"Ao vencedor, os espólios".
Esse é um ditado aparentemente antigo que se refere ao fato de que os vitoriosos nas guerras e conflitos podem reclamar para si o que bem entender, afinal, eles venceram. Contudo, ao contrário do que se pensa; o adágio é bem mais recente e foi proclamado por um político norte-americano, o Senador de Nova York, William L. Marcy. Ele cunhou o dizer no ano de 1828 ao se referir a uma campanha presidencial vencida por Andrew Jackson.
Mas não importa quem disse primeiro ou em qual contexto, o sistema de "espólios" existe faz muito mais tempo, desde os primórdios da arte da guerra como uma justificativa de compensação para o vencedor. Enquanto os "espólios de guerra" em geral se referem a terras, propriedades, tesouros, armas e outras posses, eles, por vezes, podem assumir uma natureza bem mais grotesca. Não são poucos os povos e civilizações que consideravam as cabeças ou crânios dos inimigos derrotados como espólios legítimos.
Os Astecas e Maias davam enorme importância a coleta de cabeças de inimigos conquistados que eram amarradas pelos cabelos nos cinturões dos guerreiros quando estes desfilavam vitoriosos. Os Pictos escoceses, celtas e gauleses também costumavam decapitar suas vítimas e mediam a capacidade de um guerreiro de acordo com a quantidade de crânios colecionados. Isso sem mencionar as tribos Maori do Pacífico Sul.
Mas não eram apenas as cabeças os itens desejados pelos conquistadores vitoriosos. Nas campanhas romanas no Norte da África, os legionários costumavam reclamar os órgãos genitais de seus inimigos. Estes eram embalsamado e vendidos no coração do Império por uma boa soma. Os Persas por sua vez eram famosos por tomar as orelhas dos inimigos as colocando em colares orgulhosamente vestidos em volta do pescoço. Dedos e narizes eram os troféus favoritos dos babilônios que os colocavam em pequenos sacos de couro usados em volta do pescoço. Os colonos americanos reclamavam os longos cabelos dos indígenas, ainda que os próprios nativos tenham sido associados à prática de arrancar o couro cabeludo no famoso ato de escalpelar.
Quando se fala de espólios de guerra raramente essa é uma prática associada aos antigos egípcios, mas surpreendentemente foram eles os primeiros a adotá-la.
Recentemente uma escavação no noroeste do Egito desenterrou uma vasta e macabra coleção de mãos humanas. Os membros, cerca de dezessete, foram cuidadosamente embalsamadas com substâncias preservativas e guardadas em caixas de madeira, algumas delas cuidadosamente identificadas. Elas continham detalhes sobre o dono original e relatavam onde o novo dono as havia reclamado. Não por acaso, todas haviam sido obtidas em campos de batalha.
"Pela primeira vez, as mãos cortadas de 17 indivíduos foram analisadas osteologicamente. As caixas contendo as mãos haviam sido colocadas em três covas em um salão de fronte a um salão em Hyksos. O lugar, uma casa proeminente na atual Tell el-Dab‘a deve ter pertencido a alguém importante." detalha a arqueóloga Julia Gresky do Instituto Arqueológico Alemão de Berlim numa publicação na revista Scientific Reports.
As covas foram escavadas diante do pátio de entrada, num local de destaque. Os nobres que viviam em Hyksos na 15ª dinastia eram estrangeiros – alguns historiadores referiam-se a eles como invasores – que estabeleceram o seu reino no Delta do Nilo, e governaram o Baixo e Médio Egito. Eles eram conquistadores extremamente violentos que impunham sua vontade de forma brutal. Flávio Josefo, um historiador romano-judeu do século I dC, escreve que quando os hyksos foram expulsos do Egito, eles fundaram Jerusalém.
Em 2011, uma equipe de arqueólogos havia encontrado uma cova semelhante, mas essa descoberta recente mostra que a prática era bastante difundida entre a população. Manfred Bietak, diretor de projeto e campo da escavação, relatou que há indícios de que os nobres colecionavam esses troféus relacionados a suas campanhas militares. Quanto mais mãos de inimigo coletadas, maior a admiração de seus compatriotas. Relatos sugerem que as mãos, quando coletadas eram expostas, sendo pregadas pela palma no portão de entrada das casas como uma maneira de demonstrar as proezas realizadas pelo morador da propriedade.
O conteúdo das covas chama a atenção pela maneira como foram organizadas. A duas primeiras caixas continham uma mão humana cada, enquanto a terceira e maior continha os restos de 15 mãos. Todas as mãos eram direitas e é possível que as mãos guardadas em caixas exclusivas pertencessem a guerreiros famosos ou até governantes derrotados. Bietak suspeita que as mãos possam ter sido obtidas ao longo de um período de 40 anos que corresponde ao auge expansionista de Hyksos no Egito.
"Nossa evidência é a mais antiga e a única evidência física. Cada poço representa uma cerimônia um ritual distinto."
A cerimônia a que Bietak se refere diz respeito aos "Espólios de guerra" sobre a qual os egípcios escreveram, e chamavam de "Ouro do Valor". O guerreiro triunfante teria o direito de vida e de morte sobre o conquistado e poderia exigir dele aquilo que desejasse. Um relato encontrado na parede do túmulo de Ahmosis, filho de Ibana, um egípcio que lutou numa campanha pelos hiksos, descreve a prática horrível.
“Na campanha eu lutei bravamente. Travei luta corpo a corpo, com espada e escudo. Da campanha eu trouxe a mão de um inimigo. Era um bravo oponente, de quem retirei o poder ao cortar sua mão e ofertá-la ao arauto do Rei".
Em outras palavras, Ahmosis decepou a mão de um inimigo e a entregou ao arauto real, que em troca deu ouro ao soldado. Segundo a inscrição, o guerreiro posteriormente entregou mais três mãos e recebeu "ouro em dobro". Esta prática de cortar as mãos dos inimigos era considerada popular tanto entre os hiksos como entre os egípcios, mas só em 2011 foram encontradas provas que a apoiavam a prática. Por mais horrível que fosse a prática, os pesquisadores liderados por Julia Gresky encontraram detalhes mais terríveis quando conduziram novas análises dos restos mortais. O aspecto mais incomum das mãos decepadas foi a forma como foram colocadas nas covas.
Depois de remover quaisquer partes fixas do antebraço, as mãos eram colocadas em tábuas de madeira, pregadas nas faces palmares com os dedos bem abertos. Os dedos das mãos eram intencionalmente dispostos dessa forma, possivelmente como parte de um ritual. Os pesquisadores também determinaram que os ossos do carpo da fileira proximal, um conjunto de 8 pequenos ossos no pulso que conectam as mãos aos antebraços, foram encontrados intactos em 6 das mãos, mas nenhum fragmento de osso do antebraço foi encontrado. Isso indica que as mãos foram amputadas deliberadamente, cortando a cápsula articular e depois cortando os tendões que cruzam o pulso.
Toda essa precisão parece indicar que quem perdeu o braço estava vivo quando isso aconteceu e quem cortou o fez com cuidado. Os restos mortais eram "macios e flexíveis", o que indica que as mãos foram tratadas quase imediatamente, antes do início do rigor mortis - provavelmente como parte de uma cerimônia ritual. As mãos pertenciam a homens e uma delas a uma mulher, o que, indica que entre os guerreiros conquistados haviam mulheres que também guerreavam. E mais, que ao menos uma delas, provou ser tão valorosa que sua mão foi considerada um prêmio à altura de um nobre de alta estirpe.
"A localização, o tratamento e possivelmente o posicionamento das mãos decepadas argumentam contra a hipótese da punição imposta pela lei como motivação para estes atos. Quando contextualizadas numa abordagem transdisciplinar das fontes arqueológicas e históricas, as evidências arqueológicas aqui apresentadas sugerem que as mãos decepadas foram oferecidas como troféus como parte de um evento público."
Tanto quanto é do conhecimento dos autores, os resultados apresentados neste artigo fornecem a primeira evidência bio-arqueológica direta da cerimónia do "ouro de honra" e contribuem significativamente para o debate sobre a reconstrução desta cerimónia. ”
As mãos nas covas são provas concretas da prática dos "Espólios de guerra" e do “Ouro de Honra” praticado pelos Hiksos da 15ª Dinastia do Egito. Depois de obter as mãos, os guerreiros recebiam ouro e os nobres aumentavam sua coleção. Esse era um claro aviso aos estrangeiros: de que o reino era vitorioso e que inimigos deveriam pensar duas vezes sobre o quanto valorizam suas mãos direitas.
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