A história da Sicília, na Costa da Itália, sempre esteve ligada à lendas sobre gigantes mitológicos supostamente os primeiros habitantes da ilha. A crença local, profundamente enraizada no folclore siciliano menciona homens de enorme estatura que viviam no interior da ilha e que eram muito temidos pelos povos da península italiana. De certa forma foi o temor diante dos misteriosos gigantes que manteve a Sicília deserta por séculos.
As lendas são recordadas de forma vibrante na procissão chamada "Passeggiata dei giganti", que significa literalmente "A Caminhada dos Gigantes". Este festival é celebrado na cidade de Messina todos os anos no dia 14 de agosto, em memória de dois gigantes conhecidos como Mata e Grifone. Duas imensas estátuas de madeira, com quase 8 metros de altura, representando Mata, uma bela mulher branca de cabelos dourados, e Grifone, um guerreiro sarraceno gigante de pele escura, são puxadas pelas ruas sobre rodas, acompanhadas por músicos e da batida incessante de tambores.
Existem opiniões divergentes sobre a origem do festival. A versão mais conhecida nos leva de volta no tempo para o ano 964 dC, quando Messina era o último baluarte no sul da Itália a resistir à ocupação árabe. Durante o cerco de Messina, o general mouro Hassan Ibn-Hammar, recebeu ordens para tomar a cidade e destruí-la, mas ele se apaixonou perdidamente por Mata, filha de um comerciante local. O comandante fez o possível para cortejar Mata, mas ela só concordou em casar com ele se o pretendente poupasse sua cidade. Ele concordou e Messina sobreviveu à guerra. Em seguida, ele mudou seu nome para Grifo e ficou conhecido como Grifone (que significa "o Grande Grifo"). Mata e Grifone tiveram muitos filhos e viveram felizes para sempre.
Por mais romântica que pareça essa história, provavelmente ela foi inventada em um período posterior para promover a harmonia comunitária e lançar uma pitada de romance sobre uma época especialmente violenta. A história da ocupação da Sicília é repleta de guerra, vinganças e chacinas, com narrativas sanguinolentas. Entretanto, é provável que Mata e Grifone sequer tenham existido e que as imagens sejam de outros personagens.
As lendas sobre gigantes na Sicília são bastante antigas. |
Mas as lendas sobre gigantes na Sicília são ainda mais antigas. Desde pelo menos o século V aC, os poetas gregos acreditavam que os antigos habitantes da Sicília não eram apenas gigantes, mas um tipo específico de gigante muito mais terrível que os demais. Eles seriam membros da lendária raça de monstros de um olho só, os Ciclopes.
Na Odisseia, Homero escreveu que os ciclopes viviam em cavernas e levavam uma vida perversa, não plantando nada mas devorando o que conseguissem agarrar com suas mãos ávidas. Eram carnívoros terríveis, adeptos do canibalismo que massacravam qualquer visitante indesejado que pisasse em sua ilha. Arremessavam pedregulhos à distância prodigiosa, esperando atingir embarcações que estivessem navegando pela costa. Um petardo que acertasse em cheio uma nau deixaria os náufragos à mercê dos monstros.
Um dos gigantes mais famosos da antiguidade era Polifemo - não por acaso, o maior deles. O ciclope conseguiu capturar Odisseu e seus companheiros e os manteve aprisionados dentro de sua caverna, com a intenção de devorar dois deles a cada dia. Mas Odisseu conseguiu escapar após cegar o único olho de Polifemo.
A principal característica dos ciclopes; seu olho único é uma característica extremamente bizarra. Na natureza não há nenhum exemplo de animal dotado de apenas um olho. Curiosamente não há gigantes caolhos nas lendas de nenhuma outra cultura. É possível que os marinheiros fenícios, cuja mitologia influenciou os poetas gregos, tenham contado histórias sobre gigantes de um olho só. Os fenícios foram pioneiros em viagens pelo Mediterrâneo e exploraram a maioria das ilhas antes de qualquer outro povo. Como forma de desestimular outras nações a fazer o mesmo, eles inventavam inúmeras lendas sobre monstros, criaturas e seres aterrorizantes. Os rumores sobre gigantes ferozes habitando ilhas podia fazer com que mercadores rivais evitassem tais lugares.
Uma alegada nascara mortuaria de um ciclope |
Outra possibilidade é que os ciclopes podiam pintar um "terceiro olho" proeminente na testa. No imaginário antigo o terceiro olho era o símbolo de uma consciência mística das coisas além da visão comum. Há representações em que os ciclopes aparecem com um olho adicional e não como caolhos. Os deuses hindus, como Shiva, eram geralmente representados com um terceiro olho proeminente, enquanto muitos sacerdotes pintam o "tilak", uma marca alongada na testa, simbolizando o terceiro olho. Parece razoável supor que os ciclopes seguissem um costume semelhante. Ou talvez, os ciclopes realmente tivessem um terceiro olho que funcionasse bem, além dos olhos normais, o que não é impossível, já que eles eram de origem divina; filhos de Poseidon, o Deus do Mar.
Uma escultura romana datada do século primeiro aC retrata em detalhes a cena da "Cegueira de Polifemo". Na obra é possível ver a diferença do tamanho entre os heróis e o monstro. Odisseu e seus homens eram descritos como altos (o que na época significava ter 1,70 m de altura). Já o Ciclope Polifemo tinha ao menos 6 metros de altura segundo as versões romanas. Não era incomum que os monstros - Gigantes e Titãs, fossem descritas como criaturas muito altas. Os gregos e romanos associavam a estatura diretamente com a força, quanto mais alto um homem (ou criatura) mais poderosa ela seria.
Por essa razão os gigantes eram tão temidos pelos povos da antiguidade. Um monstro com vários metros de altura era visto como uma ameaça considerável, capaz de superar muitos homens ao mesmo tempo. Historiadores gregos e romanos eram unânimes em relatar que gigantes estavam entre as criaturas mais perigosas (e temidas) no mundo antigo.
Filistas, um cronista cretense do século II aC escreveu que "não há nada mais assustador do que a ira de um gigante" visto que "uma única criatura dessa espécie poderia aniquilar um exército inteiro". Os romanos acreditavam que o Norte da Europa era o lar de tais criaturas, e que os povos nórdicos que residiam naquelas latitudes (muito altos) eram descendentes desses seres. Já os gregos acreditavam que havia gigantes no Norte da África, na Península Ibérica e é claro, nas ilhas do Mediterrâneo. E a Sicília era um dos lugares onde tais monstros podiam ser encontrados mais habitualmente.
Polifemo sendo cegado por Odisseu |
Outra razão para a Sicília atrair tantas suspeitas quanto a presença de gigantes se encontra em sua própria geografia. Existem muitas cavernas artificiais na Sicília que são tão grandes que não há uma explicação simples sobre quem as construiu ou com que finalidade. A chamada "Orelha de Dionísio" é uma caverna de calcário escavada nos arredores de Siracusa, na Sicília. Ela tem incríveis 23 metros de altura e se estende por 65 metros até terminar em um penhasco. Horizontalmente, dobra-se em forma aproximada de S, enquanto verticalmente afunila no topo como uma lágrima. A acústica dentro da caverna é muito boa, fazendo até mesmo um pequeno som ecoar várias vezes. O nome "Orelha de Dionísio" foi cunhado pelo pintor Michelangelo que visitou o lugar e o batizou em função do formato lembrando uma orelha. Qualquer pessoa que visita o lugar se pergunta por que seria feito tamanho esforço para construir uma caverna tão alta, sem nenhum propósito aparente.
Desde a antiguidade exploradores cogitavam se aquela caverna não teria servido de abrigo para gigantes quando eles, conforme as lendas, emergiram de seus covis subterrâneos sob o Monte Etna. De fato, essa caverna era muito temida e evitada pelos primeiros habitantes que chegaram à Sicília e lá se estabeleceram do século VI dC em diante. Acreditavam que gigantes ainda espreitassem nas profundezas. Também se mencionava que o lugar estava sempre coalhado de energias místicas e que bruxos costumavam se reunir na escuridão para seus rituais.
Outra caverna de dimensões gigantescas também na Sicília é a Grutta di Gurfa que foi escavada em um período muito remoto - alguns acreditam que no quinto milênio antes de Cristo. As cavernas Gurfa têm várias salas esculpidas em dois níveis: um primeiro andar e um andar superior. No centro está uma enorme sala oval que conecta tudo. Ela tem uma cúpula de 16 metros de altura e é iluminada por um óculo acima e uma janela a sudoeste através do qual penetra a luz do sol. É claramente uma caverna escavada na rocha e deve ter demandado uma notável mão de obra para ser concluída. Tais cavernas com tetos anormalmente altos e escavadas por mãos humanas teriam sido moldadas pelas mãos de gigantes como acreditavam os antigos?
Há ainda um outro elemento que relaciona a Sicília com a presença de gigantes em seu interior: a existência de lendárias ossadas humanas.
Tommaso Fazello um frade dominiano e historiador nascido na Sicília foi o primeiro a pesquisar as origens da ilha. Ele escreveu um tratado publicado em Palermo no ano de 1558 no qual descrevia meticulosamente muitos dos locais antigos da Sicília – como Akrai, Selinus, Heraclea Minoa. Nesses lugares, segundo ele, haviam cemitérios que receberam os restos de gigantes, os primeiros habitantes da Sicilia.
O tamanho relativo de um gigante |
Fazello relatava a descoberta de uma caverna aos pés do Monte Eryx, onde exploradores encontraram os restos de um gigante ao lado de um cajado do tamanho de um mastro de navio. A ossada do indivíduo em questão deveria ter pelo menos 5 metros de altura e seu enorme crânio tinha uma única órbita ocular, o que serviu para convencer as testemunhas que se tratava de um ciclope. Os ossos teriam sido levados para Messina e expostos no Palácio Ducale até 1430 quando foram roubados por saqueadores árabes. Dos restos originais sobraram apenas três dentes que foram guardados pelo magistrado da cidade de Eryx. Os dentes, quatro vezes maiores do que os dentes humanos normais, fizeram Fazello considerar que o corpo pertencia a ninguém menos do que o lendário Polifemo.
Relatos semelhantes de esqueletos gigantes encontrados na Sicília estão presentes na obra de vários outros escritores medievais. Rovello Cassio, um cronista napolitano de 1610 menciona que cavernas em Akrai possuíam nichos escavados na rocha sólida onde foram depositados cadáveres tão grandes que seus descobridores ficaram chocados. Eram, para todos os efeitos, gigantes com mais de 5 metros de altura, muitos deles com um único olho. Diferente da ossada de Eryx, estes gigantes estavam mumificados, com os corpos em excelente estado de conservação. Infelizmente as peças foram levadas para Palermo e deixadas em um ambiente que terminou por deteriorá-las de tal forma que os restos acabaram sendo destruídos.
Mas não apenas historiadores italianos mencionavam os ossos gigantes. O explorador inglês R. S. Kirby escreveu em seu livro intitulado "Wonderful and Scientific Museum" em 1804 as seguintes notas:
"Em 1516 Johannes Franciforte, Conde de Mazarino, tendo feito cavar uma cova, numa planície a cerca de uma milha da aldeia de que era senhor, encontrou num sepulcro, o corpo de um gigante medindo incríveis 7 metros de altura. Pouco tempo depois, em 1547, Paul Leontino, examinando o solo no sopé de uma montanha nos arredores de Palermo, em preparação para a escavação de uma mina de salitre, encontrou o corpo de um gigante de 6 metros."
Ele também dizia que em uma pequena aldeia entre Siracusa e Leôncio, um grande número de sepulcros e esqueletos gigantescos foram descobertos, e que muitos outros semelhantes foram encontrados perto da antiga aldeia de Hicara, que os sicilianos chamam de Carini, em uma imensa caverna no sopé da montanha.
A descoberta de uma ossada de gigante. |
É fascinante – e um tanto inacreditável – ler sobre a descoberta de esqueletos medindo fenomenais 6 metros de comprimento. Mais incrível ainda é saber que R.S. Kirby foi um famoso cartógrafo muito respeitado pelas seus cálculos precisos e cartas náuticas. Teria um genuíno explorador inventado histórias sobre gigantes ou ele realmente viu esses ossos misteriosos?
Curiosamente Kirby não foi o único estrangeiro a apontar evidências sobre a presença de gigantes na Sicília. O naturalista, matemático e cosmólogo francês Conde de Buffon, em seu livro “História Natural: Geral e Particular" publicado em 1780 descreve o seguinte:
"Não resta dúvidas de que a Sicília no passado foi habitada por uma raça de homens que devem ser considerados como gigantes de enorme magnitude (...) eram indivíduos, a maioria do sexo masculino com mais de 5 metros de altura, alguns medindo até 8 metros. As encostas montanhosas da ilha estão pontilhadas por antigas cavernas escavadas na época desses indivíduos. Tais localidades serviram como mausoléus por gerações e lá foram sepultados incontáveis gigantes."
O Conde de Buffon também foi responsável por uma publicação no Journale Scientifico em que atestava que na Alta Calábria, região do extremo sul da Itália, separada da Sicília pelo estreito de Messina, também haviam indícios de mausoléus comportando gigantes. Em 1665, foi escavado nos jardins do Signior de Tiviolo, um esqueleto humano com 5,4 metros, sendo que o crânio tinha 86 centímetros de comprimento.
Esses relatos estão alinhados com descobertas semelhantes de esqueletos gigantes relatadas por vários historiadores greco-romanos. Philostratus escreveu sobre um esqueleto gigante que tinha 6,4 metros e jazia em um afloramento do promontório em Sigeion. Phlegon de Tralles descreveu que dois esqueletos gigantes foram encontrados dentro de seus caixões pelos cartagineses, um dos quais com 4,4 metros e outro 5,8 metros de altura.
O terror dos ciclopes |
Será possível que todos esses escritores estivessem enganados ou simplesmente inventando coisas? Se por um lado as descrições são completas e repletas de detalhes, por outro, não há quaisquer provas físicas da existência dessas ossadas.
Alguns arqueólogos e antropólogos modernos acreditam que os historiadores antigos provavelmente confundiram os ossos de animais extintos do Pleistoceno, como os mamutes e preguiças gigantes com os de gigantes lendários - uma hipótese interessante visto que há ossadas de elefantes e animais pré-históricos em toda ilha. Havia duas espécies de elefantes na Sicília, ambas descendentes dos gigantescos elefantes de presas retas da era do Pleistoceno, com mais de 4,5 metros de altura, que migraram para a Sicília há mais de 500.000 anos. As espécies menores de elefantes, chamadas Palaeoloxodon falconeri, mediam apenas 3 metros de altura, enquanto o espécime maiores chamados Palaeoloxodon mnaidriensis tinha uma altura média estimada de 2,80 metro. Esses espécies de elefantes foram extintos na Sicília muito antes da chegada dos primeiros homens ao local mas seus ossos estavam dispersos em todo canto.
Contudo, parece improvável que um homem da Idade Média, ainda mais um estudioso pudesse confundir a ossada de um elefante com a de um homem, mas esse pode muito bem ser o caso.
Esqueleto de elefante achado na Sicília |
O crânio de um elefante se assemelha ao crânio de um ciclope. |
Embora os restos esqueléticos de gigantes de 6 metros de altura não tenham sido recuperados na era moderna da Sicília ou do mundo greco-romano, um desses esqueletos apareceu no ano de 1934. A notícia desta descoberta foi publicada em vários jornais em todo o mundo. Um deles foi o British Courier de Manchester que afirmou:
"Palermo. 9 de agosto: A descoberta de um esqueleto que se acredita ser de um gigante pré-histórico, medindo 6,3 metros, foi relatada em Garise, na porção central da Sicília. O esqueleto foi encontrado por um fazendeiro, que notou um osso parcialmente enterrado na margem do rio na fazenda de sua propriedade. As tentativas de desalojar o esqueleto com a ajuda de outros aldeões falharam. Um trator foi necessário para erguer os restos, com o fêmur medindo 1,8 metros de comprimento. O esqueleto foi levado ao palácio de governo em Garise onde aguarda por um exame pericial. O distrito é conhecido pela riqueza de relíquias fossilizadas de uma era anterior. A última descoberta importante foi feita há três anos, quando foram encontrados os restos de um mamífero pré-histórico gigante."
Esta descoberta extremamente significativa está intimamente alinhada aos relatados de Fazellus, o Conde de Buffon e os historiadores greco-romanos. O relatório descreve o esqueleto como o de um “gigante”, o que não é surpreendente, pois a Sicília conservou suas lendas sobre gigantes até o século XX. Infelizmente, porém, não ouvimos mais nada sobre esse esqueleto em particular depois que os geólogos colocaram as mãos nele. Certamente, uma descoberta tão notável deveria ter recebido ampla cobertura da mídia, mas ela simplesmente desapareceu. O esqueleto parece ter sido levado para algum local desconhecido, e posteriormente o assunto foi sendo esquecido. Isso levanta a suspeita de que, pelo menos algumas partes dos restos mortais encontrados no passado possam também ter sido encontrados para em seguida desaparecerem sem deixar rastro. Ou pior ainda, poderiam ter acabado em coleções particulares longe do público em geral.
Com tudo isso, seria pedir demais devotar alguma credibilidade às histórias sobre Gigantes na Sicília, ou tudo não passa de simples lenda? Teria existido uma raça de gigantes vivendo na ilha? E se sim, o que teria acontecido com eles? É provável que essas lendas não sejam nada além de mero folclore, mas novamente ficamos atormentados com aquela minúscula pergunta: E se houver um fundo de verdade em algum lugar?