sexta-feira, 5 de julho de 2024

Ladrões de Cabeças - O inacreditável roubo de crânios em nome da ciência

Há muito que tentamos compreender o que nos torna aquilo que somos, o que nos torna humanos.

Durante séculos, houve muitas tentativas de descobrir o que provoca nossas emoções, os nossos pensamentos, o que constrói nossa personalidade e, na verdade, as nossas próprias almas. Uma área que desperta muita curiosidade é exatamente a origem da genialidade. Cada geração produz alguns indivíduos que transcendem a norma, para surgirem com uma visão incrível que impulsiona a nossa espécie. De onde isto vem? É alguma característica inata, algo que nasceu com eles? É apenas diligência e prática de um ofício? Ou é algo mais? Durante séculos houve uma investigação séria sobre essas questões, e isso teve muito a ver com o roubo de cabeças de pessoas mortas.

Na última parte do século XVIII, surgiu a ideia de que o formato do crânio de uma pessoa, seus vários contornos, saliências e depressões, poderiam prever todo tipo de coisas sobre uma pessoa, incluindo traços de personalidade, talentos, afinidades, propensões e muito mais. Estava muito em voga e esta foi a época de ouro de um estudo conhecido como Frenologia

Embora tenha sido praticada desde o século XVII, a Frenologia foi popularizada e incentivada pelo médico alemão Franz Joseph Gall em 1796. Rapidamente se tornou influente no século XIX, especialmente de 1810 a 1840. A ideia básica era que o cérebro é o órgão da mente e que certas regiões do cérebro possuíam funções ou módulos localizados e específicos que influenciavam a pessoa. De acordo com a frenologia, essas diferentes regiões eram como músculos do cérebro, e seu funcionamento afetava o formato do crânio, razão pela qual todos tinham inchaços em lugares diferentes e todos tinham cabeças com formatos diferentes. Acreditava-se que, ao examinar o crânio de alguém, você poderia dizer muito sobre ele, incluindo sua personalidade e muitas outras coisas, como quão religiosa uma pessoa poderia ser, quão zangada ela estava, quão bem ela conseguia se concentrar, se ela era ou não destinada a uma vida de crime ou fama, se seriam bons cientistas ou soldados, ou uma boa esposa ou mãe, a lista era infinita. 

Para os frenologistas, seu crânio revelava tudo o que precisavam saber sobre você.


À medida que a frenologia ganhou popularidade, ela foi usada para estudar os crânios de criminosos, para determinar até que ponto eles eram resgatáveis, para escolher os melhores escravos, as melhores esposas e por empregadores que procuravam eliminar quaisquer funcionários cujos crânios fossem considerados impróprios para sua profissão. Não demorou muito para que as pessoas também refletissem sobre se o formato do crânio também poderia nos dar um vislumbre da fonte da qual se origina a criatividade dos gênio. Na época, havia a ideia de que talvez o gênio não viesse apenas da prática e do aperfeiçoamento do ofício, mas de uma característica inata proveniente de uma fonte nebulosa e intangível dentro do cérebro, e que isso poderia ser identificado através do exame dos crânios. O problema era que a maioria dos gênios não queria realmente que suas cabeças fossem examinadas e não estavam dispostos a doar seus corpos para a ciência. Foi então que ladrões de túmulos dispostos a fazer isso à moda antiga entraram em ação. Colin Dickey, autor de Cranioklepty: Grave Robbing and the Search for Genius, chama o ato de roubar crânios de gênios de "Craniocleptologia". 

A ideia era que diferentes partes do seu cérebro fizessem coisas diferentes e isso é algo que ainda afirmamos ser verdade. Mas o que os frenologistas acreditavam era que, se uma parte específica do cérebro fosse mais desenvolvida, seria fisicamente maior e, na verdade, pressionaria o crânio e criaria uma espécie de reentrância. Então o crânio funciona como uma forma de registrar onde seu cérebro está mais forte ou mais fraco. Se você pudesse estudar a cabeça de alguém descobriria se ele seria um grande cientista ou um bom soldado ou uma boa esposa e mãe ou alguma bobagem assim.

Nessa época, a noção de gênio artístico era algo completamente místico e mágico. Ninguém tinha ideia do que fez de Mozart o grande compositor que ele foi. Os frenologistas acreditavam, entretanto que se conseguissem, cabeças suficientes de grandes pensadores famosos, de grandes artistas e músicos, eles poderiam descobrir onde haveriam os inchaços que denotavam a genialidade. Portanto, a ideia de pegar a caveira de uma pessoa famosa – não apenas de uma pessoa famosa, mas especificamente de um gênio artístico – era uma necessidade. E então a noção de roubar crânios de pessoas famosas surgiu como uma "nobre causa". Ao menos aos olhos desses cientistas alucinados...

Embora já fosse comum que crânios de criminosos executados e de loucos fossem roubados e vendidos a frenologistas, os crânios de gênios eram muito mais difíceis de obter e muito mais valiosos. Por conta disso, ladrões de túmulos faziam dessa atividade macabra um mercado lucrativo. Havia pessoas que queriam desesperadamente encontrar aquela fonte de gênio, o coração da criatividade, e estavam dispostas a fazer grandes esforços para colocar as mãos nesses crânios. Alguns chegavam a acreditar que poderiam absorver parte dessa genialidade inata como uma espécie de osmose mística.


Um dos mais conhecidos e estranhos roubos de crânios ocorrido nesse período foi o do famoso compositor austríaco Franz Joseph Haydn, muitas vezes chamado de "Pai da Sinfonia" e "Pai do Quarteto de Cordas". Amigo e mentor de Mozart, tutor de Beethoven, e um dos compositores mais célebres da Europa, Haydn morreu em 1800. Cinco dias depois seu corpo foi desenterrado e sua cabeça decepada por Carl Joseph Rosenbaum, contador da família Esterhazy, nobres que eram patronos de Haydn e conhecidos do compositor. Segundo todos os relatos, Rosenbaum vinha planejando o roubo da cabeça de Haydn muito antes de o compositor morrer, e até fez um teste para roubar o túmulo da cantora e atriz Elizabeth Roose de quem removeu o crânio. 

O contador roubou com sucesso o crânio de Haydn subornando um coveiro e o preservou, mantendo um diário meticuloso sobre tudo, desde como ele o roubou, até o cheiro que exalava e como ele removeu a carne e músculos do seu troféu macabro usando ácido.

Durante anos, Rosenbaum manteve o crânio de Haydn em sua casa, em um armário preto adornado com uma lira dourada, e só 11 anos após o roubo é que alguém perceberia que a cabeça estava faltando, quando foi decidido desenterrá-lo e depositar o músico em um tumba mais luxuosa. Quando a sepultura foi aberta, logo se descobriu que, embora o corpo de Haydn ainda estivesse lá, tudo o que restava da cabeça era a peruca com a qual ele havia sido enterrado. Isso levou a uma investigação policial massiva para rastrear o crânio desaparecido, que apontou Rosenbaum. Mesmo assim, o ladrão lhes devolveu um crânio diferente para que pudesse ficar com a verdadeira. Dickey conta mais detalhes:

"Ele realmente sentiu como se estivesse prestando um grande serviço ao profanar o cadáver desse grande homem para que sua cabeça pudesse ser preservada. As autoridades só descobriram o roubo 11 anos depois, quando finalmente tentaram dar-lhe o seu tão esperado enterro cerimonial e perceberam que sua cabeça estava faltando. Isso levou a uma investigação policial massiva para encontrar a cabeça de Haydn e eles chegaram até Rosenbaum e alguns de seus conspiradores. E eles devolveram à polícia uma cabeça diferente. O crânio verdadeiro ficou em poder dos frenologistas, passando de mão em mão para estudos prolongados."


Só em 1954 é que a cabeça de Haydn seria finalmente encontrada e reunida com o seu corpo. Compositores famosos parecem ter sido os principais alvos de roubo de cabeças, pois outro caso bem conhecido é o do genial compositor Wolfgang Amadeus Mozart. Apesar de ser uma lenda da música clássica respeitado e reverenciado até hoje, quando morreu em 1791, ele não era um homem particularmente rico, e por isso foi enterrado num túmulo simples. Quando a sepultura foi escavada sem cerimônia em 1801 para dar lugar a novos corpos, o coveiro removeu o crânio o que deu início a uma jornada bastante estranha.

A cabeça de Mozart foi repassada de mão em mão até chegar ao famoso anatomista Joseph Hyrtl, que a estudou. Nela encontrou sinais da grandeza do compositor, em particular na forma e tamanho do osso temporal direito do crânio, ao qual ele anexou uma nota nomeando-o "musa vetat mori" (a musa evita a morte). O crânio foi doado ao Mozart Museum, em Salzburgo, Áustria, em 1902, onde ficou exposto até a década de 1950, período em que adquiriu a estranha reputação de ser mal-assombrada, já que os frequentadores do museu relatavam que às vezes podiam ouvir uma música fraca vindo da peça. Durante esse tempo, houve algum debate sobre se era mesmo o crânio de Mozart, já que tal coisa nunca havia sido provada conclusivamente. Alguns frenologistas poderiam facilmente ter trocado o crânio para manter o verdadeiro para si, como Rosenbaum havia tentado. No final da década de 1980, o crânio foi analisado pelo antropólogo forense Dr. Pierre-François Puech, do Museu do Homem da França, que concluiu que provavelmente era o verdadeiro crânio, mas em 2006 cientistas contratados pela televisão estatal austríaca para fazer testes de DNA no item não conseguiu encontrar correspondência com nenhum dos parentes vivos de Mozart. Até hoje a caveira está no Museu, mas ninguém sabe se realmente pertenceu a Mozart ou não.

Juntando-se às fileiras dos grandes compositores que tiveram suas cabeças roubadas para dar uma espiada em sua genialidade está ninguém menos que o grande compositor e pianista alemão Ludwig van Beethoven. Um dos compositores mais admirados da história da música ocidental, Beethoven morreu em 1827, aos 56 anos, e foi sepultado no Cemitério de Währing, a noroeste de Viena. Quando exatamente sua cabeça desapareceu e quem a levou é um mistério. Contudo, quando o corpo dele foi exumado em 1866, ainda tinha a cabeça totalmente intacta, mas quando os restos mortais foram transferidos em 1888 para serem reenterrados no Zentralfriedhof de Viena, a cabeça havia sido dilapidada e partes estavam faltando. Obviamente elas haviam sido removidas seletivamente e roubadas. 

O autor do crime nunca foi encontrado, mas acredita-se que os pedaços de crânio foram levados por um médico amigo de Beethoven e frenologista, Gerhard von Breuning, que pode tê-los mantido secretamente durante o período em que o corpo foi exumado pela primeira vez. Ele foi o único que ficou sozinho com o crânio na época e demonstrou um intenso interesse em estudar o crânio de um gênio, então faz sentido. Os fragmentos foram encontrados décadas depois e identificados como sendo de Beethoven por análise de DNA em 2005.


Não foram apenas os compositores que tiveram seus túmulos profanados para que alguém pudesse roubar seu precioso crânio. O místico, filósofo e intelectual cristão do século XVIII, Emanuel Swedenborg, estava no radar dos frenologistas muito antes de morrer, não apenas porque era famoso por seu intelecto, mas também devido ao fato de muitas vezes afirmar estar em comunhão com vários espíritos e demônios e também por afirmar ser imortal. Quando ele morreu em 1772, alguns até pensaram que ele havia forjado a própria morte. Quando o corpo foi exumado em 1816, a cabeça desapareceu e, ao longo dos anos, apareceu e sumiu em várias ocasiões, sem que ninguém tivesse certeza se era realmente de Swedenborg ou não. Um frenologista que supostamente colocou as mãos nele nessa época afirmou que o estudou em busca do “órgão da imaginação”. O mistério do crânio de Swedenborg nunca foi resolvido.

Somando-se à lista está o célebre pintor Francisco Goya, que morreu em 1828 de derrame cerebral durante uma visita à França. Quando ele foi enterrado novamente em 1899, a bizarra descoberta foi feita de dois esqueletos no túmulo e apenas um com cabeça. Nunca foi possível determinar quais restos eram quais e a cabeça desaparecida nunca foi encontrada. Há também o caso do escritor britânico Sir Thomas Browne, que morreu em 1682, após o qual sua cabeça desapareceu quando seu caixão de chumbo foi acidentalmente reaberto por trabalhadores em 1840. A cabeça acabaria sendo recuperada em 1922 e reenterrada, mas o culpado permanece desconhecido.

Outro crânio desaparecido famoso é o de ninguém menos que o famoso dramaturgo, poeta e ator inglês William Shakespeare, cujo túmulo há muito é um mistério por si só. Shakespeare morreu em 1616 e foi sepultado na Igreja da Santíssima Trindade, em Stratford-upon-Avon, com uma lápide sem nome que traz a mensagem bastante sinistra: 

“Bom amigo, pelo amor de Jesus, deixe repousar, 
/ Não cave a poeira aqui encerrada.
 / Bendito seja o homem que poupa estas pedras, 
/ E maldito aquele que move os meus ossos.” 

Ao longo dos anos, houve muitos rumores sobre o túmulo, incluindo que o dramaturgo havia sido enterrado em pé, que foi enterrado a 5,7 metros de profundidade para evitar ser perturbado ou que na verdade ele havia sido enterrado em outro túmulo. Um boato persistente é que ladrões de túmulos do século XVIII haviam roubado o crânio de Shakespeare, mas isso não foi confirmado. Apenas em 2016, o arqueólogo Kevin Colls e sua equipe usaram um radar de penetração no solo para examinar o túmulo e descobriram que havia muitas evidências de que de fato a cabeça tinha sido levada. Colls disse sobre suas descobertas:

"Nos deparamos com uma coisa muito estranha e estranha. Era muito óbvio, com todos os dados que recebíamos, que havia algo diferente acontecendo. Concluímos sinais de perturbação, de material sendo escavado e recolocado. Há também uma estrutura de tijolos muito estranha que atravessa a cabeceira da sepultura. O roubo de túmulos foi um grande acontecimento nos séculos XVII e XVIII. As pessoas queriam o crânio de pessoas famosas para que pudessem analisá-lo e ver o que os tornava um gênio. Não me surpreende que os restos mortais de Shakespeare tenham sido um alvo."


A popularidade da frenologia continuaria a crescer no século XIX em toda a Europa e até mesmo através do mar chegando à América, mas ao longo dos anos cairia gradualmente em desuso. Um problema é que passou a ser vista como uma pseudociência sem base em factos empíricos, ao mesmo tempo que havia também o facto de ser uma prática controversa e macabra para não dizer desagradável. A Igreja também não concordava com ela e condenava sua realização. Enfim, a frenologia foi tecnicamente proibida em Viena em 1802 pela Igreja, embora tenha continuado a ser praticada até meados do século XIX. 

Dickey conta à respeito:

"Sempre foi um tema controverso, A frenologia foi proibida em Viena, onde surgiu, em 1802, embora a razão pela qual foi banida pela igreja tenha sido porque a frenologia postulava que a alma estava localizada dentro do cérebro, o que era quase sacrilégio. Mas foi isso que deixou os religiosos incomodados. Mas além disso, muitos estudiosos viam a frenologia como uma ciência ridícula, mesmo quando se tornou muito popular. Mark Twain ficou famoso por expor, frenologistas em Nova York, após ser informado que ele próprio tinha um crânio chato e não muito interessante. Eles certamente continuaram a postular ideias sobre onde estava o gênio no cérebro e como, poderiam manifestar sinais específicos no crânio."

Mais do que estudar os crânios, os frenologistas estavam também interessados ​​em ter esses souvenires guardando-os como colecionadores. Isso explicaria porque mesmo quando a ciência caiu em descrédito, em meados do século XIX, os crânios continuaram em poder dos ladrões. Por mais que fosse uma ideia ultrapassada, muitos gênios ficaram sem seus crânios, e nós ainda permanecemos sem resposta sobre o que nos move, ou de onde brota o gênio e a criatividade. Seja qual for o caso, trata-se, no mínimo, de um pedaço bastante macabro da história e de um olhar sombrio sobre os nossos esforços passados ​​para compreender os mistérios da condição humana.

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