domingo, 10 de janeiro de 2016

Engolidos pelo Deserto - A última marcha do Exército Persa Perdido


Cambiases II foi Imperador da Pérsia (reinando entre 530-522), ele sucedeu ninguém menos do que Ciro, o Grande. Ansioso por superar as realizações e conquistas de seu pai, e aumentar os domínios persas além das fronteiras de seus vizinhos, Cambiases ordenou a invasão do Egito em 525 a.C. Suas forças, consideradas as mais temidas da época, derrotaram o último verdadeiro Faraó do Egito, Psammetichus III.

Entretanto, Cambiases não é lembrado pelas suas conquista militares, mas por um misterioso incidente que se tornou conhecido como o Exército Perdido - uma força de 50 mil homens, enviados para conquistar um pequeno reino desértico, e que desapareceram da face da terra sem que um único sobrevivente tenha sido encontrado ou o menor traço de seu destino descoberto, por mais de dois mil anos. A principal fonte de informações a respeito da história de Cambiases e seu exército perdido foi o grego Heródoto, um intrépido viajante que esteve no Egito apenas 75 anos depois da invasão persa. 

Heródoto seguiu os passos de Cambiases e relacionou as estórias locais e narrativas a respeito da passagem dos invasores pelas terras dos Faraós. Infelizmente sua parcialidade torna alguns de seus registros questionáveis, já que ele sustentava uma antiga antipatia para com os persas. Seus relatos apontavam Cambiases como um cruel déspota e um comandante com sede de poder que não raramente enviava seus homens em missões suicidas. 

Um dos primeiros relatos colhidos pelo grego revela que as tropas persas conseguiram atravessar o complicado terreno do Deserto de Sinai e enfrentar os egípcios com o exército praticamente intacto, fato que prova serem os persas capazes de lidar com grandes travessias pelo deserto. Heródoto conta que os generais de Cambiases ordenaram a contratação de guias entre as tribos árabes para localizar oasis e poços de água para facilitar a jornada pelo deserto. Com efeito, eles chegaram em boas condições para enfrentar e derrotar Psammetichus.


Em seguida, Cambiases ordenou que parte de seu exército viajasse para os centros de culto dos Egípcios. Com isso, ele esperava capturar os líderes religiosos e exigir que eles o coroassem como o novo Faraó. Heródoto, no entanto, afirma que o Monarca Persa dispunha de detalhes apenas superficiais a respeito dos costumes e tradições do Egito. Os sacerdotes preferiram a morte a nomear o conquistador seu novo Faraó, e Cambiases satisfez o desejo deles, matando indiscriminadamente qualquer um que não dobrasse os joelhos na sua presença. Em seguida ele pilhou templos, levou todo o ouro que podia e incendiou os altares, mandando destruir estátuas e tábuas de leis. Por seus atos, dizem Cambiases foi amaldiçoado por todos os sacerdotes que imploraram aos deuses que punissem aquele profanador. 

Frustrado por não ter seus desejos atendidos, Cambiases ordenou uma nova e sangrenta expedição militar contra seus vizinhos. Parte de seus homens rumaram para o sul onde atacaram os reinos etíopes, cartagineses e finalmente os amonitas - habitantes do Oásis de Siwa, um pequeno enclave de terras pastoris no Deserto Ocidental. Siwa era famoso por guardar o Oráculo do Templo de Amon (o nome usado pelo povo local para o deus egípcio Amun-Ra, que os gregos relacionavam com Zeus). Os sátrapas do templo respeitavam os governantes egípcios, de tempos em tempos estes viajavam até o oráculo para receber aconselhamento e prestar homenagens. Alexandre o Grande viajou até Siwa 200 anos antes para conhecer o templo e na ocasião cobriu os sacerdotes com presentes e agrados que garantiu a fidelidade dos amonitas. 

Cambiases contudo não estava interessado em seguir esse protocolo e desdenhou dos poderes dos sacerdotes locais. Em 524 a.C as tropas que regressavam da sangrenta campanha na Etiópia se juntaram a outros homens em Tebas e de lá marcharam rumo a Siwa com ordens de capturar o templo.


Heródoto, no Livro III de sua História, conta que o exército era composto por 50,000 homens, na sua maioria guerreiros veteranos de batalhas extremamente violentas contra os etíopes. Eram soldados que portavam lanças de bronze e escudos, acostumados a marchar pelas estradas empoeiradas e ir até o fim do mundo para cumprir as ordens de seu Rei. A ordem era clara: submeter os amonitas, escravizar os que resistissem e queimar o oráculo de Zeus até o solo como punição para qualquer rebeldia. 

Liderada por guias experientes que serviam nas caravanas, a vasta armada penetrou no deserto, atingindo a "cidade oásis" de Blest (hoje conhecida como Kharga) apenas sete dias depois. Segundo as fontes entrevistadas por Heródoto, a tropa estava descansada e contava com suprimentos e água suficiente para prosseguir na viagem. Mas quando partiram rumo a Siwa, o exército simplesmente desapareceu, como se tivesse sido engolido pelo deserto.

Os amonitas contam a seguinte versão do ocorrido:

"... enquanto os persas cruzavam o deserto rumo ao Oásis de Siwa, e quando estavam na metade do caminho, uma terrível tempestade se ergueu repentinamente e soterrou de baixo de enormes nuvens de areia todo o exército invasor. Assim, eles desapareceram da face da terra, homens e animais, que ousaram desafiar a autoridade dos reis e que despertaram a ira dos deuses".

Heródoto conseguiu descobrir muito pouco a respeito do desaparecimento do exército de Cambiases, e a ausência de informações factuais fez com que historiadores chegassem a duvidar que o episódio tivesse sequer ocorrido. Talvez o grego tivesse inventado boa parte da história para fazer os persas parecerem tolos. Por que um Imperador que havia dominado boa parte do Egito enviaria uma tropa tão grande para tomar um reino periférico como Siwa? Por que ele enviaria uma tropa tão grande para conquistar os amonitas (que não deveriam ter mais do que cinco mil guerreiros)? Mais importante ainda, por que ele enviaria seus homens através de um deserto perigoso ao invés de seguir pela costa, um trajeto que reduziria as intempéries? Heródoto sugere algumas respostas para essas questões.


Um possível motivo para a colossal expedição é que Cambiases estava furioso pela atitude dos sacerdotes do Templo de Amon, que haviam lhe amaldiçoado pela implacável destruição dos centros religiosos egípcios. O historiador grego conta que os sacerdotes proferiram palavras duras e pediam aos deuses que destruíssem Cambiases e seu exército. Os religiosos haviam inclusive previsto que o Imperador morreria violentamente e que seu governo ilegítimo seria curto. Heródoto relata que Cambiases temia as maldições amonitas e que não se conformava que eles resistissem aos seus comandos. Furioso, teria ordenado que um sumo-sacerdote fosse eviscerado na sua presença, enquanto ele ceava com seus convidados. Em uma outra narrativa, teria ordenado que rebeldes fossem cozinhados vivos em grandes tachos de bronze e seus restos mandados aos porcos. Heródoto não poupava o Imperador de comentários maldosos que afirmavam ser ele um bêbado irascível, dado a ataques de fúria e crueldade. Ele também era descuidado e exigia que seus homens cumprissem suas ordens à risca, o que desagradava aos seus comandantes.

Uma explicação alternativa é que Siwa não seria o alvo prioritário desse exército, ela seria apenas um ponto de descanso na longa jornada. Talvez o alvo do exército de Cambiases estivesse mais a oeste. O Reino de Cartago era um inimigo declarado dos persas e um alvo mais adequado a uma força de ataque composta de 50 mil guerreiros. Alguns historiadores supõem que a tomada de Siwa seria o primeiro passo para depois lançar um ataque mais contundente contra Cartago. 

De qualquer maneira, se Heródoto estiver certo em suas suposições, o exército persa sofreu um triste fim. 

A região que o exército estava atravessando é conhecida por ser inóspita e de difícil acesso. Com imensas formações rochosas e despenhadeiros que precisam ser contornados, planícies de sal e poeira, vastos mares de areia e dunas que teimam em mudar de posição. Além disso a temperatura média durante o dia é de 40 graus célsius, despencando para 5 graus negativos à noite. Tempestades de areia são um fenômeno corriqueiro nesse ambiente e a velocidade dos ventos conseguem lançar toneladas de areia de um lado para o outro. Pior do que tudo isso, é a ausência de água.


É claro, os guias nômades tinham conhecimento de poços naturais de água e oásis, mas uma força composta de 50 mil homens e animais, precisaria de muito mais do que pequenos poços. Um contingente desse tamanho marchando pelo deserto rapidamente consumiria seus suprimentos tornando a situação desesperadora. Como os amonitas souberam da destruição do exército perdido também é um mistério, já que segundo as lendas nenhum homem conseguiu deixar deserto com vida. O mais provável é que eles tenham interpretado que os homens morreram em virtude de uma tempestade de areia um fenômeno geralmente considerado desastroso para caravanas.

As fontes de Heródoto forneceram algumas pistas sobre a localização do exército perdido, descrevendo que a tropa esteve no Oasis de Blest. Seguindo por essa rota eles deveriam ter tentado cruzar o deserto usando uma tradicional rota de caravana que segue para Siwa. Esta passa pelo oásis de Dakhla e Farafa, tradicionais pontos de descanso para caravanas. Pelos comentários de Heródoto, os persas parecem ter atingido Dakhla ou mesmo Farfara, mas desse ponto em diante desistiram de prosseguir em sua jornada. Mesmo reduzindo as possíveis rotas dos persas, o território de deserto ainda é incrivelmente vasto para ser examinado. Se os persas por alguma razão se perderam em Dakhla e seguiram para uma direção oposta eles podem ter ido parar em um lugar muito distante, bem longe do Deserto Ocidental

O Deserto Ocidental é um dos lugares mais difíceis do mundo para empreender uma escavação em busca de relíquias. Ele é um território vasto, cobrindo dois terços do atual Egito, uma área inóspita de 680,000 quilômetros quadrados, dimensões aproximadas a Áustria, Bélgica, Dinamarca, Grécia, Holanda, Suíça e Noruega juntas. Mesmo veículos modernos com tração nas quatro rodas e equipamento especial encontram dificuldades nesse terreno desolado repleto de dunas e mares de areia. Uma boa parte da região ainda está coberta de minas terrestres deixadas na Segunda Guerra Mundial e na Guerra dos Seis Dias. A proximidade da fronteira com a Líbia também é uma preocupação, pois essa área era até pouco tempo utilizada como base e campos de treinamento de grupos terroristas. E sempre há a possibilidade real de se deparar com uma tempestade de areia monumental, um perigo tão grande nos dias atuais quanto a dois mil anos. Equipes inteiras de prospecção e caravanas desapareceram nesse trecho do deserto e jamais foram encontradas.


Nas últimas décadas houve vários relatos a respeito de fantásticas descobertas no Deserto Ocidental, algumas delas pareciam boas demais para ser verdade. Em janeiro de 1933, Orde Wingate, um famoso arqueólogo e prospector britânico, empreendeu uma busca pelo exército de Cambiases. Em sua busca, ele vasculhou quilômetros de um a área próxima a fronteira a Líbia acreditando em um antigo documento egípcio que mencionava a existência de um imenso cemitério naquela região. Wingate passou seis meses na área, perdeu mais de dez homens e foi forçado a partir depois de não encontrar nada.

Em meados de 1936, outro aventureiro, dessa vez o notório Conde húngaro Laszlo de Almasy (que inspirou o personagem central no filme O Paciente Inglês) esteve na região supostamente em busca do Exército Persa para o Instituto Geográfico Britânico. Há indícios entretanto que o objetivo de Almasy era mapear essa região do deserto para o Império Britânico que já antecipava a possibilidade de uma nova Guerra Mundial e a disputa por regiões ricas em petróleo. Almasy explorou uma área considerável, mapeando e realizando exames topográficos, e seus mapas completos foram utilizados durante a guerra. Supõe-se que ele tenha virado de lado no curso da guerra, concedendo aos nazistas as mesmas informações que entregou originalmente aos britânicos. No que diz respeito ao Exército Perdido, Laszlo abandonou as explorações sem resultados.

Em fevereiro de 1977, o repórter da Associeted Press Marcus K. Smith escreveu uma fantástica matéria jornalística em que afirmava ter descoberto o "Exército Perdido": 

CAIRO -  Os restos de um exército persa que desapareceu após uma tempestade de areia 2500 anos atrás foram encontrados no deserto ocidental egípcio. Um grupo de arqueólogos egípcios descobriu centenas de ossos, espadas e lanças semelhantes às usadas pelos persas na época correta. Os restos foram encontrados por acidente durante uma escavação aos pés da Montanha de Abu Balas. O território tem uma extensão duas vezes maior do que a Suíça, e é popularmente conhecida como "Mar de Areia". Os arqueólogos que retornaram da área dizem que se trata da maior descoberta da década. O local não é distante do Oásis de Siwa, destino final das tropas persas.   


Infelizmente a história se provou falsa. O exército não passava de um cemitério usado pelas tribos nômades até meados do século XV.

De Setembro 1983 até fevereiro de 1984, Gary S. Chafetz, um jornalista americano e escritor de livros sobre arqueologia, liderou uma expedição patrocinada pela Universidade de Harvard, pela National Geographic e pelo Governo do Egito em busca dos restos do Exército de Cambiases. A busca de seis meses foi conduzida na fronteira entre Egito e Líbia, em uma área remota com mais de 100 mil quilômetros quadrados de dunas a quase 90 milhas do Oasis de Siwa. A expedição contou com especialistas no mito do Exército Perdido e inúmeros escavadores, fotógrafos da National Geographic, documentaristas de Harvard, camelos, aviões de reconhecimento e até um radar de penetração no solo.

A grande expedição encontrou mais de 500 tumili (sepulturas em estilo zoroastro) mas nenhum artefato que pudesse indicar que algum deles fosse parte do Exército Persa. Foram recolhidos dezenas de fragmentos para análise, mas a maioria destes eram pelo menos 1000 anos mais antigos do que os dos soldados. Algumas peças de bronze com símbolos adornados com o que parecia ser uma esfinge alada foram encontrados nas imediações do Oásis de Sitra e criaram expectativa pois podiam ser de origem persa. Os resultados das análises, contudo, provaram que eles eram bem mais recentes. A expedição terminou de maneira polêmica, pois quando deixavam o Egito, os líderes foram presos por autoridades, acusados de contrabandear artefatos arqueológicos. Após um longo interrogatório, as acusações foram retiradas e a equipe liberada, não sem antes acertar doações substanciais ao governo local.

De acordo com o Professor Mosalam Shaltout, diretor do Instituto Minufya de Estudos do Deserto, uma equipe de geólogos italianos em 1996, que buscavam meteoritos, esbarraram em uma série de artefatos nos arredores do oásis de El Bahrein. Foram encontrados uma lâmina de adaga, fragmentos de cerâmica, alguns fragmentos de ossos humanos e de animais, cabeças de flecha e um bracelete de prata. Dois montes funerários também foram devidamente fotografados e posteriormente identificados como pertencentes ao Período Aqueminita da antiga Pérsia. Apesar da excitação, não se provou que qualquer dos itens estivesse ligado ao Exército de Cambiases. 


Desde 2000 houve pelo menos uma dúzia de informes a respeito da descoberta de artefatos ligados aos persas e a possível localização de seus restos mortais. Em mais de uma ocasião anúncios formais foram feitos por grandes institutos de pesquisa, mas todos tiveram de ser desmentidos.

A despeito de ser um grande mistério, o destino do Exército de Cambiases persiste como um enigma complexo de difícil solução. Um número tão grande de soldados deveria deixar algum rastro que pudesse ser encontrado, passados tantos séculos: um esqueleto, uma arma, um escudo ou ponta de flecha que seja, que pudesse ser ligada a eles. Cinquenta mil corpos não desaparecem sem deixar vestígios, mesmo num dos desertos mais inclementes do mundo. mesmo com uma suposta maldição pesando sobre seus ombros. 

O consenso entre os especialistas é que os persas aguardam em algum lugar. Sua descoberta seria saudada como uma das maiores de todos os tempos, uma vez que protegidos pela areia e clima árido, suas posses deveriam estar incrivelmente bem preservadas. Um tesouro arqueológico inestimável enterrado no Sahara aguardando por quem tiver a sorte de encontrá-lo.

4 comentários:

  1. Quatro "is" com louvor. Irretocável, Incrível, Intrigante e Instigante!

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  2. Me fez voltar aos tempos de moleque, que era louco por estes mistérios históricos. Hora de retomar algumas leituras. Bela matéria.

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  3. O Templo de Amon hoje:

    http://www.touregypt.net/featurestories/templeoforacle.htm

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