Guerra em nome de Deus.
As grandes religiões do mundo uniformemente pregam a paz e piedade, contudo a História, especialmente a história da Idade Média mostra que religião e violência andavam juntas e não estavam em contradição uma com a outra.
A crença em Deus por vezes está ligada a noção de lutar em nome de Deus e de ser recompensado no Paraíso. aqueles que morrem em nome da Guerra Santa se tornam mártires e tem benefícios garantidos pelas suas crenças. A palavra Islã significa Paz e Cristo ensina que amar nossos inimigos é necessário, mas em nome dessas crenças, o mundo se lançou em um sangrento movimento conhecido como a Cruzada.
Nessa série de artigos do Mundo Tentacular, vamos cobrir um dos momentos mais importantes da História Medieval e de como acontecimentos tão distantes, aparentemente perdidos no tempo, ainda reverberam através da História e afetam os dias atuais. Falaremos também de ficção e de como as cruzadas podem ser usadas como um componente real de terror em crônicas onde resplandece o Horror Cósmico. Afinal, poucas coisas podem ser mais assustadoras do que uma guerra movida pelo fanatismo cego.
A Cristandade por volta do ano 1100 era marcada por um profundo senso de fé e pelo desejo pessoal de se atingir uma vida santificada. Foram esses sentimentos que levaram tantas pessoas a empreender uma guerra de 200 anos distribuída em sete longas campanhas de morte e conquista em nome do Príncipe da Paz. Para compreender o que foram as Cruzadas é preciso entender que a Idade Média foi uma época de grande violência e brutalidade e mesmo a religião estava impregnada por tais elementos. Demonstrar atitude diante do que muitos acreditavam ser uma agressão direta contra a fé cristã, era uma forma de encontrar o caminho da virtude.
A Igreja também incentivou uma estranha mistura de fé e serviço militar que lançou uma multidão num furor de fanatismo e zelo. Milhares deixaram suas vidas e seguiram para o Oriente Médio, abandonaram o cotidiano e suas famílias seguindo um desejo de ver o mundo, conhecer a Terra Santa e libertá-la do jugo de inimigos da fé - os infiéis. Entre sucessos e fracassos eles mudaram o panorama da Idade Média para sempre.
Começaram a surgir então rumores alarmantes sobre peregrinos sendo atacados por bandidos muçulmanos. O Patriarca de Bizâncio, Alexios I pediu auxílio ao Papa Urbano II para que ele intercedesse. O Papa viu nisso uma forma de estreitar os laços com a Igreja Católica Oriental que havia se separado em um Grande Cisma. Entretanto, os boatos eram enormemente exagerados: Muçulmanos estariam profanando a Terra Santa, peregrinos estariam sendo assassinados e mosteiros sendo destruídos. Pior ainda, os rumores davam conta de que os lugares santos estavam sendo controlados por infiéis que não respeitavam a importância do berço da cristandade. Essas narrativas se espalharam rapidamente e no ano de 1095, durante o Concílio de Clairmont, o Papa Urbano II fez um discurso emocionado que mudaria o curso da história.
Ele conclamou todas as pessoas da Cristandade a se manifestar imediatamente e fazer a sua parte no que ele chamava de Missão Divina. Era dever de todo cristão ajudar a libertar Jerusalém da presença dos infiéis e escorraçar os muçulmanos que controlavam o acesso a Terra Santa. O discurso do Papa inflamou os presentes e gritos começaram a ser ouvidos: "Deus Vult! Deus Vult!" (Deus Quer! Deus Quer!). As pessoas se comprometiam então a abraçar a Cruzada que devolveria a Terra Santa aos seus "donos de direito".
Embora o pedido do Papa tenha chegado a muitas pessoas e se espalhado por todos os cantos da Europa, à princípio houve pouca movimentação de nobres. Entretanto, em 1096, sob o comando de um monge chamado Pedro, o Eremita, uma multidão de 30 mil entusiasmados camponeses foi persuadida a abraçar a causa. Estas eram pessoas simples, ignorantes e sem qualquer perspectiva, que acreditavam estar sendo convocadas para a mais sagrada das missões. Acreditavam que Deus iria prover os recursos para sua viagem e que ao chegarem ao Mar Vermelho, as águas iriam se abrir e permitir a sua passagem. Amparados pela crença em milagres e profecias, eles deixaram campos e glebas e começaram a seguir para o leste.
Essa carta branca para agir livremente, sem temer o perigo da Danação Eterna, dava aos Cruzados que se juntassem ao movimento, o direito de roubar, pilhar e matar. Nada seria considerado pecado, já que eles estavam agindo em nome do Senhor. A oportunidade de enriquecer e saquear as cidades no caminho, era uma perspectiva boa demais para ser deixada de lado e esse foi o catalizador para a Cruzada ganhar mais e mais adeptos.
A Primeira Cruzada foi um empreendimento tipicamente europeu. Da França, Normandia, Flandres e Lorena começaram a surgir cavalheiros dispostos a empreender a longa jornada até a Palestina. Eles ainda não tinham organização, mas já começavam a surgir as bases para o que ficaria conhecido como Ordens de Cavalaria - as Sociedades Medievais que se tornaram notórias no período. Os Cavaleiros viam a si próprios como libertadores virtuosos, agentes divinos com a força da civilização. Nem podiam imaginar que os muçulmanos, que eles chamavam de bárbaros e infiéis, eram consideravelmente mais avançados que eles, tendo inúmeras conquistas nos campos da ciência, medicina e conhecimento. O choque cultural entre esses povos foi marcado por estranheza, admiração e desconfiança. Quando os europeus retornaram de sua aventura trouxeram histórias sobre maravilhas e riquezas, sobre um mundo muito mais evoluído e avançado.
Levaria três longos anos e incontáveis percalços até os cavaleiros chegarem a Jerusalém. A estrada seria pavimentada por guerra, pilhagem e morte. Por onde passavam, os cruzados deixavam um rastro de sangue e destruição que marcou o período com horríveis incidentes. Mas mesmo estes iriam empalidecer diante do que estava por vir.
Enquanto isso, a Cruzada popular do monge Pedro, o Eremita chegou ao Mar Vermelho em 1099, depois de vagar pelo Leste Europeu como um bando de maltrapilhos. A tropa havia crescido, ganhando adeptos em cada reino que adentrava. Eles acreditavam poder atacar vilarejos, roubar o que precisavam e matar quem resistisse. Havia uma força superior que os absolvia, ou ao menos era o que dizia seu eloquente líder. Ao se aproximar do Mar Vermelho, acreditavam que poderiam cruzar facilmente, mas quando as águas não se abriram conforme esperado, tiveram de negociar com marinheiros e piratas. Muitos deles acabaram sendo enganados e terminaram seus dias escravizados em galés. Outros, que conseguiram cruzar para a margem oriental seguiram em frente como uma horda miserável e suja. Foram alvo fácil dos turcos seljúcidas, que haviam se estabelecido na região e que viram aquela multidão como uma força de invasão. Sua aventura terminou sem que conseguisse chegar a Jerusalém e pouco mais de 3 mil voltaram para casa.
A tropa mais bem preparada, composta por nobres cavaleiros e soldados profissionais convergiu de forma mais ordenada, ainda que tenham havido momentos de caos e saques. Eles atingiram os portões de Constantinopla, mas na Capital Imperial, os governantes ficaram tão chocados com a presença inesperada daquele exército que se negaram a recebê-los. Temiam com razão uma possível pilhagem se permitissem a eles entrar na sua bela cidade. Para agradá-los, cederam soldados, serviram comida e bebida à multidão e lhes indicaram o caminho que levava até Jerusalém.
Alguns meses depois, a tropa finalmente chegou ao seu destino na Cidade Santa. Os Cruzados mal podiam acreditar no que viam, assim como os habitantes da cidade que viviam em relativa paz e tranquilidade, respeitando as crenças uns dos outros. Era uma tropa considerável, formada por milhares de homens que haviam empreendido três anos de suas vidas nas árduas estradas da Idade Média. É preciso lembrar que viagens eram incrivelmente perigosas e que aquelas pessoas haviam passado por agruras durante sua jornada. Além disso, eles acreditavam estar adentrando uma nação inimiga.
O grosso do exército acampou nas colinas que cercam a cidade histórica e ficaram debatendo sobre como proceder em seguida. Depois que seu acesso foi negado os comandantes estavam divididos sobre o que fazer em seguida. Alguns temiam realizar um ataque direto a Jerusalém e danificar os lugares santos. Sua indecisão durou pouco! Um grupo de Cruzados liderados por sacerdotes realizou uma romaria em torno da cidade, gritando e rezando. Carregavam cruzes e queimavam incenso. O grupo atraiu a atenção de guardas que imaginavam se tratar de uma investida contra os muros. Uma das portas laterais se abriu e cavaleiros avançaram sobre o grupo causando um massacre. Era o pretexto necessário para a violência explodir.
Os Cruzados investiram de todos os lados, disparando flechas e pedras sobre os portões. Escadas e cordas foram lançadas para transpor as muralhas, enquanto de dentro os defensores disparavam contra a horda. As tentativas de romper as barreiras falharam já que a cidade demonstrava uma resistência ferrenha.
Mas após cinco semanas de cerco, as defesas de Jerusalém começaram a fraquejar à medida que os recursos no interior da cidade se tornavam mais escassos. Um acordo permitiu que os Cruzados entrassem com a condição de respeitar a população local, mas de nada adiantou. Quando a tropa cristã adentrou os portões da Cidade Santa seguiu-se uma chacina vergonhosa com saques, incêndio, estupro e assassinato. Estima-se que algo em torno de 65.000 habitantes, em sua maioria mulheres e crianças de crença judia e muçulmana, tenham sido massacrados em um frenesi sanguinário. Templos e sinagogas arderam por dias, casas foram roubadas e tudo que podia ser transformado em saque mudou de mãos.
Foi uma vitória terrível, sangrenta e desesperada, mas a Terra Santa enfim pertencia uma vez mais aos aos Cristãos.
Contudo, essa seria apenas a primeira experiência dos Cruzados no Oriente Médio e o domínio da Terra Santa mudaria de mãos várias outras vezes, como veremos na continuação dessa série.
https://www.brasilparalelo.com.br/artigos/o-que-foram-as-cruzadas
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