Eu confesso que não sabia exatamente (e continuo sem saber) o que pensar a respeito da história que se tornou conhecida como "A Aparição do Demônio do Catulé".
Nos últimos tempos, essa história estranha, que alegadamente teve como palco o interior de Minas Gerais na década de 1950, se tornou recorrente em vários grupos que publicam histórias incomuns e bizarras, sem, no entanto, se aprofundar em detalhes. Aparentemente, o incidente também se tornou alvo de dissertações, trabalhos sociais e antropológicos. Mas seria essa narrativa macabra verdadeira, ou não passaria de um exemplo de creepypasta? Teria um culto fanático neopentecostal realmente se formado nos recônditos das Gerais, e este teria promovido um banho de sangue com nuances dantescas? Se é verdade como nunca ouvimos falar desse acontecimento com mais destaque? Seria possível que tal fato tivesse ocorrido tão próximo de nós e encoberto pelas autoridades, fosse mantido em relativo segredo e obscuridade? Ou tudo não passa de mera invenção? De uma ficção, que embora amparada em bases reais não passa disso: Invenção ou Exagero.
Fui atrás dessa história, tentando separar o que constitui rumor do que se tem como fato, buscando distinguir os boatos exagerados dos registros documentais.
O resultado é esse artigo que apenas arranha a superfície da imensa tragédia.
Primeiro, cabe saber que os fatos são sim reais e por mais bizarros que possam parecer, de fato ocorreram. O contexto em que tudo transcorreu, ou ao menos, o que se sabe de concreto precisa ser entendido antes de qualquer conclusão. A maioria das informações decorre da investigação do sociólogo Carlos Castaldi que fez uma narrativa densa dos fatos, transformada em uma notável dissertação. Acompanhado de uma psicóloga e de uma antropóloga, ele conduziu um estudo in loco, que incluiu entrevistas com testemunhas presentes no incidente.
Quanto aos fatos, são esses que se seguem, compondo a narrativa mais aceita.
Na Semana Santa no ano de 1955, trabalhadores vivendo numa gleba
de terras da Fazenda São João da Mata – município mineiro de Malacacheta –, tomados por um frenesi religioso, transformaram-se
nos protagonistas de um drama fadado a permanecer, nos meios
acadêmicos, mais esquecido do que lembrado, conhecido como "A Aparição do Demônio
no Catulé". Indivíduos convertidos à Igreja Adventista da Promessa, se envolveram num enredo de desenlace trágico: sacrificaram quatro
de suas crianças, mataram alguns de seus animais domésticos e perderam dois de seus
homens adultos abatidos pelos soldados que se dirigiram à Grota do Catulé em diligência policial para prender os "fanáticos" – tudo isso em meio a acusações de possessão demoníaca e espancamentos de crianças e adultos para conjurar
o demônio e purificar a comunidade de sua presença nefasta.
Primeiro sobre o lugar e a gente que nele habitava: Malacacheta localiza-se ao norte de
Minas Gerais, uma região montanhosa e então bastante isolada do Alto
Jequitinhonha. Sua fundação remonta
a 1874, desde sempre, uma região agreste que pertencia aos índios malacaxis expulsos de suas terras por colonos e posseiros mediante luta ferrenha. Violência e brutalidade marcaram as disputas territoriais e segundo os relatos, aldeias inteiras foram erradicadas para promover o progresso na região. Em 1955, a população local era de aproximadamente 35 mil pessoas, em sua expressiva maioria
devotada às atividades agropecuárias. Nos
primeiros anos da década de 1950 algumas
fazendas do município de Malacacheta
receberam famílias camponesas que perambulavam à procura de terras em
que pudessem se estabelecer e trabalhar.
Conforme os registros da época, dez famílias maltrapilhas se fixaram na
fazenda São João da Mata, um latifúndio que aceitava trabalhadores agropecuários para trabalhar. Estes conseguiram permissão de ocupar uma clareira aberta na mata chamada Catulé. Nela construíram barracos e casebres modestos próximas dos campos que deveriam lavrar e trabalhar. Eram, segundo estimativas 44 pessoas entre adultos, crianças e idosos, gente humilde, agricultores simples e na sua maioria iletrados com uma forte identidade religiosa rústica.
Pouco tempo depois do estabelecimento, chegou ao local outro lavrador chamado Onofre, de 27 anos de idade, solteiro que retornara
da região paulista de Presidente Prudente. Onofre havia se alfabetizado e
se convertido a um Culto chamado Adventismo da Promessa. Ele havia chegado ao Catulé como uma espécie de missionário com o objetivo de apresentar sua crença àquela gente e traze-los para sua fé. Na comunidade conheceu Joaquim, de 26 anos de idade que se tornou um dos primeiros a ouvir suas palavras e aceitar os seus ensinamentos. Os dois logo se converteram nos Líderes Religiosos locais, pregando a vinda próxima de Cristo aos demais residentes e alguns grupamentos vizinhos. Onofre
era o único alfabetizado: cabia a ele, ler e explicar
passagens da Bíblia, o que fazia ao seu modo descrevendo parábolas e milagres de forma efusiva. Era persuasivo em seus discursos e aos olhos dos simplórios, um homem culto que havia visto mais do mundo que qualquer outro.
As pessoas do Catulé se deixaram convencer pelo ministério do Irmão Onofre, criando um núcleo de crentes que adotou uma intensa atividade religiosa: tinham várias reuniões semanais para
orações e um
culto realizado aos sábados. Logo o caráter religioso se tornou fundamental para os membros da congregação, dominando quase todas as suas atividades sociais. Tudo girava em torno da religião e da observância da doutrina estabelecida. Seguiam mandamentos típicos dos movimentos adventistas, incluindo não ingerir carne de porco, não
beber e não fumar, não participar de bailes
ou festas, não cantar músicas profanas. Os membros do tabernáculo deviam tratar-se com o máximo de
respeito; qualquer discussão era um pecado
que exigia um perdão mútuo e deveria prevalecer um espírito de solidariedade, também era
pecado conversar sobre frivolidades. As roupas eram padronizadas para não haver qualquer resquício de vaidade. A moral sexual era muito severa e muitas atividades, tratadas como luxúria, deviam ser evitadas. Seus padrões eram muito rígidos: praticamente todas
as distrações eram proibidas e as obrigações se acumulavam.
A Igreja Adventista da Promessa havia surgido em 1932 em Pernambuco, fundada por dissidentes ainda mais puritanos do Adventismo do Sétimo Dia. Em franca
expansão desde a década de 1930, a Igreja
transferiu-se para São Paulo, e já em 1955
fez notáveis progressos, especialmente
nas áreas rurais do país por onde se espalhava rapidamente entre os mais humildes. Pessoas como o Irmão Onofre eram importantes para a catequese, viajando para zonas rurais em que crenças mais convencionais esbarravam no isolamento quase que completo. Os novos membros da igreja eram devidamente batizados pela água purificadora e muitos deles começavam a falar línguas misteriosas durante o culto, o que simbolizava o compromisso firmado com o Espírito Santo. O pecado não era apenas evitado, era temido e todos se dedicavam a viver conforme a doutrina explicada pelo Irmão Onofre e aplicada pelo Irmão Joaquim.
Uma parte vital de sua Doutrina envolvia as Profecias a respeito da chegada do "Milênio", do "Fim dos Tempos" e do "Dia do Julgamento". Acreditavam que o Milênio marcaria o Retorno de Cristo; um período de atribulações, provações e profundas mudanças em que apenas os mais puros e fiéis sobreviveriam. Os eleitos, aptos a desfrutar desse "Mundo Novo" teriam direito a uma vida plena, fartura e benefícios; todos os demais seriam destruídos. A recompensa dos justos seria em outra existência, o que constituía sua única ambição, algo a ser alcançado à todo custo.
O agrupamento do Catulé aos poucos foi se convertendo em uma "Irmandade" na qual apenas os convertidos eram aceitos. Os que não abraçaram a crença terminaram sendo discriminados, gradualmente afastados do convívio e por fim, solenemente expulsos. Da mesma forma, os eleitos residentes no Catulé não se misturam mais com os vizinhos ímpios, preferindo se isolar por completo. Nenhum desses vizinhos sabia exatamente o que acontecia na Clareira do Catulé e presumiam que seus habitantes simplesmente haviam adotado um culto fechado e incompreensível para "os de fora".
Num primeiro momento a Irmandade prosperou entre os adeptos do novo credo; a prática da confissão pública, as formas de controle e censura de
todos os atos pelos "irmãos", tudo apontava na direção de um grupamento coeso e fechado que deveria fazer o possível em nome do coletivo. Contudo, a dinâmica social acabaria se fragmentando quando foi revelada a presença de Satanás no seio do grupo. O medo, a paranoia e as acusações mútuas então se multiplicaram dando vazão a agressões, mortes, comportamentos sexuais
insólitos, acusações e outras manifestações que conferiram ao Incidente do Catulé um caráter surreal.
Quando o medo tomou de assalto os membros da Irmandade, seguiu-se um profundo desespero no qual as pessoas não conseguiam mais dormir ou trabalhar. Ficavam reunidas, rezando ou cuidando da expulsão do demônio, sem que se
duvidasse da sua presença física.
O pavor chegou a tal ponto que crianças pararam de ser alimentadas pela mãe, pois temia-se que nelas estivessem encarnados demônios e espíritos espúrios.
Mas o que levou a essa situação limítrofe de violência rubra e insanidade completa? Qual evento deu início e colocou em movimento a sequência de horríveis acontecimentos que ensejaram na Tragédia do Catulé?
O que os investigadores souberam mais tarde é que em pleno domingo de Páscoa de 1955,
dois soldados rumaram em diligência
policial até a Grota do Catulé e lá encontraram
Joaquim e Onofre à frente de um número
não determinado de crentes – homens,
mulheres e crianças, todos nus e em um "delírio coletivo" – banhando-se em sagrada
purificação numa cacimba lamacenta para
livrarem-se dos pecados e ascenderem à
Cidade Celeste de Canaã.
Nos termos da reconstituição obteve-se uma cronologia do que se passou,
na ordem apresentada a seguir:
No final do culto de terça-feira, o Irmão Joaquim espancou uma mulher chamada Maria dos Anjos, que fazia parte do culto. Seu objetivo era "expulsar Satanás" que ele havia presenciado entrar no corpo da jovem e dominar sua vontade. Quem a denunciou inicialmente foi uma menina, Artuliana, que havia visto a mulher cochichar e ouvir com atenção os sussurros inaudíveis de uma entidade diabólica na porta de sua casa". Artuliana achou aquilo estranho e foi informar ao Irmão Joaquim e este tomou para si a tarefa de averiguar. Surrou a suspeita repetidas vezes, mas a deixou voltar para casa quando sentiu que o demônio que a dominava havia se dissipado.
Mais tarde, naquela mesma noite um pedaço de rapadura surgiu “misteriosamente” no terreiro da casa de um
dos crentes. A família que vivia naquela gleba havia dito que sentia fome e a aparição da rapadura foi apontada como indício da
presença de Satanás. O demônio havia enviado o alimento como forma de tentação. A família decidiu que a rapadura seria enterrada para que ninguém caísse em tentação de comê-la. Mas de madrugada, uma mulher chamada Eva, tentou desenterrar o alimento. Ao comer um pedaço dele, o demônio se manifestou em seu corpo e foi visto pelos seus próprios familiares que aterrorizados a dominaram e amarraram. O Irmão Joaquim foi imediatamente chamado e Eva também
apanhou para se ver livre da possessão.
Na manhã seguinte, o Irmão Joaquim mandou reunir a Irmandade do Catulé para anunciar o que estava acontecendo:
Joaquim declarou que Satanás estava habitando entre eles e que sua presença podia ser presumida no comportamento de algumas pessoas da congregação. O diabo precisava ser combatido e removido do corpo daqueles que ele escolhia possuir. Os membros do culto ficaram chocados com a revelação e alguns se perguntaram se não seria um exagero. Joaquim então gritou para que os demais o acompanhassem até a casa da menina Maria dos
Anjos que dormia em sua cama. Entraram de supetão, arrancando a menina da cama aos gritos com tapas e pontapés. Na confusão um pintinho saiu debaixo da
cama e Joaquim disse que era o demônio
saído do corpo de Maria dos Anjos tentando escapar. Esmagaram o animal e em seguida, arrastaram a menina para fora, obrigando-a a ajoelhar-se no meio deles para receber uma benção coletiva. Tal coisa deveria evitar uma nova possessão demoníaca.
Na quarta-feira, ocorreu novo incidente após o encerramento do culto: Joaquim agarrou e sacudiu o irmão Manoel, sem
que qualquer membro da irmandade – nem
mesmo Onofre – interferisse ou censurasse seu comportamento. Joaquim afirmou depois ter visto o demônio se fazer visível por um instante e que por pouco ele não entrou no corpo de Manuel.
Na quinta-feira, uma menina de treze anos chamada Conceição afirmou que
Satanás se encontrava na casa de Adão. Ao chegar lá, o homem jurou não estar possesso, mas encontraram um gato e assumiram que o demônio habitava o corpo do animal. Joaquim correu atrás do gato que,
em fuga, derrubou uma lata de querosene.
O barulho fez com que a menina Nelcina
acordasse. Joaquim, "segundo contam, vendo a menina
esticar-se, disse que Satanás entrara nela". Quando saíram de casa traziam Nelcina amarrada, pois ela estava com Satanás. Pelejaram
muito para tirar o demônio de seu corpo. Joaquim batia-lhe e gritava: "Sai, Satanás! Sai, Satanás!".
Mas Satanás não queria sair.
Artuliana relatou mais tarde a obstinação do demônio, disse que ouviu a menina, que era gaga, falando com a voz firme, afirmando que Satanás queria morar com eles no Catulé. Nelcina, de 12 ou 13 anos de idade, suportou até onde pode. As surras se intensificaram e ela acabou desmaiando sendo deixada num canto, amarrada com corda de embira. Quem fazia menção de ajudá-la era repreendido e olhado com desconfiança, pois o diabo podia passar dela para qualquer um tentando se aproximar. No fim, ela acabou morrendo em face dos muitos ferimentos sofridos.
Mas aquilo não daria fim a barbárie, seria, de fato, apenas o início de uma série de incidentes sobrenaturais aos olhos da congregação.
O edema no rosto de Maria
dos Anjos e um "caroço" saliente em seu
pescoço foram apontados como indícios
da presença do demônio. À noite, três cachorros e dois gatos que se aproximaram do
corpo de Nelcina, que permanecia isolado, foram mortos com porretadas. A carcaça deles queimada em uma fogueira acesa no centro da comunidade, pois temiam que o demônio os usasse para entrar e sair. Decidiram no final das contas queimar o cadáver de Nelcina também, suas roupas e objetos uma vez que tudo segundo os Irmãos "fedia a Satanás". Para não encostar nela e arriscar o contágio puxaram o cadáver até a fogueira usando cordas.
Na sexta feira de manhã, o Irmão Adão, querendo dormir, sacudiu a esteira e
viu um galo "que o cumprimentou como gente e, certo
da presença do demônio no animal, correu
para junto dos outros para avisar”. O galinheiro foi destruído, as aves degoladas e tudo acabou sendo incendiado. O fogo representava a purificação definitiva e ele era o meio, aos olhos dos fiéis, de salvar a comunidade. Espancaram depois a menina Ataíde
– que, segundo Artuliana, "estava toda
cinzenta" e Francisca que "parecia rir daquela desgraceira toda".
No sábado, o Irmão José foi agarrado em sua casa e começaram a espancá-lo; obrigaram sua mulher a
deitar-se no chão, e apontavam para a veia
jugular que palpitava, dizendo: ‘Olha o Satanás tomando força’. Bateram também nos seus dois filhos, mas desistiram quando eles
‘vomitaram Satanás’. Agora que estavam
purificados, podiam ficar com o grupo; José,
ao contrário, dificilmente poderia ser salvo,
porque tinha um demônio no estômago inchado e deformado. Joaquim ordenou-lhe que fosse até
a chapada; se não vomitasse os demônios de seu corpo, morreria lá mesmo. Contrariado, o homem deixou o vilarejo à caminho da Chapada na escuridão.
Em meio ao temor geral, o Irmão Onofre afirmou que apenas a oração salvaria o povoado da presença de Satanás que estava deixando suas pegadas em forma de casco pelo lugar. Onofre mandou reunir todos numa das casas e aqueles que não obedeceram foram vistos com suspeita. Durante a oração, Conceição começou a profetizar sobre o "Fim do Mundo" dizendo que a presença do Satanás no Catulé era a forma dele testar os fiéis já que o dia do julgamento havia chegado. Ficaram o restante do dia em oração numa das casas, sem parar sequer para comer ou fazer suas necessidades. Conceição e Artuliana eram as únicas que rompiam a reza e por vezes gritavam apontando aqueles que estavam "com o diabo no corpo" – crianças, adultos, animais e até mesmo
alguns objetos. O Irmão Joaquim e outros homens adultos, iam até a pessoa apontada e a espancavam tentando assim "afastar o Satanás". Tristemente foi o que aconteceu com três crianças da comunidade, apontadas pelas profetizas como possessas. Menores e mais frágeis, elas não suportaram as violentas surras e acabaram morrendo nas mãos de vizinhos, padrinhos e até mesmo de seus próprios pais.
As meninas haviam assumido uma posição
de destaque e liderança no grupo, papel
tradicionalmente reservado aos homens adultos. As duas, segundo os Irmãos, eram virgens e puras, capazes, portanto, de ver o diabo e apontar onde ele se manifestava. De acordo
com a doutrina do Adventismo da Promessa,
tais poderes só poderiam ser alcançados
mediante um vínculo muito forte com o
Espírito Santo, atributo dos "elevados", não conspurcados pelas imundices rasteiras do mundo.
Dentre as revelações das meninas, interpretadas por Onofre, havia uma notável, que fez os fiéis se lançarem de joelhos e implorar pela graça dos céus: "Jesus viria para levá-los à ‘Cidade
Celeste de Canaã’ onde viveriam pela eternidade, mas só alguns seriam aceitos".
A revelação deixou todos num estado de excitação e ansiedade que perdurou a noite toda. Os moradores do Catulé se preparavam para a ascensão tomando importantes providências, entre as quais pagar dívidas, reconhecer transgressões e vestir suas melhores roupas.
Na manhã de domingo, após uma noite de orações frenéticas, o povo de Catule se dispôs numa fila organizada por Joaquim. Este aliás, havia se tornado para os Irmãos praticamente um santo, pela sua devoção em tentar levar todos ao Paraíso, zelar pela comunidade e principalmente expulsar o Demônio que tanto os afligia. Ninguém duvidava dele, ninguém questionava sua devoção e fé, nem mesmo quando ele trucidou crianças inocentes com paus, pedra e mãos. Não por acaso, os Irmãos passaram naquela noite a chamá-lo de Jesus do Catulé.
Joaquim se dirigiu aos presentes proclamando que para ascender, era preciso saltar e que os eleitos estariam livres do pecado e portanto, leves para serem elevados rumo ao céu. Os fiéis se colocaram a saltar, mas para surpresa do grupo, nenhum dos presentes ascendeu rumo à prometida Cidade Celeste, não importando o quanto pulassem. Uma vez que ninguém foi arrebatado, o proclamado Jesus do Catulé culpou os que ainda mantinham um vínculo com o mundo material. O frenesi chegou ao auge quando mandaram que todos removessem suas roupas (ninguém precisava ter vergonha pois no Paraíso, as pessoas andavam nuas) e se banhassem. Várias cacimbas de água foram trazidas para o banho comunal e os irmãos se esfregavam com sabão para se ver livres dos últimos resquícios de pecado. Ao mesmo tempo gritavam, choravam, bradavam para Deus ter misericórdia de suas almas.
Foi em meio a essa balbúrdia, descrita como uma gritaria enlouquecida, ouvida muito antes de chegarem ao povoado, que adentraram os dois soldados incumbidos de cumprir diligência. Haviam sido alertados por José que contou o que se passava no Catulé. Os homens chocados com a gritaria tinham armas, revólver e espingarda, em punho. Imediatamente, ao se deparar com a cena deram "voz de prisão à todos". Os fiéis procuraram esconder-se na mata, com exceção dos Irmãos Onofre e Joaquim que, nus, caminharam na direção dos guardas afirmando "ser de paz". Porém os guardas, talvez pela suspeita, talvez pelo terror diante do inusitado, não quiseram conversa e dispararam quase à queima roupa nos dois. Onofre caiu morto imediatamente, Joaquim e outro Irmão chamado Geraldo, foram alvejados. Uma das mulheres correu para auxiliar os feridos e foi golpeada pela coronha da espingarda e desmaiou. Os outros foram obrigados a se vestir e sob a mira das armas colocados em círculo. Um dos fiéis implorou para que não o colocassem ao lado de uma das crianças, pois desconfiava que ela estava possessa, e quando os guardas ordenaram que ele se calasse, o sujeito tentou empurrar a criança na fogueira. Os guardas intercederam e só então perceberam que no fogo haviam ossos calcinados e carcaças de vários cães e gatos.
Joaquim agonizou por algumas horas em uma poça de sangue. O Jesus do Catulé, disse que queria morrer com a palavra de Deus. Alguém arrancou duas páginas da Bíblia e colocou na boca de Joaquim e de Onofre, já morto. Joaquim engoliu o papel e morreu. Os que o rodeavam disseram sombriamente "não está morto, está dormindo".
Na manhã seguinte, os dois soldados retornaram ao povoado mais próximo trazendo prisioneiros e os corpos dos dois Irmãos abatidos, carregados em padiolas improvisadas. Tinham uma sombria história a relatar e esse relato daria início à Lenda.
Os acontecimentos no Catulé, foram divulgados pela imprensa sensacionalista da época de tal forma que o ocorrido causou comoção no país inteiro. Os jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, estampavam manchetes com letras garrafais onde se lia à respeito da "Barbárie Inenarrável", de "Massacre Crianças", do "Fanatismo Religioso" e sobre a "Loucura Incompreensível". A cobertura foi tendenciosa e apontou o culto como um bando de maníacos que não deram aos soldados nenhuma outra alternativa senão atirar. Os pesquisadores disseram que não foi bem assim... Na ausência de provas, os soldados foram absolvidos de qualquer acusação.
Igualmente por falta de provas, foram postos em liberdade três dos protagonistas do caso, incluindo as duas meninas "profetisas", culpadas por apontar os alegados possessos. Um dos participantes, conhecido como João Caolho, ficou detido sem julgamento por quase 9 anos. Tido como mentalmente insano, foi transferido para um manicômio judiciário como medida de segurança. Saiu do manicômio apenas na década de 1970. Quanto aos demais, ninguém sabe que fim levou. A Irmandade do Catulé, que já se mostrava instável, dissolveu-se por completo e o mais provável é que tenham voltado a perambular pelo interior em busca de trabalho ocasional.
A história continuou figurando no imaginário popular como uma cicatriz que eventualmente coçava. Foi estudada por antropólogos e sociólogos que trataram de se debruçar sobre o incidente de um ponto de vista acadêmico. A história ganhou uma adaptação teatral chamada "Vereda da Salvação", roteirizada por Jorge de Andrade, encenada em 1963. Pouco depois, em 1965, a história foi filmada sob direção do cineasta brasileiro Anselmo Duarte que deu tons dramáticos ao ocorrido. A imagem no topo desse artigo corresponde a um frame desse filme.
Contudo, as obras e tudo que se relacionava com a história seria sucessivamente passível de censura durante o período da Ditadura instituída em 1964. O incidente, que evidenciava o caráter ignorante, supersticioso e atrasado das populações rurais mais empobrecidas do Brasil não era o tipo de coisa que o regime desejava divulgar. Aos poucos, os detalhes à respeito do incidente do "Demônio do Catulé" e sua tragédia foram sendo esquecidos pela maioria das pessoas. O material antropológico e sociológico escrito sobre o caso se perdeu ou foram mantidos cuidadosamente escondidos por décadas, até serem redescobertos por estudiosos interessados em compreender o caso.
Mas será que alguém um dia será capaz de entender o que realmente aconteceu naquela gleba miserável nos rincões de Minas gerais, naqueles dias assustadores de 1955? A única certeza que se tem, analisando a história é que fatores como miséria, ignorância e fanatismo ao se misturar, geram um horror difícil de encarar e quase impossível de relativizar. Confesso que à princípio eu imaginava que essa história fosse uma invenção, saber que de fato aconteceu, gera um sentimento incômodo. Escrever a respeito dele, fazendo um resumo dos horríveis acontecimentos apenas torna a coisa ainda mais indigesta.
Tecer conjecturas a respeito desse caso é algo que francamente eu não estou propenso a fazer, quanto mais por estar ciente de que não tenho as credenciais de um acadêmico para tanto. De fato, esse artigo, é o mais perto que quero chegar da tragédia do Demônio do Catulé.
* * *
Nota: Para escrever esse artigo pesquisei várias fontes na Internet, em especial a obra de Renato da Silva Queiróz, "O Demônio e o Messias - Notas sobre o surto socio-religioso do Catulé", que traz uma rica descrição dos fatos.
Eu admiro sua dedicação a trazer um conteúdo tão intrincado e bem escrito, no mesmo patamar de quão mórbido e macabro o conteúdo é por si só
ResponderExcluirEsse frenesi fanático continua acontecendo nos templos pentecostais até hoje, no brasil, não chega nas proporções Catulé.Graças a miséria, ignorância e fanatismo os "Onofres" vão "surgindo" e ficando milionários e ainda ajudam a eleger canalhas.
ResponderExcluirExatamente... É desolador.
ExcluirAliás, o relato de Catulé poderia tranquilamente, adaptados os termos, ser considerado como uma estória do Mythos.
História igual aos acontecimentos do vilarejo puritano de Salem no século 18.
ResponderExcluirMeninas "virgens e puras" apontando aqueles que estavam supostamente em conluio com o "diabo".
O medo generalizado fazendo pessoas cometerem atos horríveis.
A tortura de inocentes para que "confessassem", muitas vezes até a morte.
Seitas são isso, terrivelmente perigosas, mais ainda com pessoas ignorantes e fáceis de enganar.
Alguém lembra do Jim Jones e do Charles Manson?
Aqui mesmo neste site tem outros exemplos: Meninos de Deus, Crianças da Família e a horrenda seita Crianças do Formigueiro.
ResponderExcluirTodas com um líder carismático, passando-se por um "homem santo", porém diabólico.
ResponderExcluirNa verdade um louco psicopata.
Isso é visto até hoje, com essas seitas que seguem a Teologia da Pro$peridade.
ResponderExcluirValdevino Sandiabo, Erra Erra Soare$ e o bi$po Pedir Mamoncedo da IURD - Inganação Uninfernal dos Rios de Dinheiro.
Pessoas doando tudo o que tem na carteira, na conta, doando o carro, a casa.
Dizem que as pessoas ofertantes não são obrigadas a nada, mas são sim.
Eles ameaçam com maldição quem não for "fiel nos dízimos e nas ofertas".
Que serão amaldiçoadas por "Deus", citando uns versículos do livro de Malaquias.
Que "Deus" permitirá que o "demonio devorador" ataque a pessoa.
Que quem não der está roubando de "Deus", é um ladrão.
Ladrão é quem exige o que não lhe pertence.
Dízimo é mandamento judaico, só aparece no Antigo Testamento.
Paulo só fala em dízimo na Carta aos Hebreus, pois os habitantes dos outros destinatários (Corinto, Éfeso, Tessalônica, Roma, etc) não eram judeus, mas pagãos convertidos.
Nunca deram dízimo nenhum!!!
Não se vê no Novo testamento um cristão dizimando, pois essa obrigação extinguiu-se com o sacrifício da Cruz.
Não temos de pagar nada para sermos salvos, visto que Cristo já pagou por nós.
Com o sacrificio dele, a antiga Lei findou-se.
Quem exige dízimo hoje está tentando recosturar o véu do templo e voltar à antiga lei de Moisés.
Você leitor é judeu?
Não?
Então você está livre de tudo isso.
Seja um cristão de verdade e não dê nada a esses empresários da fé, donos de emprejas (empresa + igreja), que pouco ou nada se importam com a sua situação espiritual ou a sua salvação.
Amém.
Uma pequena Jonestown, 23 anos antes do terrível assassinato-suicídio coletivo da Guiana.
ResponderExcluirOutro louco se passando por "homem santo".
ExcluirTodos esses líderes de seitas.
Só eles serão salvos, os outros estão todos errados.
Convencem pessoas a se afastarem de qualquer um "de fora".
Falando das pessoas pulando para chegar ao paraíso, teve um que reuniu seu rebanho (nos dois sentidos) no lugar em que se daria o "arrebatamento", o topo de uma ravina de uns 100m de altura.
Se a pessoa tivesse fé, ao pular anjos as pegariam pelas mãos e os levariam ao céu.
A lábia do cara era boa, 12 pessoas pularam.
É óbvio que ninguém foi arrebatado.
Só se for pela gravidade, que arrebatou todos para o chão lá embaixo.
muito foda mano parabéns pelo texto
ResponderExcluirComo Sempre, artigo polido e muito bem escrito. Esse blog não desaponta na qualidade. É um oasis e uma declaração de amor ao tema, mediante uma era de creepypastas porcarias e "chans".
ResponderExcluirRapaz... eu sou morador de Minas e nunca nem ouvi falar dessa história até agora, muito bom esse artigo. Continua o bom trabalho!
ResponderExcluir