A Sociedade dos Amigos das Crianças (The Children's Friend Society) talvez tenha o nome mais enganoso entre as sociedades de caridade criadas ao longo da história. Patrocinada por indivíduos extremamente ricos da alta sociedade de Londres na primeira metade do século XIX, o grupo prometia "fazer alguma coisa" a respeito da quantidade absurda de crianças de rua na Inglaterra durante a Era Victoriana. E de fato eles fizeram algo a respeito: as crianças aos poucos começaram a sumir das ruas da grande metrópole do Império Britânico.
Mas o que veio em seguida, foi aterrorizante.
Em 1830, o Capitão Edward Pelham Brenton fundou a Sociedade dos Amigos das Crianças, uma organização que ele acreditava ajudaria a aliviar o terrível sofrimento de crianças de rua empobrecidas que vagavam pela Inglaterra. Eram "crianças de que ninguém queria saber" nas palavras do Capitão Brenton, um fardo para a sociedade que estava sendo plantado e que iria gerar consequências dramáticas para o futuro do império. As palestras de Brenton a respeito eram cheias de verdades inconvenientes.
Brenton obviamente tinha razão, as crianças precisavam de muita ajuda. Crianças de todas as idades, abandonadas e famintas estavam por toda parte. Em uma época dura, de incríveis desigualdades sociais, elas estavam sujeitas a todo tipo de abuso e injustiça. Até então, a noção de que crianças precisavam de um cuidado diferenciado era impraticável, sobretudo entre as pessoas menos esclarecidas. Para todos os efeitos crianças não passavam de adultos em miniatura, submetidas a condições inadequadas para corpos e mentes ainda em desenvolvimento. Muitas delas trabalhavam nas ruas imundas da cidade em serviços degradantes: limpando chaminés, em linhas de montagem ou carregando baldes de dejetos em troca de poucas moedas. A imensa maioria dormia em pensionatos baratos, sórdidas casas de albergue ou então nas vielas estreitas sem a supervisão de um adulto que delas cuidasse ou mesmo que, com elas, se importasse. No inverno algumas congelavam até a morte ao relento. Aquelas que tinham sorte eram auxiliadas por igrejas ou obras assistenciais. A maioria não tinha tanta sorte e mendigava.
A quantidade de filhos ilegítimos rejeitados era simplesmente alarmante, praticamente impossível de se colocar em números. Bebês eram abandonados pelas mães em cestas ou em caixotes na porta de igrejas e orfanatos. Abortos eram algo frequente na Inglaterra Victoriana, quando levar a termo uma gravidez representava um grave risco para a mulher. Em se tratando de uma gravidez indesejada, muitas mulheres preferiam dirimir a questão recorrendo a chás, beberagens (como o consumo de terebentina) ou a verdadeiros açougueiros, disfarçados de médicos.
As crianças que sobreviviam para atingir a primeira infância não estavam livres das agruras do mundo inclemente. Os meninos tentavam conseguir trabalhos menores ou se juntavam a gangues de menores infratores (Street Urchins) que vagavam noite e dia cometendo pequenos delitos. Quando capturados, o reformatório ou a prisão eram o destino certo desses "delinquentes" enviados para o cárcere compartilhado com criminosos adultos. O exército era uma opção, mas nem todos tinham os requisitos necessários para servir ao Império. Uma vida de necessidade não favorecia a construção de soldados.
As meninas não tinham mais sorte... as que não conseguiam um trabalho servil em casas ou no comércio informal, estavam sujeitas ao perverso universo da prostituição infantil. Os inúmeros bordéis de Londres recebiam meninas de até nove anos, apresentadas ainda nessa tenra idade a uma existência simplesmente degradante. Na Lei Britânica durante o século XIX, relações sexuais consentidas eram permitidas a partir dos 12 anos. Algumas meninas conseguiam chegar a adolescência casar e constituir família, mas o destino delas era quase sempre uma vida solitária, marcada por traumas e abusos horríveis demais para enumerar.
Diante de tudo isso, algo precisava ser feito.
O Capitão Brenton era um homem que viajava muito, e que havia conhecido toda extensão do Império Britânico, "aquele em que o sol jamais se punha". Na sua concepção, a maneira mais adequada de ajudar essas crianças e resolver o problema das cidades, era enviar as crianças para as colônias. Além mar, haveria trabalho honesto e decente, além é claro de oportunidades para se estabelecer e obter sustento.
Em 1645, deportar crianças para trabalho pesado já era uma atividade comum na Inglaterra. Homens especialmente contratados para capturar crianças ganhavam por apreensão e não se importavam de sequestrar e subtrair mesmo aquelas crianças que tinham família e não se enquadravam na descrição de órfãs abandonadas. A situação se tornou tão séria que em 1654 o Parlamento promulgou uma lei que proibia a emigração forçada de crianças.
A Sociedade se tornou muito popular entre a elite londrina, em círculos de pessoas esclarecidas e preocupadas. Dois anos depois de ter sido fundada, a sociedade já havia se convertido em uma enorme organização com apoio de pilares da sociedade e do clero. Milhares de doações eram feitas para ajudar e estas eram empregadas no projeto do Capitão Breton. Aparentemente os resultados começaram a surgir logo, as ruas foram ficando cada vez menos lotadas de crianças.
O que poucos sabiam, ou de fato, queriam saber, era para onde diabos as crianças estavam sendo enviadas. A verdade só foi revelada tempos depois: elas estavam sendo colocadas em porões de navios e despachadas para colônias distantes para jamais voltarem.
Um dos navios comissionados pela Sociedade dos Amigos das Crianças foi enviado para a Colônia de Swan River na Austrália. A colônia havia sido fundada em 1829, apenas um ano antes da própria sociedade. Em 1830, notícias davam conta que quase todas as embarcações que tentavam empreender a jornada sofriam avarias, senão afundavam nas águas traiçoeiras. Os primeiros colonos a se estabelecer quase morreram de fome: as terras eram quase impossíveis de se cultivar. Em 1832, quando o navio com as crianças partiu, as coisas não haviam melhorado muito. Os colonos lutavam contra uma terra árida e tinham de trabalhar de sol a sol. Havia ainda surtos de doença e moléstias desconhecidas. E lá, o navio aportou transportando 152 crianças com idade entre 7 e 15 anos.
Outro navio com uma carga infantil foi mandado para Cape Town, na África do Sul. Lá as crianças desembarcadas deveriam trabalhar nas fazendas e plantações de colonos holandeses - que previamente controlavam a colônia. Os holandeses (chamados de Bôeres) não morriam de amor pelos britânicos e o tratamento dispensado às crianças era condizente, elas eram literalmente tratadas como escravas. O termo "escravo de olhos claros" se popularizou na época, a medida que meninos e meninas eram mandados para a dura vida na agricultura. Muitas delas ainda corriam outros riscos, já que algumas das propriedades desses fazendeiros bôeres ficavam nos arredores de tribos hostis com os Xhosa. Em certa ocasião uma fazenda foi incendiada por guerreiros e dezenas de colonos brancos - crianças inclusive, foram massacradas a golpes de lança e porrete.
A despeito das condições encontradas, os idealizadores da Sociedade e seus patrocinadores estavam satisfeitos com os resultados. Londres afinal de contas estava livre da presença de crianças indesejadas, como bem dizia o ditado, "longe dos olhos"...
De fato, o "sucesso" desse empreendimento foi tamanho que mais duas embarcações seguiram do porto de Southhampton, no sul da Inglaterra para colônias no Canadá em 1833.
Os barcos de Brenton no entanto, não foram os primeiros a exportar crianças para trabalho. Essa era uma longa e vergonhosa tradição britânica. Jamestown foi fundada na Colônia de Virgínia em 1608. Em 1615, quando não havia voluntários suficientes para trabalhar na colônia estabelecida a solução foi enviar um navio com um misto de prisioneiros condenados e crianças. Em 1619 e 1622, mais crianças e presos foram enviados na árdua jornada para o Novo Mundo. Um quarto navio seguiria viagem em 1624, mas os planos foram cancelados depois que nativos americanos chacinaram 350 colonos.
Embora a prática ainda fosse ilegal no século XIX, ela continuou sendo reativamente comum, Relatos de navios clandestinos deixando os portos com porões abarrotados de crianças continuavam a circular pelos portos ingleses. "Apenas Ratos no porão" lia-se em uma charge na qual se via um inspetor sendo ludibriado por um capitão que deixava a Europa rumo às colônias. Crianças na Escócia e Irlanda também eram vítimas dessa prática ao longo de 1700. Os Estados Unidos receberam milhares de crianças nesse período, despejadas em uma terra estranha sem qualquer perspectiva.
Não apenas a Sociedade dos Amigos das Crianças se notabilizou pelo seu tráfico infantil. As Ragged Schools (Escolas Esfarrapadas) se tornaram famosas em toda Inglaterra, oferecendo educação e alimento para crianças necessitadas, desde que elas concordassem em entrar em um navio e partir para outra terra quando fosse preciso. Muitas seguiram dessa maneira para a Austrália e Nova Zelândia. Os Navios de Órfãos navegavam de um canto para o outro do Império levando crianças para onde elas podiam ser usadas como mão de obra barata. A migração de crianças foi uma prática que se manteve mais ou menos ativa até meados dos anos 1940, transportando algo em torno de 100 mil crianças.
O Capitão Brenton morreu em desgraça. Seu projeto de se livrar das crianças através da deportação era reprovável mesmo para a época. Após denúncias de que um de seus barcos havia naufragado levando para o fundo do mar mais de 40 crianças trancafiadas em um porão, seu prestígio começou a declinar. Para piorar, o navio pertencia ao próprio Capitão que cobrava um valor exorbitante pelo transporte. As pessoas não queriam mais ter seu nome associado ao de um homem tão inescrupuloso e vil. Logo sua fonte começou a secar. Ele morreu reduzido à pobreza, mas mesmo assim, mais de 100 das suas crianças compareceram ao seu funeral.
Grupos como a Sociedade dos Amigos das Crianças ainda continuaram ativas, tentando promover um bem de maneira torpe. Um retrato duro de uma época ainda mais dura.
Materia muito interessante e realmente bastante curiosa, impressionante como os ditos, civilizados conseguem ser mais selvagens e brutos do que os mais nativos e naturais dos homens. Na realidade a aparente educação que se atribui a um homem nada mais é do que um fino verniz, perecível de humanidade que pode a qualquer momento ser escamoteado pela sordidez e pela usura.
ResponderExcluirO ser humano é capaz de horrores que ombreiam com a malignidade dos Great Old Ones
ResponderExcluirOs verdadeiros "ratos" ainda se escondem em porões . "Humanos" ... tristes histórias este ser vêm protagonizando .
ResponderExcluirCadê vez mais estarrecido com a humanidade!
ResponderExcluirE há pessoas que só sabem falar da colonização portuguesa, dizendo que os portugueses mandaram para o Brasil somente sua "escória", o que querem dizer os marginalizados. Até parece que a Inglaterra não despachou seus indesejáveis. Taí a prova de que ela fez isso e muito.
ResponderExcluirÓtimo post, apesar de ser uma história terrível e sombria
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