um dos jogadores olhava para o vidro em cima da mesa.

A CADERNETA DE NOTAS:


O outro acréscimo a essa mesa foi a Caderneta achada pelos personagens.

Eu usei uma caderneta de notas criada pelo meu colega Ricardo Ramada que fez um trabalho de primeira envelhecendo as páginas com café. O trabalho ficou tão bom que perguntei a ele se poderia aproveitar o espaço que ainda estava vago para colocar as pistas dessa aventura.

Pretendo usar a mesma caderneta para outras aventuras em que os personagens encontram um caderno contendo pistas/ anotações. Em um próximo artigo vou falar mais à respeito desse prop...



Caprichei na caligrafia bem rebuscada e cheia de estilo e usei uma pena com tinta marrom que deu um visual envelhecido às anotações.

A ideia é que a caderneta continha as notas feitas por um investigador ao longo de um caso em que ele estava trabalhando. Então ela tinha que ser meio bagunçada e caótica com notas de rodapé e considerações aleatórias, como se ele estivesse escrevendo algo para lembrar mais tarde.  



Outra sacada muito boa foi a sugestão do Ricardo de usar uma tesoura especial para recortar as fotos e desenhos que iam ser colados nas páginas. 

As fotos ficaram com essa borda em filigrana que é bem típica de fotografias antigas, tipo álbum de avó. O resultado ficou ótimo!


Eu imprimi as imagens em papel fotográfico e desbotei, escolhendo um tom de sépia condizente com a revelação da época.

Deu um pouco de trabalho para criar a caderneta, mas acho que o resultado final ficou muito bom.

O Jogo:

Com tudo pronto, eu rolei essa aventura no domingo (19/06) no espaço disponibilizado pela Editora New Order no Diversão Off Line.

O jogo foi divertidíssimo e faz toda a a diferença quando os jogadores são bons e se deixam levar pela histórias e pela investigação.

Aqui estão as fotografias que tirei na ocasião:


O grupo de investigadores analisa a caderneta de notas e processa as pistas encontradas na cena do crime.


O monstrinho pálido que em certo momento está em toda parte nesse cenário.


A leitura das anotações é um dos momentos mais importantes desse cenário. O grupo a partir desse ponto traça a sua estratégia de investigação e o que deverão fazer em seguida.


Aquele "Oi" básico durante a sessão.


Isso na mão do meu colega Douglas, acreditem ou não, é uma mega Torre de Dados que nos emprestaram para usar na mesa. 

O negócio parece realmente uma estatueta do Grande Cthulhu e quando fica no meio da mesa impõe respeito.


E essa fotografia final é o já tradicional "placar" da sessão. Os três jogadores agachados na frente perderam seus personagens enquanto os dois ao meu lado sobreviveram às agruras do "Deus pálido" e sua horda.

Bom é isso...

Mais um dia em Chamado de Cthulhu, até a próxima!


quarta-feira, 22 de junho de 2022

Diversão Offline 2022 - O Retorno de um Evento muito esperado

Salvem Investigadores e Cultistas,
No final de semana passado tivemos o Diversão Off Line 2022, evento que celebra a Cultura Geek em todas as suas vertentes e em todas as suas cores. Foi ótimo poder rever os colegas, velhos e novos amigos, gente com quem nós estabelecemos intimidade falando apenas pela internet, ou aquela galera que não se via desde eventos passados e que ansiava por se encontrar novamente.

Posso dizer que, como rato de evento que sou, essa edição foi especial, não apenas por trazer gente de todos os cantos e oferecer um verdadeiro "Quem é Quem" da comunidade de RPG/Boardgame brasileiro, mas por ser o primeiro evento pós-pandemia. Passado esse "longo inverno" todos estavam ansiosos pelo retorno e aproveitar um evento. Com os devidos cuidados, isso foi perfeitamente possível, provando que as coisas estão decididamente voltando ao normal.

E foi ótimo que esse recomeço se dê através do Diversão Off Line, evento que nos últimos anos vem se estabelecendo como o mais importante encontro para o público que curte o segmento de jogos não digitais - Boardgames (Jogos de Tabuleiro) e RPG. O encontro reuniu várias editoras, empresas, lojas e pessoas que trabalha com o segmento de Boardgames, RPG e Mídia Geek para dois dias de muito bate-papo, reencontros, jogos, dados rolando e Diversão à vera.

Ouvi de muitos amigos na internet que o DoffL hoje em dia é mais um evento de Boardgame do que de RPG e que este vem perdendo cada vez mais espaço. Peço licença para respeitosamente discordar dessa opinião. O evento continua sendo de ambas as coisas, atraente tanto para quem busca Boardgames quanto para quem não dispensa o RPG. Da minha parte, eu gosto das duas coisas e acho ótimo que estejam presentes de forma a se integrar e complementar, não para disputar espaço ou medir quem tem mais e quem tem menos seguidores.

No que diz respeito a RPG, tive a chance de não apenas transitar pelos estandes das principais editoras no cenário nacional (New Order, Buró, Jambô, Dungeonist e Retropunk) mas também conversar com os responsáveis por elas. Saber o que está programado para o futuro, conhecer os últimos lançamentos, obter informações sobre produtos e até rolar uns dados amistosamente. Com um pouco de barganha, também deixei o evento carregando mais alguns livros para a coleção. Já no que tange aos Boardgames, as principais empresas também estavam presentes em mega-stands abarrotados com o seu material. Galápago, Bucaneiros, Conclave, Calamity e Funbox ofereciam um excelente espaço para demonstração de jogos, com a maioria oferecendo amostras e gente explicando as regras. Como sempre tivemos o espaço para game designers oferecer uma mostra de seus protótipos. Também haviam stands onde se podia comprar aqueles complementos opcionais que todos adoramos incluir: material para jogos, dados, tokens, sleeves e tudo mais que o aficionado precise (ou não) para sua mesa.

O DoffL aconteceu pela primeira vez no pavilhão do Centro de Eventos Pró-Magno, Zona Norte de São Paulo. É preciso aplaudir a escolha do local para essa edição. O Pró-Magno oferece uma excelente estrutura para esse tipo de evento. Os corredores são bem amplos, as áreas comuns podiam ser percorridas calmamente sem esbarrar uns nos outros e o acesso aos estandes se mostrou tranquilo. A praça de alimentação talvez tenha deixado um pouco a desejar, mas haviam opções para todos os gostos e restaurantes do lado de fora. A localização também me pareceu excelente, com boas opções para acomodações nas redondezas e transporte.

Não seria nada mal, se a organização do Diversão Off Line considerasse a mesma localização para seus futuros eventos. Na minha opinião, esta foi, de longe, a edição que ofereceu a melhor estrutura.

Acredito também que esse tenha sido o evento mais cheio desde que comecei a frequentar o Diversão Off Line. Sábado, a fila dava voltas e voltas no saguão de entrada. Dentro estava bem cheio, mas como o espaço era grande, ficou confortável para quem queria andar pelos estandes ou sentar numa mesa para jogar alguma coisa. Não sei dos números oficiais, mas me parece que sábado foi mais cheio, ainda que domingo também estivesse bastante concorrido.

Como sempre, aproveitei o sábado (18/06), primeiro dia do evento, para passear pelo local e me familiarizar com a geografia do evento. A disposição dos estandes ficou ótima, com as editoras ocupando três faixas do pavilhão. Passei mais tempo na parte destinada a RPG, na companhia de amigos de editoras, mas ainda sobrou um tempinho para jogar um boardgame maroto. Ah sim, aproveitei também para pegar minhas edições devidamente autografadas de Busões e Boletos (do coleguinha Thiago Queiroz e Luiz Lindroth) e o novíssimo Cordel do Reino do Sol Encantado (do Pedro Borges).

Foi ótimo também reunir quase toda galera do Mundo Tentacular, poder trocar ideias e ainda conhecer vários leitores do Blog, dos grupos de Mídia Social e do Servidor Discord. Recebemos várias sugestões, algumas muito interessantes.

No fechamento do primeiro dia, tivemos no auditório a Premiação do Goblin de Ouro, os prêmios oferecidos para os títulos de RPG que mais se destacaram no ano. Embora não tenha ganho na categoria em que estava concorrendo, Melhor Aventura com "No Coração das Trevas", me dou por satisfeito de ter perdido para um excelente título que é A Bandeira do Elefante e da Arara. Quem sabe numa próxima...

Os vencedores do Goblin de Ouro em cada categoria foram:

Melhor aventura: Flagellum Amazonis, A Ilha Abandonada, da Devir
Melhor suplemento: Thordezilhas, Mar de Lírios, de Universo Simulado
Melhor Livro Básico: Tormenta 20, da Jambô Editora
Melhor Coesão de Regras: Ceifadores, da AVEC Editora
Melhor Arte: O Cordel do Sol Encantado, New Order Editora
Melhor Cenário: O Cordel do Sol Encantado
Melhor Mídia Escrita: New Order Magazine, da New Order Editora
Melhor Podcast, Café com Dungeon, do Regra da Casa
Melhor Canal: Biblioteca das Ancestrais
Melhor Produtor de Conteúdo: Prof. Luciano Jorge de Jesus

O domingo (19/06) foi o dia que reservei para narrar RPG e escolhi, é claro, Chamado de Cthulhu como já é tradição. Narrei no estande da Editora New Order que tinha um espaço para os mestres ensinarem regras e apresentar as ambientações da casa. O jogo foi ótimo e será tema de uma próxima postagem específica da Mesa Tentacular.

Terminada a sessão, ainda deu tempo de dar mais uma volta aqui e ali, aproveitar os descontos que invariavelmente aparecem faltando algumas horas para o fechamento e curtir os últimos momentos do encontro.

No geral, posso dizer que o DoffL 2022 foi excelente!

O evento cumpriu todas as minhas expectativas quanto ao retorno de eventos de grande porte e me deixou animado para retornar ano que vem. Eventos como o Diversão Off Line são uma ótima oportunidade para celebrar nosso hobby e reunir num mesmo local pessoas que trabalham ou simplesmente amam esse mundo fantástico.

A espera foi longa, mas valeu a pena.