Sempre existiram manuscritos estranhos que surgem praticamente do nada para desafiar tudo aquilo que que pensamos saber. Ao longo da história, muitos textos, pergaminhos e manuscritos perdidos foram descobertos em lugares remotos do mundo, colidindo com nossas noções preconcebidas da história e abalando nossas certezas. Um destes documentos é um suposto texto bíblico antigo que teria sido descoberto em uma caverna. O achado causou enorme controvérsia e suas ondas seguem reverberando nos campos da arqueologia e dos estudos bíblicos causando um acalorado debate até os dias de hoje.
A história é curiosa e começa da seguinte maneira.
Em 1883, um negociante de antiguidades de Jerusalém chamado Moses Wilhelm Shapira veio à público alegando ter em sua posse algo que ele afirmava ser um pergaminho bíblico até então desconhecido. O manuscrito teria sido encontrado em uma caverna ao longo do rio Wadi Mujib. O riacho é citado por textos bíblicos e sua localização próxima do Mar Morto, onde hoje é a Jordânia, corresponde a muitas das histórias que ele relata. O tal manuscrito em si tinha a forma de quinze tiras de couro velhas e um tanto enegrecidas, sobre as quais foram inscritas caracteres paleo-hebraicos. Ele seria uma versão inicial do Livro de Deuteronômio.
Segundo seu descobridor, a obra era possivelmente uma cópia que chegou a pertencer ao próprio Patriarca Moisés. O material era tão importante que chegava a trazer um décimo primeiro mandamento que dizia: "Você não deve odiar seu irmão em seu coração: pois Deus está nele, seu Deus."
Exatamente como Moses Shapira tomou posse do que viria a ser chamado de Manuscritos de Shapira, também constituía um mistério. Ele próprio afirmava que um dia ouviu de um xeque beduíno que o misterioso manuscrito havia sido encontrado na parte mais profunda de uma caverna considerada sagrada. O item estaria dentro de um vaso de cerâmica, enterrado em um nicho e protegido por peles de carneiro. Ele contaria sobre como conseguiu o pergaminho em uma carta ao estudioso bíblico, Christian David Ginsburg:
"Em julho de 1878, o xeque Machmud Arakat, um conhecido chefe de guias de Jerusalém no Vale do Rio Jordão, me fez uma visita. Como o xeque tinha beduínos do Oriente em sua casa, ele os trouxe todos com ele. Ouvi no dia seguinte que alguns homens de sua confiança haviam se escondido numa caverna para escapar de inimigos que os perseguiam. Isso aconteceu na época em que a Dinastia dos Wali de Damasco lutava contra os árabes, travando uma guerra sangrenta. Eles sabiam que aquela caverna em particular era sagrada e que a entrada nela era proibida, mas temendo pelas suas vidas, os homens não viram outra opção. A caverna possuía várias câmaras que pareciam escavadas na própria rocha, perto do Modjib. Enquanto esperavam o perigo passar, vasculharam o interior usando tochas e encontraram alguns fardos de linho velho. Eles descobriram que o linho marcava o lugar em que algo havia sido enterrado. Escavaram cuidadosamente o nicho e descobriram o vaso contendo as tiras de couro com inscrições. À princípio, acharam que não era nada demais e já pensavam em abandonar o achado, mas um dos homens que conhecia algo de caracteres antigos achou que poderia ser algo importante. Ele salvou as tiras em seu alforje e as protegeu, trazendo até o xeque para que ele as avaliasse.
Quando o xeque me contou essa história, pedi que enviasse o homem e sua descoberta ara que eu conversasse com ele. Meu objetivo era examinar as peças e determinar sua idade e importância. Nos dias que se seguiram analisei febrilmente o conteúdo das tiras, maravilhado pelo significado daquilo tudo, não apenas como homem de fé, mas como historiador.
Enquanto ainda tinha as tiras em seu poder, Shapira recebeu a notícia de que seu amigo, o Xeque, havia ficado doente e que morrera. Mas não sem antes dar ordens expressas para que os artefatos fossem legados ao historiador que segundo ele "melhor do que qualquer outra pessoa poderia determinar sua serventia".
Shapira de posse do material passou alguns anos estudando-o antes de finalmente apresentar suas descobertas à comunidade histórica. Os manuscritos se tornaram uma sensação imediata, e sua descoberta foi publicada nos principais jornais da Europa. Ainda assim, embora o público tenha reagido com interesse pelo assunto, os especialistas mais respeitados se mostravam céticos sobre sua autenticidade. Shapira enviou cópias dos pergaminhos para vários estudiosos e especialistas alemães em um esforço para autenticar a descoberta, mas os pergaminhos foram quase unanimemente tratados como falsificações. Em particular, Shapira abordou o teólogo e orientalista alemão Hermann Leberecht Strack, que era a principal autoridade cristã na Alemanha em literatura talmúdica e rabínica, mas Strack descartou a obra como uma fraude grosseira. A Biblioteca Real de Berlim até se ofereceu para comprar os pergaminhos de Shapira, não porque eles pensassem que eram reais, mas para que os alunos pudessem estudar como a falsificação havia sido feita.
Era compreensível que os pergaminhos recebessem uma reação acadêmica tão negativa, pois Shapira já havia conquistado reputação de falsificador. Certa vez ele tentou vender um falso caixão que supostamente encerrava os ossos do herói bíblico Sansão. Ele também foi pego vendendo 1.700 estatuetas falsas para um museu de Berlim, o que justificava a desconfiança dos museólogos. Contudo, Shapira insistia que neste caso, tudo era autêntico e de máxima relevância histórica. Ele levou os pergaminhos até Londres e ofereceu o tesouro ao Museu Britânico por um milhão de libras. Dois dos fragmentos foram postos em exposições, visitados e apreciados por multidões de pessoas, inclusive o primeiro-ministro inglês, William Gladstone. No entanto, mais uma vez, os estudiosos foram amplamente céticos sobre sua veracidade. Mesmo o estudioso da Bíblia, Christian David Ginsburg com que Shapira mantinha correspondência examinou os pergaminhos e os descartou como falsificações.
Toda a experiência fez Shapira cair em desgraça diante dos especialistas. E ele escreveria a Ginsburg:
"Você me fez de tolo publicando e exibindo coisas que acredita serem falsas. Acho que não vou conseguir sobreviver a essa vergonha. Embora eu ainda esteja convencido de que o manuscrito é autêntico e algo incrivelmente precioso".
Shapira deixou Londres e se refugiou em Amsterdã, e durante os anos restantes de sua vida afirmando que os pergaminhos eram reais, implorando a Edward Augustus Bond, principal bibliotecário do Museu Britânico, assim como Ginsburg, que reconsiderassem sua posição, mas eles mantiveram seus veredictos. Desonrado e muito envergonhado, tendo sua maior descoberta denunciada como fraude por quase todos estudiosos que a examinaram, Shapira cederia ao desespero. Ele cometeu suicídio em 1884.
Depois disso, o Museu Britânico vendeu os fragmentos que ainda estavam em seu poder por uma ninharia e eles foram vistos pela última vez em 1889. Os demais pergaminhos que se encontravam em poder de Shapira antes de sua morte também desapareceram, supostamente foram parar nas mãos de negociantes e vendidos para colecionadores particulares. Seu paradeiro é desconhecido e possivelmente jamais irão ressurgir novamente. Sem o material original para ser estudado, o pergaminho de Shapira permanece como um mistério, com algum debate nos anos mais recentes que reacenderam a discussão sobre se o pergaminho era real ou não. Incrivelmente, hoje em dia, a resposta para a questão não é tão simples quanto se imagina.
O respeitado especialista israelita-americano Idan Dershowitz, da Universidade de Potsdam publicou artigos em que afirma acreditar que o pergaminho de Shapira precisaria ser reavaliado. Ele crê não apenas que o pergaminho poderia ser real, mas que seriam os mais importantes artefatos bíblicos já descobertos. Dershowitz examinou evidências nos arquivos que sobreviveram. Ele comparou fontes linguísticas e literárias usando técnicas modernas de estudo bíblico e reconstruiu o texto das transcrições e desenhos originais para pintar uma imagem que ele afirma, indica que o pergaminho seria autêntico.
Ele também teve acesso aos papéis de Shapira na Biblioteca Estadual de Berlim e afirma ter encontrado três folhas manuscritas que parecem mostrar que Shapira estava tentando traduzir o texto por conta própria, com muitas notas, cálculos e informações. Para Dershowitz, tudo o que ele encontrou aponta para que a descoberta poderia ser real. A maneira como eles foram inicialmente descartados como falsos é uma “tragédia tanto para Shapira quanto para toda a existência da disciplina de estudos bíblicos”.
Sua opinião contundente atesta o seguinte:
"Os documentos são incríveis, pois abrem uma janela para a mente de Shapira. Se ele os forjou, ou fez parte de uma conspiração, não faria sentido que ele estivesse sentado tentando adivinhar qual é o texto e cometendo erros enquanto o fazia. É incompreensível que, durante quase toda a existência da disciplina de estudos bíblicos, esse texto que nos diz mais do que qualquer outro manuscrito descoberto antes ou depois, não tenha sido levado em consideração. Como alguém que passa o dia todo reconstruindo textos originais, muitas vezes sonhei em encontrar algo assim. Mas jamais imaginei que pudesse ser algo que se tornaria realidade."
Dershowitz, que escreveu um artigo sobre suas descobertas na revista Zeitschrift für die Wissenschaft, chamado "A Validação de Moses Shapira: Um Livro Proto-Biblico", também acredita que o pergaminho ainda existe em algum lugar e que, se encontrado, poderia responder às perguntas feitas por todos.
Outros estudiosos continuam a sustentar que os Manuscritos não passam de uma farsa muito bem fabricada, seja pelo próprio Shapira ou como parte de alguma conspiração maior. Dois dos críticos mais ferinos ao manuscrito são os estudiosos bíblicos Ronald Hendel da Universidade da Califórnia, e Matthieu Richelle da Université Catholique de Louvain, na Bélgica. No final, sem os pergaminhos para serem estudados, sua veracidade permanece no reino da especulação. Os analistas são forçados a trabalhar apenas com fotografias do século XIX, gráficos de roteiro, notas e desenhos dos pergaminhos.
A história de Shapira parece levar a um redemoinho tentador de hipóteses. Se o seu descobridor fosse alguém com uma reputação menos duvidosa o que aconteceria? E se Shapira não tivesse cometido suicídio? E se os manuscritos não tivessem sido vendidos? Será que nesse caso os estudiosos veriam o caso de maneira diferente?
Embora os pergaminhos de Shapira tenham sido amplamente esquecidos e considerados por muitos como meras falsificações, eles ainda persistem levantando discussão. Nunca foi realmente provado se eles são reais ou não, e eles continuam sendo uma estranha nota de rodapé para os estudos bíblicos e a arqueologia.