A crença popular diz que não há há pecado que não possa ser perdoado. Mas o que acontece quando o indivíduo é tomado por tamanha obstinação e teimosia que não deseja perdão e não enxerga suas faltas como pecados mortais.
Segundo o mesmo conjunto de crenças enraizadas no imaginário popular, uma pessoa que comete pecados horríveis em vida e que morre sem deles se arrepender pode ser amaldiçoada pela eternidade. Surge assim uma coisa que não está morta, mas que também não está inteiramente viva, uma entidade de maldade total que se arrasta pelos cantos escuros, charcos alagados e bosques fechados em busca de vítimas para aplacar suas vontades profanas. Eles são chamados de Corpo Seco, pois o nome se encaixa perfeitamente na forma amoral que esses mortos vivos assumem.
São criaturas movidas por fortes emoções conservados após a morte. O ódio é o sentimento predominante que alimenta essas criaturas detestáveis; ele queima como uma fogueira voraz consumindo suas almas atormentadas. O Corpo Seco é sempre rancoroso, furioso e violento em suas interações com os vivos. Por esse motivo, não é possível barganhar ou negociar com eles - tudo o que querem, tudo o que desejam, é sufocar os vivos.
A lenda é conhecida nos estados de Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, São Paulo e no nordeste do Brasil, mas com algumas diferenças. Há lugares em que a transgressão cometida pelo Corpo Seco está ligada a um pecado de natureza religiosa, como por exemplo não honrar uma promessa feita a um Santo de devoção. Em outros casos, o candidato a Corpo Seco assume essa condição após trair amigos, a esposa ou os próprios filhos, abandonando-os ou deixando-os propositalmente em más condições. Aquele que abandona uma criança para morrer de fome ou que ignora as privações de sua esposa pode voltar como tal monstruosidade.
Seja lá qual motivo enseja a criação do Corpo Seco, ele continua nutrindo seu rancor ao longo de sua existência nefasta. Isso acontece por que o Corpo Seco tem a si mesmo como um injustiçado: ele não acha que é merecedor de sua punição e como resposta a essa "injustiça" ataca quem estiver ao seu alcance, como se estes, e não ele próprio, fossem os catalizadores de sua tragédia.
Diz ainda a lenda, muito difundida pelo interior do Brasil que o Corpo Seco não é aceito nem por Deus e nem pelo Diabo. Incapaz de ascender ao Paraíso e negado de descer às profundezas do Inferno ele permanece na Terra. Um ser maldito por definição, nem mesmo o próprio solo que recebe os vermes deseja servir de leito para o Corpo Seco. A terra o expele como se sentisse nojo de seu toque abjeto. Como resultado, o Corpo Seco não encontra descanso e meramente vaga sem destino por onde seus passos vacilantes o carregarem.
Ele é ativo somente à noite, visto que aproveita a escuridão para ocultar sua presença. Raramente é visto em cidades ou vilarejos uma vez que a sua aparência é impossível de ser disfarçada. Durante as horas do dia, busca guarita em poços, nas ruínas de casebres ou sob uma árvore onde fica caído como se fosse um cadáver. Esse aliás é um dos seus truques, fingir ser um cadáver abandonado para que alguém se aproxime o suficiente e permita que ele agarre o incauto. O Corpo Seco é matreiro e pode se valer dessa estratégia usando um anel, um colar ou qualquer objeto de valor para atrair uma vítima para perto. O Corpo Seco pode permanecer imóvel por dias esperando que alguém passe pelo local onde ele escolhe se deitar. Ele é extremamente paciente e nada lhe trás mais prazer do que imaginar alguém caindo em sua armadilha.
O Corpo Seco não busca por uma vítima específica visto que odeia qualquer pessoa ou ser vivo. Geralmente são incapazes de falar, mas há indivíduos que conseguem repetir uma única palavra ou sentença com uma voz vazia e sepulcral. O Corpo Seco não se alimenta de suas vítimas, seu ímpeto por matar é um ato de egoísmo perverso. Depois de assassinar alguém ele simplesmente segue adiante, sem qualquer satisfação ou compleição.
Essa é uma monstruosidade do além-vida e como tal encarna as características típicas dos Mortos-Vivos. Ele não se difere de um cadáver estropiado, com a pele e músculos esticados sobre os ossos amarelados. Ao se mover, as juntas estalam e rangem e ele dá passos vacilantes como se lhe faltasse convicção. Não há qualquer resquício de sangue em seu corpo, as veias estão secas e mesmo ferido, nada irá verter do cadáver esturricado. Há um estranho brilho nas órbitas vazias onde estiveram seus olhos, um brilho de pura maldade. Ao contrário da crendice, eles não são putrefatos e não emitem o fedor característico da campa sepulcral. Tampouco atraem nuvens de insetos. Ao longo de sua existência deplorável o Corpo Seco vai perdendo as roupas até que restem apenas alguns trapos. Cabelos e unhas, no entanto, continuam crescendo e se tornam compridos, bem como os dentes que se arreganham num esgar medonho à medida que os lábios rescendem.
O Corpo Seco se vale de furtividade e surpresa para atacar. Enquanto espera por uma vítima, por vezes ao longo de dias, ele planeja como irá perseguir um alvo que por ventura escapa de sua investida inicial. Não sendo especialmente ágil ou rápido, o monstro tenta aterrorizar a vítima fazendo com que ela seja incapaz de fugir. O cadáver ambulante usa então suas garras afiadas ou as presas para matar, rasgando a garganta da vítimas. Em alguns lugares ele é chamado de "Unhudo" por conta das garras que crescem sem parar.
Destruir um Corpo Seco não é tarefa simples, visto que são resistentes a armas comuns e não registram ferimentos. Um bala disparada simplesmente os atravessa e uma facada abre um buraco em sua pele sem grandes resultados. O fogo é obviamente a arma mais eficiente contra essas abominações que gritam em desespero enquanto as chamas os consomem.
Como um Monstro do Mythos:
É possível que o Corpo Seco seja o resultado de algum experimento místico horrivelmente mau sucedido.
Essas criaturas são malditas e portanto podem ter sido criadas deliberadamente através de poderosos feitiços (similares aos que criam zumbis). Também existe a possibilidade de que os Corpos Secos sejam o resultado de um feitiço de Ressurreição executado com alguma falha. O Necronomicon, contém o perigoso feitiço que devolve a vida aos mortos e que permite aos esquecidos caminhar novamente como se vivos estivessem. Contudo o tomo maligno alerta que para resultados satisfatórios as proporções dos assim chamados Sais Primordiais sejam respeitadas. Qualquer erro nessa dosagem, seja na mistura dos ingredientes ou no preparo dos elementos alquímicos pode resultar em um espécime imperfeito. É de se imaginar que os Corpos Secos possam ser exatamente esse resultado falho.
Outra hipótese é que o Corpo Seco seja um tipo de Morto-Vivo criado pelo exaurimento da energia vital de uma pessoa por alguma entidade do Mythos. Não são poucas as abominações do Mythos que se alimentam de seres vivos e que deles tiram sustento. Atlach-Nacha, Tsathogua e Glaaki são Grandes Antigos que se alimentam da energia de seres humanos. Uma vez sofrendo esse tipo de obliteração, quem sabe o tipo de energia malévola que permeia os restos e que pode animá-los uma vez mais.
Finalmente, o nauseante Culto de Mordiggian, uma divindade pálida ligada a Morte, possui sanções que recaem sobre seguidores que falham em seus deveres ou renegam seu patrono. A escravidão como morto-vivo é uma das punições mais temidas entre os devotos. É possível que a lenda do indivíduo que falha em cumprir suas promessas tenha sido adaptada à partir de algum cultista que não foi capaz de cumprir seus votos sagrados para com essa entidade.
Me valendo da brilhante descrição deste laborioso blog. E com pesar que constato que o atual presidente posto no cargo tratasse de tal entidade amaldiçoada. Nove dedos de pura ganância e perversidade.
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