quinta-feira, 28 de março de 2024

"Ai de ti" - As três cidades amaldiçoadas nos Tempos de Jesus


Uma das figuras religiosas mais conhecidas e amadas da história é, sem dúvida nenhuma, o próprio Jesus Cristo. Normalmente retratado como um farol de compreensão, iluminação, altruísmo e benevolência, ele se tornou a pedra angular de uma das maiores religiões organizadas que o mundo já conheceu. No entanto, existem alguns componentes sombrios na história de Jesus, e aparentemente, além de operar milagres e dar sermões, ele não estava livre de perder o controle e amaldiçoar as pessoas de tempos em tempos. Nos evangelhos algumas cidades se tornaram alvo de seu descontentamento e sofreram por conta disso.

As três cidades sobre as quais Jesus decidiu lançar sua ira são muitas vezes conhecidas como as “cidades impenitentes”. Todas estão localizadas ao redor da costa norte do Mar da Galiléia, onde atualmente se encontra Israel. Sabemos através de seus evangelistas que Jesus viveu entre os humildes pescadores. da região e os tinha como seus companheiros e primeiros seguidores. É interessante que estes são lugares que o Cristo histórico chamou de lar e onde inclusive realizou milagres. 

A cidade de Corazim, também conhecida como Korazim ou Chorazin, era um lugar importante naqueles dias, famoso por vender o trigo que abastecia toda região. Os historiadores da Bíblia dizem que Jesus viveu lá depois de deixar Nazaré e que a visitou com frequência a cidade. Corazim é inclusive associada a pelo menos dois milagres realizados por Jesus e está presente em passagens que narram suas andanças pela Galileia. 

Diz-se que, apesar de visitar a cidade repetidas vezes e pregar para a população, o povo de Corazim não se arrependeu de seus "caminhos pecaminosos", o que levou a uma reação extrema de Jesus, Conforme os evangelhos de Mateus e Lucas no Novo Testamento, ele lançou uma terrível maldição sobre a outrora próspera cidade, condenando-a a definhar até sua inevitável ruína. 


De fato, a cidade foi completamente abandonada e, de acordo com os escritos de Eusébio, destruída por um terremoto catastrófico em 330 dC, após o que foi reconstruída no século V e novamente abandonada pela sua população seguida uma misteriosa praga. Em séculos posteriores, Corazim seria associada conforme os escritos apócrifos ao local exato de nascimento do Anticristo que comandaria os exércitos de Satã contra a própria cristandade. Na Idade Média ela era citada como um dos lugares malditos no mundo e tão pecaminosa que meramente pisar nela era o bastante para colocar a alma em risco.  

Por muito tempo, a existência de Corazim foi colocada em dúvida, mas no século XIX as ruínas finalmente foram encontradas nas proximidades de um lugar chamado Khirbet Kerazeh. Os arqueólogos britânicos que fizeram a descoberta encontraram uma antiga sinagoga, bem como várias ruínas adornadas com basalto negro o que demonstrava a incrível riqueza da população local. A descoberta mais interessante foi a de um enorme bloco desse material contendo uma gravação em aramaico antigo, figuras humanas e de animais cuidadosamente esculpidas. Em uma casa, provavelmente pertencente a um prelado romano havia também uma bem conservada estátua da Medusa, que na época seria considerada uma imagem pagã. 

Há pouca evidência de que essas ruínas remontem exatamente ao período em que Jesus estava vivo e, apesar das poucas menções Corazim, permanece um mistério histórico perdido. Além disso, os evangelhos não explicam exatamente o que o a população local fez exatamente para incorrer em uma resposta tão veemente de Cristo. Algumas lendas lançam a hipótese de que eles teriam incorrido na adoração de deuses estrangeiros ou que renegaram as palavras de Jesus, mas não há como saber ao certo.


A poucos quilômetros de distância dali está outra cidade supostamente amaldiçoada por Jesus, chamada Cafarnaum, um famoso porto de pesca na época e uma importante parada na Via Maris, a principal rota comercial estabelecida pelos romanos, que ligava Damasco ao norte e o Egito ao sul. A cidade também é notável por ser a terra natal de alguns dos discípulos de Jesus, os pescadores Pedro, André, Tiago e João, e do cobrador de impostos, Mateus. Todas essas figuras ilustres teriam nascido ou ao menos vivido algum tempo no lugar que chegou a ter uma população considerável para a época.

Cafarnaum foi uma das cidades-chave do chamado "Triângulo Evangélico" que estabeleceu o ministério cristão e onde Cristo realizou a maioria de seus milagres. De fato, Jesus viveu algum tempo em Cafarnaum, chamando-a de sua "própria cidade". Foi lá que se deu o milagre que fez um paralítico andar novamente, bem como a cura do servo de um centurião que estava gravemente doente em sua casa. Também foi lá que Jesus curou a sogra de Pedro, e mais importante ressuscitou a filha de Jairo, o líder da sinagoga local. Foi na sinagoga de Cafarnaum que Jesus deu um dos seus mais importantes sermões sobre o Pão da Vida (João 6:35-59), no qual ele diz: "Quem come minha carne e bebe meu sangue tem a vida eterna e será ressuscitado no último dos dias".

Infelizmente, os cronistas cristãos afirmam que a população de Cafarnaum era em grande parte indiferente aos milagres que testemunharam, não querendo reconhecer os poderes de Jesus ou se arrepender de seus pecados. Pior ainda, muitos deles teriam caçoado de suas palavras e o acusado de ser uma fraude, o que levou Jesus a amaldiçoá-la. Uma outra possibilidade levantada por alguns evangelhos apócrifos é que a cidade fosse um bastião de iniquidade e de possessões demoníacas. Segundo um evangelho Cafarnaum era o lar de tantos demônios que Cristo se ocupava constantemente em exorcizar pessoas. Ele teria alertado a população a deixar a cidade, o que as pessoas se negaram a fazer. Cristo então teria voltado sua maldição não a Cafarnaum, mas aos demônios que lá viviam. 


A maldição supostamente fez com que a cidade caísse em total ruína, passando de um próspero mercado de pesca a uma sombra pálida de sua antiga glória, tornando-se o que um relato do século III chama de "cidade desprezível; com meras sete casas de pescadores pobres", o que é impressionante se consideramos a prosperidade de Cafarnaum conforme descrita na Bíblia. 

Todas as tentativas de reassentamento da área foram empreendimentos fracassados ​​que encontraram sofrimento e conflitos. Tal como acontece com Corazim, muitas ruínas foram encontradas onde Cafarnaum um dia esteve, com várias sinagogas e o que se acredita ter sido a casa do próprio São Pedro. As ruínas também abrigavam a maior sinagoga descoberta em Israel, uma enorme estrutura ornamentada construída no século IV ou V sobre os restos de uma sinagoga na qual Jesus ensinou. Quando as ruínas foram encontradas em 1838, a maldição aparentemente ainda lançava uma sombra sobre elas, como o explorador americano Edward Robinson escreveu em seu diário de campo. Ele chamou o lugar de "incrivelmente desolado e triste" e disse sentir uma "aura desagradável" pairando sobre os velhos prédios que estava desenterrando. 

Em tempos modernos, uma igreja católica moderna foi erguida sobre oito grandes pilares no topo de um monte com vista para a antiga cidadela. Para qualquer observador o templo parece ter sido colocado ali com a intenção de proteger o lugar e quem sabe, manter a maldição afastada.


Finalmente chegamos a terceira cidade amaldiçoada por Jesus, a antiga vila de pescadores de Betsaida também parte do Triângulo Evangélico. Ela era a maior das três cidades, e um dia foi a próspera capital do Reino de Gesur nos tempos do Rei Davi. Sabe-se que possuía um importante mercado que reunia grande parte dos pescadores que a visitavam regularmente para negociar o fruto de seu trabalho. 

Foi em Betsaida que Jesus conheceu seus primeiros discípulos, o pescador Simão-Pedro e seu irmão André. Foi também o lugar onde Jesus realizou os milagres de cura de um cego, bem como seu famoso milagre de fornecer comida para uma missa de 5.000 pessoas com apenas dois peixes e cinco pães (Mt 14:13-21), conhecido como "Milagre da Multiplicação dos Pães e dos Peixes". 

Infelizmente o povo de Betsaida também atraiu a ira do filho de Deus que a amaldiçoou após ser renegado pelos habitantes. A cidade teria sofrido uma sucessão de infortúnios, entre os quais uma peste que reduziu consideravelmente a população. Betsaida também teria enfrentado um forte maremoto que destruiu seu porto e forçou os pescadores a buscar um outro local para comercializar os peixes. Finalmente a cidade acabou sendo totalmente aniquilada por um terremoto por volta de 363 dC. Ela seria reconstruída, mas posteriormente abandonada, com a terra tornando-se estéril e imprópria para o plantio. A população acabou abandonando-a e ela rapidamente se converteu em ruínas cobertas de poeira.

Ironicamente a localização e existência de Betsaida jamais foi contestada já que ela não chegou a ser inteiramente esquecida. De fato, historiadores afirmavam que a cidade era bem conhecida no século XII, chegando a ser visitada por Cruzados que se disseram chocados pela "aura de perversidade" pairando sobre as ruínas. As ruínas eram consideradas um "lugar maldito" já nessa época e evitado por judeus e muçulmanos que dominavam a área até então. No século XIX, a cidade foi escavada pela primeira vez e muitos sinais de sua ocupação vieram à tona entre os quais prédios administrativos e os restos do porto destruído pelo terremoto.  


Todas as cidades que Jesus Cristo supostamente achou adequado amaldiçoar realmente acabaram destruídas no curso dos séculos posteriores e jamais se reergueram. O ato de amaldiçoar pode hoje em dia ser considerado algo negativo, mais condizente com bruxas e feiticeiras, mas nos tempos de Jesus, a "maldição" constituía um ato válido para punir uma cidade que havia rompido com a proposta de Deus e se voltado contra ele. 

Esses três lugares foram extirpados da salvação e considerados além de qualquer remissão, conforme diz o evangelho de Mateus 11: 20-24:

"Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Pois se os milagres que foram feitos em vocês tivessem sido feitos em Tiro e Sidom, eles teriam se arrependido há muito tempo. Mas eu lhes digo que Ele será mais tolerável para com Tiro e Sidom no Dia do Juízo do que será com vocês. E tu, Cafarnaum, que te ergues até os céus, serás abatida até as profundezas; porque, se em Sodoma se tivessem operado os prodígios que em ti se operaram, ela teria permanecido até ao dia de hoje."

É bastante chocante ver uma figura de natureza tão tipicamente benevolente e perdoadora proferir tais palavras e exibir tanto desprezo, mas parece que Jesus não estava acima de uma certa fúria quando assim era necessário. As três cidades malditas foram enterradas pelas areias, perdidas para a história e, em sua maioria, transformadas em ruínas e escombros, mas seu legado permanece. Elas são as únicas amaldiçoadas por Jesus Cristo. É uma demonstração assustadora de seu poder, se é que tudo isso realmente aconteceu. No final, temos essa figura de uma das maiores religiões do mundo, conhecido por sua natureza gentil e postura indulgente, conjurando forças divinas com o intuito de arruinar terras e pessoas que discordavam dele. E embora seja incerto o quanto disso tudo é realidade, é um tanto arrepiante, saber desse capítulo pouco conhecido da história bíblica.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Explorando os Mythos mais obscuros: Mordiggian - O Deus Cadavérico


Mordiggian é um dos Grandes Antigos mais obscuros, uma divindade cuja filosofia engloba os aspectos mais funestos da existência. É ele quem rege a corrupção da carne, a dissolução do corpo e a putrefação definitiva de tudo que vive e (principalmente) morre. O Deus se manifesta nos restos e nos resquícios, nos ossos e no pó, sendo a encarnação definitiva do princípio da Entropia. Tudo que vive decorre Dele, e a Ele retorna quando a vida o abandona, para ser reabsorvido pelo todo.

Até mesmo para os padrões do Mythos, Mordiggian é obscuro, quase que um estranho. O pouco que se sabe à respeito dele vem das alcovas habitadas pelos carniçais que o louvam nas profundezas de cemitérios. Os carniçais constituem seu povo escolhido, eles imitam seu senhor, dando vazão a seus instintos atrozes de devorar carniça. Alguns sábios entre os carniçais acreditam que foi Mordiggian quem lhes ensinou a Ética da Necrofagia e os fundamentos que lhes permitem sobreviver dessa maneira. Nas moradas mais antigas, habitadas por esses escavadores imundos, podem ser encontradas inscrições que mencionam Mordiggian e suas leis implacáveis. Os Carniçais as seguem sem questionamentos.

Fora das criptas habitadas pelos carniçais, o nome de Mordiggian é sussurrado por degenerados que se entregam as práticas mais aviltantes. Embora humanos possam fazer parte das congregações, eles são consideravelmente mais raros. É possível que projeções mentais do Deus encontrem e contamine a mente destes indivíduos transformando-os em maníacos homicidas e canibais. Pessoas tocadas por Mordiggian geralmente desenvolvem um desejo selvagem por satisfazer apetites sinistros e romper com tabus. Não é raro que prefiram a companhia dos mortos, que sejam atraídos por necrópoles ou que se relacionem (por vezes intimamente) com cadáveres. A corrupção da carne não os choca, pelo contrário, os excita. O toque maléfico de Mordiggian é perverso a ponto de ser percebido como um convite para emoções fortes e inesquecíveis e eles o aceitam de bom grado.

Mordiggian jaz aprisionado nas fundações da vetusta cidadela de Zul-Bha-Sair, na Terra dos Sonhos. Ela é a Capital do continente derradeiro de Zothique, uma nação pálida, manchada pela tristeza e angústia que contamina todos que a tem como lar. Muitos humanos vagam por Zothique, sonhadores aprisionados em um ambiente tétrico de pessimismo cuja existência é justificada apenas pela morte iminente. No momento em que a vida os abandonar, bem sabem, clérigos profanos trajados em mantos púrpura e ocultos por máscaras prateadas, virão reclamar seus restos e carregá-los em carroças até o Templo de Mordiggian. Uma vez levados para dentro desse lugar ermo, não há retorno. Toda carne que adentra os portões escancarados pertence ao Deus e sua inefável congregação.


O todo poderoso Mordiggian habita a catacumba mais profunda, atrás de um majestoso portão de ardósia coberta de símbolos arcanos rabiscados no idioma grotesco dos carniçais. Apenas os alto sacerdotes podem adentrar essa câmara sagrada, extrair o saber das paredes e escrever laboriosamente seus próprios testemunhos com talhadeiras de osso. Além do portão ouvem-se os estálidos e sussurros do Deus Cadavérico, ruídos que os sacerdotes aprenderam a interpretar e discernir. Eles temem e anseiam o dia em que a grande porta se abrirá para que o Deus deixe seu túmulo disposto a ocupar o trono de Zothique como seu Regente de direito. Nesse dia, marcado por um alinhamento fatal de estrelas mortiças, ele viajará até o Mundo Desperto para iniciar a Grande Ceia - quando os carniçais irão devorar a humanidade por inteiro.

É interessante notar, entretanto que Mordiggian não é exatamente uma entidade maligna. Ele parece se interessar apenas pelas suas necessidades prementes, os corpos que deseja consumir e a fome que deseja extinguir. Os vivos não são de seu interesse e ele tende a ignorá-los solenemente a não ser que eles o provoquem - sua ira, então, é lendária.

Qualquer encontro com Mordiggian é dolorosamente incômodo. O fedor de carniça que emana do Deus é tão potente e hediondo que se torna quase impossível ficar na sua presença. Alguns comparam esse odor nauseante com o de mil sepulturas abertas exalando os olores da decomposição. Nem todos conseguem superar a náusea e conter a avassaladora ânsia de vômito. Mas esse é apenas um dos problemas: quando se manifesta fisicamente, Mordiggian drena por inteiro o fogo, o calor e a luz. Temperaturas despencam e a área se torna mortalmente gélida e silenciosa. As pessoas experimentam uma desagradável sensação de dormência se espalhando pelo corpo, dominando os sentidos e nublando a consciência. Alguns, talvez os mais afortunados, simplesmente desmaiam e perecem colhidos pela hipotermia, ignorando que estiveram diante de uma divindade. Aqueles que sobrevivem passam pela terrível provação de se ver à mercê de um Deus vivo.

A entidade se manifesta como uma enorme massa amorfa parcialmente visível que flutua no ar de forma perene. Ele é como uma miragem tremeluzindo no ar quente de um deserto ou como círculos concêntricos se formando na superfície de um lago. Mordiggian pode se fazer mais perceptível coalescendo em uma forma visível semelhante a um redemoinho de partículas de poeira ou um torvelino granuloso semelhante a cinzas de um crematório. Por vezes ele faz brotar apêndices da sua forma central, com longos tentáculos que sondam os arredores e agarram o vazio. O contato com esses tentáculos é nocivo para todas as formas de vida que se corrompem ao mais leve toque. A pele empalidece e a carne se decompõe deixando uma ferida ulcerada pingando icor. Esta marca jamais fecha e cura por inteiro. 

O abraço de Mordiggian tem um efeito similar, ele é grande o bastante para engolfar uma dezena de pessoas ao mesmo tempo, erguendo-as no ar e carregando para seu interior turbulento. A reação em cadeia é rápida e reduz o organismo a poeira em segundos. Ao comer, Mordiggian faz uso de um método semelhante através do qual a carne é desintegrada rapidamente. Embora os cultistas se refiram a isso como a maneira da criatura se alimentar, não há como determinar ao certo se a ação visa obter nutrição. É um fato, no entanto, que o Deus consome inteiramente os cadáveres que lhe são ofertados dessa maneira.

Mordiggian possui vários avatares diferentes cada qual, com uma aparência específica dependendo  de quem o invoca e com qual feitiço. O avatar se manifesta por um curto período de tempo, obedecendo  a circunstâncias especiais e alinhamentos astrais que lhes favorecem. Em geral, um avatar é convocado para receber sacrifícios ou para oficializar rituais diante de uma congregação.

A seguir temos uma relação de alguns avatares de Mordiggian, ainda que possam existir muitos outros:

O Deus Cadáver

Este avatar é mais conhecido no sudeste asiático e talvez seja a mais antropomórfica de suas formas, o que não a torna menos abominável. Ele se assemelha a um gigantesco cadáver humano de pele amarela-esmaecida, que emana uma luz fosforescente. O fedor de seu corpo é repulsivo, rescendendo a carne apodrecida por vários dias. A entidade flutua no ar e permanece imóvel senão pelos olhos mortiços que rolam nas órbitas e por um murmúrio hediondo que gorgoleja de sua boca semiaberta. 

O Deus Cadáver é uma entidade neutra que geralmente não interage com os cultistas, mas que pode ser convocada para oficializar rituais nefastos. Os carniçais raramente o invocam e geralmente são humanos que tiveram acesso a algum feitiço que clamam pela sua presença. Para trazer esse avatar é necessária a oferenda da carcaça podre de uma animal do tamanho de um porco ou maior, cântaros com sangue coagulado e velas de gordura humana acesas no cair da noite. A criatura surge por alguns segundos e parte em seguida desaparecendo no ar. 

Durante o sistemático genocídio ocorrido no Camboja na década de 1970, o Deus Cadáver foi visto por inúmeras testemunhas que garantiam vislumbrar sua forma pairando sobre os Campos da Morte deixados pelo Kmer Rouge. O Delta Green investigou o caso e manteve as conclusões em documentos sigilosos.

O Grande Verme Pálido

Na Idade Média, Mordiggian assumia essa forma asquerosa quando era convocado pelos seus cultistas na Europa, sobretudo, na França. O Grande Verme Pálido é uma criatura de enormes proporções, similar a um ascarídeo inchado e gordo que se arrasta sobre o próprio dorso deixando um rastro limoso. A criatura tem uma carne mole e purulenta de coloração branca e extremidades castanhas. A cabeça é afilada, dotada de olhos róseos estranhamente inteligentes e uma boca anelada guarnecida de cerdas. 

Muitos afirmam que o avatar é o Pai de todos Vermes de Cemitério que devoram a carne dos mortos e se alimentam fartamente da podridão. Não por acaso, esse avatar era convocado para receber sacrifícios e oferendas humanas deixadas em altares nos subterrâneos de necrópoles abandonadas. Os carniçais a reconhecem como uma das formas mais tradicionais de Mordiggian e rendem a ele pedidos para que ele favoreça seus covis e nunca deixe faltar comida.

Alternativamente esse horror pode assumir a forma de uma massa composta por milhares de vermes que se movem como uma única criatura. Nessa encarnação, o Grande Verme Pálido recebe sacrifícios e se alimenta de oferendas consumindo vorazmente cadáveres em poucos minutos. 

Hiina

Possivelmente um dos únicos avatares de Mordiggian conhecidos no continente africano, Hiina é uma monstruosidade venerada pelos carniçais que habitam o Noroeste da África, sobretudo o Mali, Mauritânia e Niger. Ele também foi adorado por cultistas humanos descendentes de franceses que se estabeleceram na Colônia do Senegal no século XIX.

A criatura se assemelha a uma imensa hiena de corpo musculoso, com pelagem castanha esverdeada e manchada por doença. Ela geralmente surge coberta com uma substância gelatinosa semelhante a sangue coagulado. Assim como os demais avatares, ele emana um fedor de corrupção e é associado a prática do canibalismo. Dizem que Hiina (nome do qual deriva a palavra hiena) é invocado para se alimentar de cadáveres oferecidos e para punir os transgressores de suas leis. Hiina é uma divindade severa que se farta com os restos humanos e que supostamente possui algum tipo de controle sobre hienas, abutres e urubus que habitam os desertos africanos. Alguns povos nativos rendiam louvores a Hiina graças a sua proximidade com os carniçais. Estes acreditavam que a saliva da criatura podia acelerar a transformação de um humano em carniçal e possuíam um ritual que envolvia se deixar lamber pela monstruosidade.

Ikuta

Conhecido apenas pelos Yacumã, uma tribo degenerada que habita os limites da fronteira norte do Brasil com a Venezuela, Ikuta é o Deus do Massacre e dos Festivais da Carne. Os Yanumã descendem quase que integralmente de carniçais com quem tiveram contato através da Terra dos Sonhos. De fato, uma parte considerável de membros da tribo passam pela transição e se transformam em carniçais ao longo da vida.

Descobertos nos anos 1950 por antropólogos a serviço da extinta Secretaria de Proteção ao Indígena, os Yacumã eram uma tribo de antropófagos que viviam numa das regiões mais isoladas do estado de Roraima. Cercados de selvas densas e intransponíveis eles eram extremamente territoriais e perigosos, embrenhando-se na mata virgem e usando a vegetação em seu benefício. Uma equipe de filmagem italiana na década de 1970 conseguiu encontrar os Yacumã e ter com eles um breve contato, filmando alguns de seus costumes e rituais. A equipe infelizmente acabou desaparecendo na selva. Há histórias de que a tribo se juntou aos carniçais na Terra dos Sonhos.

Seu Deus, Ikuta é um avatar de Mordiggian que assume a forma de uma coluna rodopiante de cinzas que se ergue do chão até os céus. Ele devora tudo que o toca e se alimenta de cadáveres lançados em uma cova subterrânea onde ele era costumava ser invocado.

O Patriarca

Habitando as profundezas de metrópoles e grandes centros urbanos, o Patriarca é um avatar de Mordiggian venerado por grandes comunidades formadas por Carniçais mais esclarecidos. Estes acreditam ardorosamente que o crescimento, progresso e sobrevivência das cidades depende de sacrifícios feitos em homenagem a Mordiggian quando este assume a forma do Patriarca.

Os carniçais tendem a utilizar contatos entre os humanos cuja função é obter sacrifícios que são coletados em lugares miseráveis, vizinhanças perigosas ou túneis de metrô. Eles são levados até os subterrâneos habitados pelos carniçais e ritualisticamente preparados para serem oferecidos ao Patriarca, Se ele estiver satisfeito com o tributo, o Patriarca aceita poupar as cidades na superfície de sua ira e abençoar sua existência.

O Patriarca é uma abominação amorfa gigantesca de cor perolada, dotado de incontáveis bocas avermelhadas que parecem sempre estalar ansiosas por mastigar e devorar carne humana. Ele é invocado apenas nas profundezas por bandos de carniçais que um dia foram humanos. Acredita-se que existam comunidades de carniçais que veneram esse avatar de Mordiggian em Chicago, Nova York e Boston, mas há rumores que dão conta de que tais grupos também podem ser achados nas entranhas de grandes metrópoles ao redor do mundo: Cidade do México, Rio de Janeiro, Londres, Tóquio e Moscou para citar apenas algumas.

Medonho em cada pequeno detalhe, Mordiggian é uma entidade enigmática cujo entendimento parece escapar às mentes sãs. Talvez a compreensão sobre esse Deus demande transcender a razão e desafiar os tabus mais profundos da humanidade. Só aqueles que se entregam a tal juízo tem um vislumbre do que é realmente Mordiggian.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Prisão Assombrada - Os assustadores Fantasmas de Alcatraz


Se, como muitos acreditam, fantasmas regressam para assombrar o lugar onde tiveram experiências traumáticas quando estavam vivos, então, a lendária Prisão Federal da Ilha de Alcatraz deve ser cheia de fantasmas. 

De acordo com fontes, um bom número de guardas que serviu lá entre seus anos de funcionamento, entre 1934 e 1963 relataram estranhos incidentes. Dos pátios da prisão até as cavernas abaixo dos prédios administrativos, dos enormes pavilhões ao complexo labiríntico de corredores intermináveis, sempre houve comentários a respeito coisas incomuns acontecendo em Alcatraz. Suspiros e sussurros descarnados, odores inexplicáveis, lugares frios e aparições espectrais, a velha prisão é um compêndio de incidentes paranormais. Mesmo visitantes e familiares apenas de passagem pela prisão mencionavam ver fantasmas de prisioneiros e soldados que um dia viveram na Rocha (como a Ilha era conhecida pelos seus habitantes).

Não faltam histórias bizarras sobre a intensa atividade paranormal que supostamente domina a Prisão desativada. Alcatraz é um lugar de memórias amargas e de emoções pesadas que provavelmente ficaram represadas nessas paredes. No mundo da parapsicologia, cargas emocionais são consideradas como o catalizador de energias negativas e estas acabam impregnando determinados lugares. É como se esses incidentes criassem um eco que reverbera para sempre.

Uma narrativa muito conhecida na Rocha menciona um guarda de segurança chamado Ray O'Connel que realizava patrulhas de rotina pelos corredores da Prisão em 1976. O guarda sempre mencionava ouvir o som de batidas numa porta de ferro que lacrava um corredor que levava para um dos pavilhões. Certo dia ele decidiu que iria abrir essa porta e espiar e ter certeza de que não havia ninguém ali dentro. Ele colocou a mão na tranca deslizante da porta e teve uma estranha sensação. Era um frio que nada tinha a ver com a temperatura do lugar, um temor que ele não foi capaz de explicar. Lentamente ele tirou a mão da tranca e decidiu que era melhor não tentar compreender certas coisas.


Os sons de batidas no metal sempre eram ouvidos quando ele passava por aquela área fazendo sua ronda. Colegas de O'Connel também ouviam o som, mas ninguém abria a porta, preferindo ignorar seja lá quem (ou o que) estava batendo na porta. Considerando que aquela era uma ala destinada a presos de máxima periculosidade, conhecida como Corredor do Inferno, O'Connel tinha suas razões para não abrir a porta e fazer de conta que estava imaginando as batidas.

Certo dia, outro guarda foi transferido para a Rocha. Era um rapaz novo e com pouca experiência. Ele garantiu para seus novos companheiros que não acreditava em fantasmas e que não iria cair em nenhuma pegadinha dos outros guardas tentando assustá-lo. O'Connel disse ao rapaz que às vezes, Alcatraz podia ser um lugar muito estranho e que era melhor ele ignorar certas coisas para seu próprio bem. 

Uma noite, o novato estava fazendo a ronda de rotina e passou diante do Corredor do Inferno. Não há como afirmar, mas Ray O´Connel e seus colegas suspeitam que o rapaz ouviu as batidas na porta de metal, aquelas que todos que trabalhavam lá já haviam ouvido ao menos uma vez. Nenhum deles havia ousado abrir a porta, mas aquele rapaz era jovem e queria mostrar aos demais que não se assustava facilmente.


Os guardas encontraram o novato caído diante da porta de ferro que levava para o Pavilhão de Máxima Segurança, o Corredor do Inferno. A porta estava encostada. O rapaz estava encolhido no chão, murmurando coisas sem sentido e seu corpo todo gelado. Estava em choque e só se recuperou da experiência dias depois, contudo nunca retornou para o serviço. Quem tinha contato com ele contou que o novato nunca voltou ao normal, que recebeu uma dispensa do serviço e ficou em casa dali em diante apavorado por lugares confinados e ambientes fechados. Outros iam ainda mais longe, afirmavam que ele ficou instável e que precisou ser internado num asilo. Ray e os demais, concordavam em um pormenor da narrativa: que quando acharam o novato, seus cabelos estavam brancos feito giz.

As batidas insistentes ainda seriam ouvidas muitas e muitas vezes, mas ninguém abriria novamente aquela porta. Desde então, o corredor  passou a ser conhecido como um dos locais mais assombrados de Alcatraz. A história pode ou não ser verdadeira, mas um fato é incontestável, que a porta de metal que leva para o Corredor do Inferno foi soldada para que ninguém cometesse o erro de tentar abri-la novamente. 

Mas este não é o único lugar em Alcatraz que possui uma história macabra associada a ele.


Os vigias noturnos falam de uma cela em particular, a de número 788 que possui status quase lendário entre os funcionários que trabalharam na Rocha. O cubículo não parece em absoluto diferente de nenhuma das outras celas: tem as mesmas medidas e idêntica configuração, com cama, armário e latrina, mas por alguma razão, ele atrai histórias desde quando a prisão estava em funcionamento.

Os funcionários mais antigos afirmam que a cela 788 era infame por ter abrigado assassinos, estupradores e maníacos de todo tipo. Que as pessoas que dormiam na cela experimentavam pesadelos horríveis nos quais reviviam os crimes pelos quais haviam sido condenados. Homens duros e sem medo acordavam aos gritos depois de uma noite ali dentro. Uma história famosa mencionava um suposto assassino da máfia, sentenciado a prisão perpétua e que foi colocado na Cela 788. Ele dividia o beliche com um criminoso raia-miúda que teve o azar de ser colocado ali. Em algum momento da madrugada, o assassino acordou aos berros e fez com que os guardas viessem ver o que estava acontecendo. O homem, chorando como um garotinho, pediu (ou melhor, implorou) para que o tirassem dali, pois em suas palavras "havia algo horrível naquela cela". Os guardas não lhe deram ouvidos e simplesmente o trancafiaram novamente na 788.

Na manhã seguinte, ao abrir as portas para fazer a contagem, ninguém saiu da cela. Quando um dos carcereiros foi até lá ver o que havia acontecido se deparou com algo bizarro. Encontraram o mafioso,  caído no chão em uma poça de sangue - ele havia rasgado os pulsos com os próprios dentes. O rosto dele estava transfigurado pelo pavor vivido em seus últimos momentos. O companheiro estava chocado e tudo que conseguiu contar é que ouviu vozes estranhas, pessoas falando e o sujeito chorando baixinho.  A coisa aconteceu no meio da madrugada e nenhum dos presos nas celas vizinhas viu ou ouviu nada.

A fama da Cela 788 de Alcatraz era tamanha que os guardas a reservavam para os presos de quem não gostavam. Os prisioneiros, obviamente conheciam as lendas sobre a cela e temiam ser colocados nela. Em 1959, um preso ocupando a cela teria matado o companheiro em um surto psicótico repentino. Ele enfiou os dois polegares nos olhos do colega enquanto este dormia e afundou os dedos tão fundo que chegou a arranhar o cérebro dele. Quando perguntado a respeito, ele disse que não lembrava de ter feito aquilo e que estava tão surpreso quanto os guardas. Mais curioso ainda é que um dos agentes carcerários havia passado pelo corredor diante da cela 788 instantes antes da descoberta sanguinolenta. Ele não percebeu nada de estranho e os dois ocupantes dormiam tranquilos.


Outra cela famosa em Alcatraz era a 14-D, no bloco de solitárias, conhecido como "buraco" no jargão prisional. Essas celas minúsculas eram reservadas aos presos que causavam confusão ou que tinham que ser disciplinados de maneira mais severa pelas suas transgressões. A solitária é um lugar terrível em que o prisioneiro tem seus sentidos privados pela escuridão e pela passagem do tempo. 

A cela 14-D teve um hóspede famoso, o assaltante à mão armada Henry Bates que em 1938 intentou uma ousada fuga de Alcatraz. Ele foi recapturado e colocado no buraco 14-D para cumprir um período de 19 dias em total isolamento. O período máximo de tempo na solitária era de 20 dias, já que os presos ficavam em um ambiente totalmente insalubre, nus e na escuridão completa. Temia-se que um tempo mais prolongado pudesse causar danos psicológicos irreparáveis em virtude das condições de total isolamento.

Pois bem, Henry Bates foi mantido na cela por 1092 dias, quase 3 anos completos. 

Quando saiu da solitária ele era pouco mais do que um animal irracional que havia enlouquecido por completo. Seu primeiro instinto quando devolvido à população carcerária foi saltar sobre um dos presos e matá-lo com as próprias mãos. Durante o julgamento de Bates, o caso veio à tona e o incidente deu início a uma reforma prisional e afastamento do diretor da instituição que tentou acobertar o ocorrido. A Cela 14-D depois disso ganhou fama como um lugar amaldiçoado, tendo uma aura de agonia e desesperança tão pesada que contaminava todos que passavam algum tempo dentro dela. Rumores afirmam que em 1947, um preso engoliu a própria língua depois de passar três dias aos berros dentro da solitária. Em 1951 outro teve convulsões e acabou morrendo lá dentro.   

"Há uma sensação intensa que surge de maneira repentina quando se passa mais do que alguns minutos naquela cela", conta um dos guardas que atualmente cuida do bloco. "Essa cela, a 14-D, está sempre gelada. Ela é estranhamente mais fria do que as outras três celas escuras. Às vezes fica quente aqui fora - tão quente que você tem que tirar o casaco. Mas a temperatura dentro daquela cela é diferente... tão fria que você precisa de uma jaqueta se for passar algum tempo nela."


Estranhamente, os guardas e os presos não foram os únicos a ter experiências incomuns naquela cela em particular. Vários turistas que vem conhecer a prisão mencionam uma sensação incômoda perto das solitárias, em particular a 14-D. Há menções sobre pessoas sentindo palpitações, tendo arrepios e até desmaios ao passar diante da infame cela. Em 1988 a visita a essa ala foi retirada do roteiro de visitação uma vez que ela "atraía problemas". A sala voltou a ser reintegrada a visita da Rocha, mas os guardas sugerem que aqueles que são sensíveis ou sugestionáveis evitem descer os 32 degraus que levam para o lendário "buraco".

Outra história bizarra muito famosa em Alcatraz menciona uma figura misteriosa, uma sombra que parece se esgueirar pelas paredes e corredores do antigo Bloco C, um dos mais temidos da instituição prisional, uma vez que recebia os presos com problemas psiquiátricos. O lugar, apelidado de "Depósito de Loucos" era dos mais assustadores já que a população era composta por maníacos psicóticos de máxima periculosidade. O Bloco C ficava afastado e o protocolo de segurança era seguido à risca para restringir ao máximo o contato entre guardas com os homens mantidos ali. 

Há o boato de que, mesmo quando ainda estava em atividade, os presos confinados nessa ala falavam de um espectro aterrorizante que se alimentava dos presos. Os relatos davam conta de que se tratava de "uma criatura com olhos brilhantes, alta, esguia e com presas afiadas na boca". Os presos diziam que a coisa estava ali trancada com eles e que se aproveitava do fato que ninguém acreditava neles - visto que todos eram mentalmente insanos.


Os enfermeiros contavam a história que era uma fonte inesgotável de rumores entre os guardas. Embora ninguém realmente levasse muito à sério essas histórias, era comum ela ser citada pelos internos. Por vezes algum condenado gritava em desespero dizendo ver a tal criatura feita de sombras surgir e desaparecer no ar. Há um relato especialmente apavorante sobre um preso recém chegado que foi colocado no Bloco C por volta de 1960. Os guardas estavam acostumados com gritos e por isso não se importaram quando os berros continuaram noite adentro até que finalmente houve silêncio. 

Na manhã seguinte, quando inspecionaram a cela, encontraram o condenado morto. Uma expressão pavorosa estava congelada no rosto do homem e havia sinais inequívocos de dedos em volta de sua garganta! A autópsia revelou que ele morreu em decorrência de estrangulamento e que este jamais poderia ter sido auto infligido. Alguns funcionários suspeitavam que o sujeito podia ter sido sufocado por um dos guardas, farto dos gritos do homem, mas ninguém jamais foi acusado formalmente.

Alguns condenados acreditavam que o espírito maligno pertencia a Harry Siskel, um ex-policial que se tornou prisioneiro em Alcatraz, acusado de estuprar várias mulheres e crianças. Ele foi espancado até a morte por outros prisioneiros que fizeram justiça com as próprias mãos. Alguns acham que o fantasma de Siskel habitava os corredores do Bloco C, extraindo vingança contra os companheiros de cela que o mataram. 

Mas nem todas as lendas de Alcatraz envolvem os fantasmas tradicionais.


Dizem que o antigo farol da ilha, que ficava na ponta de uma restinga artificial e que foi demolido há décadas, por vezes surge nas noites de nevoeiro denso, acompanhado por um assobio fantasmagórico e por uma grande luz intermitente que passa lentamente por toda a ilha. Dizem ainda que aqueles que são banhados por essa luz tétrica acabam morrendo de forma acidental pouco tempo depois.

Há também o inexplicável som de explosões, tiros de arma de fogo e gritos surgidos do nada que muitas vezes fazem com que até mesmo os vigias mais experientes tenham um sobressalto. Esses sons já foram acompanhados de visões espectrais que remetem a uma grande rebelião ocorrida na Prisão Federal na década de 1960. As testemunhas diziam poder ouvir os gritos de luta e algazarra ecoando no pátio onde prisioneiros foram degolados pelos seus colegas em sanguinolentos ajustes de contas. Este incidente seria um clássico fenômeno parapsicológico ecoando indefinidamente, fadado a se repetir para sempre.

A antiga lavanderia que um dia foi usada pelos soldados que viviam em Alcatraz, antes dela ser convertida em Prisão, também é um lugar muito assombrado. Dizem as lendas que ali aconteceu um grande incêndio que vitimou vários homens. O lugar, segundo testemunhas exala um forte cheiro de fumaça, como se algo estivesse constantemente pegando fogo. A sensação da fumaça sufocante era tamanha que expulsava os guardas e os fazia buscar por focos de incêndio que justificassem aquele odor. Alguns guardas mencionavam um cheiro ainda mais pronunciado no ar, um que era especialmente forte nas datas de aniversário do trágico incêndio. Diziam que aquele era o inimitável fedor de carne humana queimando: gordura derretendo e cabelo se incendiando.

Com o passar dos anos, caçadores de fantasmas, autores, entusiastas de true crime e curiosos de todo tipo visitaram a ilha e muitos deles partiram com um sentimento de estranheza. É provável que aqueles que vivenciam o "lado fantasmagórico" de Alcatraz com mais frequência sejam os funcionários do Serviço de Parques Nacionais que cuidam atualmente da Prisão. São eles quem passam muitas horas sozinhos na Rocha. Na maioria das vezes, os guardas afirmam não acreditar no sobrenatural, mas ocasionalmente, um deles admite que acontecem coisas estranhas em Alcatraz, coisas que eles não conseguem explicar.


O renomado caçador de fantasmas Richard Senate e um médium famoso chamado Douglas Seagrove passaram uma noite em Alcatraz como parte de uma promoção da rádio KGO de San Francisco em 1998. De acordo com Senate, as emanações fantasmagóricas em Alcatraz pareciam escorrer de todos os cantos à medida que a longa noite avançava. 

Ele e o médium visitaram todos os locais considerados assombrados e se detiveram diante de manifestações fantasmagóricas que pareciam se ressentir com a presença deles em seus domínios.  Senate chegou a se trancar na cela 14-D que dizem ser especialmente aterrorizante. Quando a pesada porta de aço foi fechada, Senate imediatamente sentiu dedos gelados em seu pescoço e seus cabelos se arrepiaram. Ele relatou que não se sentia sozinho e que uma presença maligna o acompanhou durante todo experimento. 

Já o vidente, Seagrove teve a visão de corpos retorcidos e desmembrados num pátio na parte de trás do Bloco A, onde mais tarde lhe informaram ser o antigo cemitério usado para enterrar presos. Seagrove disse acreditar que toda angustia, sofrimento e dor experimentada pelas pessoas que viveram em Alcatraz durante anos ficou presa atrás dos muros da velha cadeia. Essa energia seria a causadora dos fenômenos paranormais que ainda podiam ser sentidos. Quando questionado a respeito do que poderia ser feito para contornar a situação, o médium foi enfático: "Essa não é um bom lugar para ser visitado! Ele não deveria ser uma atração turística! Essas paredes deveriam ser derrubadas e o lugar todo colocado abaixo. Só isso, talvez conseguisse eliminar essa aura negativa".

Enquanto ninguém tem coragem de fazer isso, a Prisão Federal desativada da Ilha de Alcatraz continua recebendo visitantes curiosos com um dos cartões postais mais estranhos da cidade de San Francisco. Aqueles que entram na Rocha por vontade própria, são capazes de sentir que há algo no ar habitando as ruínas da prisão. Imagine o sentimento de quem chamou esse lugar maldito de lar.

terça-feira, 12 de março de 2024

As Leis da Necrofagia - Os Rituais Profanos do Culto de Mordiggian

Além do desejo de sobreviver e expandir suas atividades nefastas, o Culto de Mordiggian tem em mente um objetivo a longo prazo: subverter a sociedade a tal ponto que certas coisas consideradas tabu se tornem práticas aceitas. A seita tem como parte de seus rituais mais sagrados práticas consideradas abomináveis pela maioria das sociedades humanas. Canibalismo, necrofilia e a adoração de entidades não-humanas constituem o tripé no qual o Culto se equilibra, princípios difíceis de tolerar. 

Embora tentem promover essas práticas perversas, o Culto jamais foi capaz de superar o senso de estranheza e horror das pessoas diante de tais atitudes. Historicamente eles fizeram poucos avanços exceto entre indivíduos naturalmente degenerados. Mesmo assim, a atuação dos cultistas invariavelmente acabou chamando a atenção das autoridades forçando a evacuação da seita no momento em que ela é descoberta. O Culto acredita que certas práticas, em especial o canibalismo, podem ser impostas aos humanos, sobretudo em tempos de grande perturbação no tecido social. Durante guerras e revoluções, as privações podem forçar as pessoas a atitudes extremas que normalmente elas sequer iriam cogitar. Os Carniçais ligados ao culto observam com interesse quando a fome faz com que tabus consagrados sejam testados até seus limites. Eles observaram com grande atenção os eventos transcorridos nas Guerras Napoleônicas, na Grande Guerra, na Revolução Soviética e na Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, a Guerra em Ruanda e na Bósnia fizeram os carniçais ansiar pela implantação de seu modo de vida.  

A crença deles é que, se uma quantidade suficiente de humanos se voltar para essas práticas, isso irá pavimentar o caminho para o Despertar de Mordiggian. Embora reconheçam que essa tarefa é excepcionalmente difícil, os adeptos se consolam sabendo que a população mundial está em crescimento constante e que tal coisa pode levar a uma crise global de alimentos. Eles teorizam que se a raça humana continuar crescendo irá eventualmente atingir uma massa crítica de densidade populacional que forçará alguns governos a reavaliar dramaticamente seu posicionamento quanto a antropofagia.

De muitas maneiras, a visão do Culto é bastante fatalista. 

Eles sabem que Mordiggian em algum momento deve despertar, mas divergem quanto ao melhor momento para isso acontecer. Tal coisa se dá porque os próprios cultistas não sabem ao certo o que acontecerá quando seu Deus for liberado no mundo. Alguns acreditam que a humanidade eventualmente acabará cedendo aos princípios de sua crença, se não por convicção, ao menos para continuar sobrevivendo. Nesse panorama niilista, os membros da seita esperam se tornar uma casta superior visto que já serviam ao Deus antes dele ascender. Contudo, há aqueles temerosos de que uma vez libertado, Mordiggian se dedique a decretar o fim de toda a vida e transformar o planeta em um enorme cemitério.

Existe também uma profecia antiga muito disseminada entre os membros da seita, de que o Despertar de Mordiggian permitirá aos Carniçais reclamar o mundo da Superfície como seu. Com a humanidade derrotada e colocada de joelhos, os carniçais poderão deixar seus covis e esconderijos para demandar o mundo. Referida como "A Grande Ceia", essa Profecia é aguardada por muitos carniçais que veem nela a derradeira recompensa por servir Mordiggian.   

Morte e necrofagia desempenham papel fundamental nos rituais voltados a Mordiggian. 

Os cultistas acreditam que todo cadáver retém o saber e parte de sua vivência e que este pode ser obtido quando a carne é consumida cerimonialmente. Quanto mais antigo o cadáver, mais profundos os segredos acumulados por ele, algo que os carniçais chamam de "erudição" contida na Carne. Por essa razão, os restos mais antigos ou que pertenceram a indivíduos com reconhecido saber místico são especialmente desejados. 

Os adeptos de Mordiggian não veem a si mesmos como canibais degenerados, mas indivíduos que buscam acumular segredos insondáveis e também comungar espiritualmente com seu Deus. Ao se alimentar de um cadáver devidamente preparado eles acreditam estar partilhando a carne diretamente com Mordiggian e concedendo ao seu Deus uma pequena parcela de segredos que de outra forma se perderiam.

O Ritual de Preparação tem início com a escolha dos cadáveres que serão consumidos pela assembleia. Alguns sacerdotes desenvolvem um faro sensível que supostamente lhes permite identificar os restos humanos mais valiosos pela antiguidade deles. É interessante notar que nenhum corpo "fresco" é consumido, sendo escolhidos apenas cadáveres em que já se iniciou o processo de decomposição. Um cadáver de duas ou três semanas é o ideal, mas outros, muito mais deteriorados, também podem ser selecionados. Sob os templos de Mordiggian há sempre um lugar em que restos humanos são estocados com o intuito de apodrecer corretamente, deixando-os nas condições desejadas. Esses lugares possuem fileiras e mais fileiras de corpos humanos dispostos em racks ou pendurados em ganchos. 

É uma concepção errônea que os carniçais ligados ao Culto devorem seus inimigos assim que são mortos; o mais provável é que eles reclamem os corpos e os levem para seus covis para um período de maturação. Só depois deste é que eles serão devorados.

A preparação dos cadáveres segue com o trabalho de acólitos escolhidos especificamente para essa importante função. Roupas e pertences são removidos, o cadáver é lavado cuidadosamente e os cabelos aparados com tesouras e navalhas. Em seguida ele recebe a aplicação de símbolos arcanos com tinta na pele que o identificam como Sacrifícios à Mordiggian. Esse tratamento costuma ser dado aos restos de indivíduos que os sacerdotes consideram depositários de segredos valiosos. Outras pessoas, em especial cadáveres de jovens ou crianças, são preparados com menos cerimônia podendo ser seccionados em postas e fatiados como aperitivos para a ceia principal. 

Nas celebrações os cadáveres são dispostos em altares de pedra cinzenta como granito ou ardósia e apresentados diante da congregação. O templo é geralmente uma câmara subterrânea parcialmente iluminada por velas feitas de gordura humana e pavio de cabelos. O Sacerdote veste uma espécie de avental cerimonial feito de pele humana curtida e um diadema de ossos. Os participantes geralmente se apresentam despidos, mas em alguns casos importantes vestem ornamentos feitos de osso, tendão e pele ressecada.

Depois dos cadáveres serem cerimonialmente encomendados a Mordiggian, o Sacerdote que preside a cerimônia convida os participantes a tomar parte no momento mais importante - a Comunhão. As oferendas são devoradas por inteiro, por isso o ritual demanda um número mínimo de participantes. Os carniçais tem a primazia, em seguida aqueles que estão em processo de transformação e finalmente os humanos, todos obedecendo um chamamento do sacerdote. 

Não é permitido o uso de talheres e utensílios, "a carne só é tocada pelas mãos e bocas". O ideal é que no fim toda carne seja consumida: músculos, órgãos, fluidos e cartilagem. Isso pode demorar algumas horas dependendo da quantidade de sacrifícios e de fiéis presentes. O crânio e alguns ossos maiores, uma vez limpos são recolhidos e usados como adorno nas paredes, altares e colunas do templo formando mosaicos intrincados. 

Não há palavras capazes de descrever o horror que é testemunhar os rituais aviltantes do Culto de Mordiggian. Os comensais descem vorazmente sobre os restos promovendo um espetáculo dantesco de horror antropófago. Garras rasgam a carne tenra e quebram os ossos, presas despedaçam os músculos enquanto bocas ávidas sorvem ruidosamente o tutano. Logo, nada resta do que um dia foram pessoas.     

Além desse ritual sagrado, há uma infinidade de outras cerimônias igualmente repulsivas que invariavelmente culminam em necrofagia. Antes os cadáveres podem ser sujeitos a outras formas de depredação incluindo, mas não se limitando, a mutilação, esfolamento e necrofilia. Ironicamente, embora sejam sujeitos a esses horrores, os cadáveres são considerados instrumentos pelo qual se dá a comunhão com Mordiggian, são, portanto, manipulados com imenso respeito, quase reverência.

Em datas propícias um avatar de Mordiggian pode ser invocado para presidir rituais especialmente significativos. Nestas ocasiões, a congregação se reúne em peso, atraindo cultistas de outras localidades que viajam para participar da cerimônia. Um banquete é preparado com esmero e fausto, por vezes esgotando os dispensários de carne humana, reduzindo as reservas, deixando-as perigosamente baixas. Isso no entanto, não preocupa aos cultistas que veem nesses rituais especiais a oportunidade de vislumbrar, ainda que brevemente um aspecto de seu Deus. Quando o avatar se manifesta é tradicional oferecer ao menos um dos membros da congregação como sacrifício, uma grande honra para o escolhido.

Quando um aspecto de Mordiggian se faz presente ocorre uma grande reação emocional; os cultistas se veem diante de seu Deus afinal de contas. Choro, gritos e histeria dominam a todos. O Deus come primeiro, se alimentando de todos os corpos que desejar antes de partir. Tudo aquilo que restou é considerado abençoado pela congregação, uma demonstração de generosidade para com o seu rebanho.  A conclusão apoteótica dessa festividade é marcada por cantoria, dança e um violento bacanal entre os presentes.

Os cultistas de Mordiggian possuem vasta compreensão do funcionamento do Mundo dos Sonhos e sabem como navegar através dele. Com carniçais ensinando as nuances do sonhar, não é estranho que muitos humanos desenvolvam familiaridade com o saber onírico e explorem essa dimensão. Não é estranho que cultistas empreendam peregrinações até a cidadela de Zul-Bha-Sair no obscuro Continente de Zothique. Muitos deles passam anos imersos em seus sonhos vivendo na cidade e conhecendo os meandros da adoração a Mordiggian, não é estranho também que alguns optem por  viver no Mundo dos Sonhos para sempre.

A essa altura, talvez seja bom falar sobre Mordiggian e seus avatares. Eles será o foco da terceira e última parte dessa série.    

quinta-feira, 7 de março de 2024

O Culto do Deus Cadáver - A Blasfema Seita devotada a Mordiggian


Há uma relação íntima entre cultos ancestrais e a morte.

A razão óbvia é que a morte constitui para nós o derradeiro mistério, o fim de um ciclo e o início de uma jornada espiritual para algo além da realidade material. A compreensão da morte e de seus muitos segredos sempre fascinou a humanidade e fez com que o homem levantasse questionamentos imaginando o que o aguardava além do véu. Inúmeras crenças e filosofias tentaram explicar esse dilema, oferecendo as mais diferentes respostas: do simbolismo karmico à reencarnação da alma, do julgamento final, das recompensas do Paraíso aos tormentos do Inferno, todas as crenças oferecem seu ponto de vista.

Nenhuma fé, no entanto, conseguiu provar que está certa e que sua posição prevalece sobre todas as demais. A verdade nos ilude, talvez ela só possa ser conhecida no momento em que cada um for tocado pela morte. 

No caótico Universo do Mythos, ironicamente, são poucas as divindades que se inclinam sobre os aspectos fundamentais da morte. Talvez isso se explique pelo fato de que tais entidades de poder inimaginável, todas elas imortais, não se interessam em tentar compreender as nuances de algo tão transitório quanto a existência dos mortais. Se tais entes não contemplam a hipótese de seu próprio fim por que deveriam se importar com o fim de seres menores?

A grande exceção talvez seja o Grande Antigo Mordiggian, o Deus Cadáver, o Amante dos Mortos e Habitante dos Sepulcros. Para muitos, ele é a representação corpórea das vicissitudes do corpo, da corrupção da carne e da deterioração definitiva. Ele é um Deus profano que trilha um caminho de podridão, almeja a dissolução de todas as coisas e viceja com a inevitável corrupção da carne. 


O Culto de Mordiggian é incrivelmente antigo, mas ele encontrou aceitação entre os humanos somente em dois momentos: no passado remoto e na Terra dos Sonhos. Para alguns teóricos do Mythos, o continente de Zothique onde Mordiggian é o Deus principal, reside num futuro muito distante e não na Terra dos Sonhos. Lá a cidadela de Zul-Bha-Sair constitui o centro de poder do Culto e onde o Deus hiberna nas profundezas. As teorias são muitas e inconclusivas.

Num primeiro momento, o Culto de Mordiggian foi bem conhecido durante a lendária Era Hiboriana, um período marcado pela barbárie que antecedeu a história corrente. Os templos de ardósia cinzenta dedicados a Mordiggian estavam presente nos reinos centrais, sobretudo na ancestral nação de Koth, em sua vizinha Ophir e na obscura Zamora, terra de muitos deuses. Foi em Shadizar, a obscena capital da Zamora, que o Culto alcançou seu apogeu formando uma seita organizada. Este foi o único momento em que a Igreja de Mordiggian atuou abertamente. 

Os fiéis viam Mordiggian como uma espécie de juiz diante do qual, as almas dos mortais eram julgadas. Cabia a Ele determinar quais almas estavam aptas a gozar das benesses do além vida e quais seriam aprisionadas num labirinto escuro onde dor e sofrimento aguardavam. Para chegar a esse decisão, Mordiggian reclamava para si os cadáveres de seus fiéis. Os restos mortais, acreditavam os cultistas, conservavam os sinais das transgressões terrenas. Através de elaborados rituais fúnebres, o Deus era capaz de divisar qual seria o destino final de cada espírito. Entretanto, a maioria dos seguidores desconhecia no que consistiam esses rituais ou a natureza blasfema da congregação. 

Era segredo que a medonha raça dos Carniçais comandava o Culto e estabelecia as ligações com Mordiggian. Os Carniçais sempre veneraram o Deus Cadáver e cumpriam a função como sacerdotes principais, oficializando ritos e celebrações. Eles vestiam longos mantos de cor púrpura e máscaras prateadas que ocultaram suas feições bestiais. Os carniçais raramente deixavam os Templos exceto para coletar os cadáveres dos devotos que lhes eram entregues de bom grado. Estes eram então carregados para os túneis subterrâneos abaixo dos templos afim de serem preparados para o "julgamento". Isto envolvia um ritual blasfemo no qual os cadáveres eram consumidos num festival nauseante de canibalismo. Tanto Mordiggian quanto os carniçais que o serviam eram insaciáveis e cobiçavam os corpos de todos que morriam. 

Rumores a respeito dos misteriosos rituais e da identidade dos acólitos eram sussurrados pela população, mas ninguém sabia o quão abomináveis eram estes. Supõe-se que em algum momento a verdade veio à tona o que deflagrou uma revolta generalizada. Os templos foram destruídos pelos fiéis e os sacerdotes passados pelo fio da espada.


Mas o Culto de Mordiggian não desapareceu por completo. Quando a Era Hiboriana foi devastada por um Cataclismo de largas proporções, coube aos carniçais preservar a memória de seu Deus e preparar o seu retorno.

O Culto de Mordiggian emergiu em algum momento na Ásia Meridional, no atual subcontinente indiano por volta do século quinto antes de Cristo. É provável que os carniçais tenham sido responsáveis por reintroduzir o Deus aos humanos que o viam como Senhor dos Mortos. Contudo as tradições védicas que moldaram a Civilização do Vale do Indo declararam a crença em Mordiggian uma blasfêmia e proibiram sua adoração. Para sobreviver, os devotos tiveram de manter suas atividades em segredo, realizando suas práticas clandestinamente. Embora o Culto jamais tenha desaparecido por completo na Índia, ele se ramificou através do Sudeste asiático entre os Tcho-Tcho e marchou para o oeste estabelecendo-se no Paquistão, Afeganistão e dali para o Oriente Médio. Os romanos conheceram o Culto quando ocupavam a Judeia e coube a mercadores levá-lo para os confins do Império, ainda que seus seguidores jamais tenham sido numerosos. O Culto emergiu e desapareceu inúmeras vezes em incontáveis lugares. 

É possível precisar quando o Culto de Mordiggian ressurgiu mais expressivamente, graças a ladrões de sepulturas e necromantes na França pelos idos do século XVI. Esse grupo de degenerados aparentemente entrou em contato com os carniçais que habitavam os subterrâneos de Paris e firmaram com eles algum tipo de acordo. Os carniçais introduziram aos humanos os princípios da adoração à Mordiggian e os grupos se complementavam: os humanos supriam os carniçais com informações e tarefas que eles não podiam realizar na superfície, enquanto os carniçais ofereciam os segredos dos sonhos e o dúbio benefício do canibalismo. O renascer do Culto foi bem documentado por François Honore-Balfor, Comte d´Erlett no raro tomo Cultes des Goules, publicado no início do século XVIII.

Pouco depois do lançamento do livro de Balfor, a seita se viu perseguida pelas autoridades. Denúncias levaram os gendarmes a esconderijos e covis onde os membros rendiam homenagem a Mordiggian. As prisões se traduziram em escândalo já que entre os envolvidos com o Culto encontravam-se personalidades na sociedade parisiense interessadas em testar limites e romper com tabus. Apesar de muitos terem sido capturados, outros encontraram refúgio nos subterrâneo da cidade com seus aliados necrófagos.

Os cultistas humanos que deixaram Paris continuaram em constante movimento, escapando e ludibriando as autoridades nos lugares onde escolhiam se instalar. As colônias francesas ao redor do mundo receberam membros da congregação: na América do Norte eles se estabeleceram no Haiti, na Louisiana e partes do Canadá, na África encontraram guarita no Sudão, Argélia e Senegal, enquanto que na Ásia se fixaram na Indochina. Algumas destas células tiveram sucesso, sobretudo aquelas que se beneficiaram da presença de carniçais com quem buscaram firmar aliança. 


Em algum momento os cultistas receberam uma visão, supostamente enviada por Mordiggian apontando uma "Terra Prometida" onde eles poderiam fincar raízes e estabelecer uma fortaleza para professar suas crenças. O local apontado ficava em uma das colônias mais isoladas e remotas do Império Colonial Francês: A Guiana Francesa, na América do Sul. O lugar havia sido ocupado originalmente por dissidentes que escaparam das perseguições em Paris em 1805. Este grupo teve sucesso em se estabelecer nessa região que era tão afastada que permitia a eles se dar ao luxo de atuar quase livremente. As mortes causadas por doenças tropicais eram elevadas e apenas os mais fortes sobreviviam. Nesse ambiente insalubre, a Seita conseguiu prosperar contando com o apoio de membros que empreenderam a transformação definitiva em carniçais. Sendo uma espécie mais resistente do que os humanos, os carniçais podiam lidar mais satisfatoriamente com os inúmeros desafios da colônia.

Por volta de 1865, cultistas vindos de várias partes do mundo começaram a desembarcar na Guiana Francesa após longa e perigosa jornada. Esses peregrinos eram bem recebidos pelo Culto residente que os aceitava entre suas fileiras. Com os recursos do Culto aumentando, os líderes decidiram expandir o que eram meras cabanas e estruturas de madeira em algo mais condizente com o desejo de seu Deus. Eles ambicionavam acima de tudo, construir um Templo para sua divindade, um lugar de acordo com as profecias de que a entidade um dia comandaria milhões. O Culto se inspirou nas visões da Cidadela de Zul-Bha-Sair, na Terra dos Sonhos, para erguer uma estrutura piramidal condizente com suas aspirações estéticas. Eles levaram décadas para construir a estrutura, uma impressionante realização considerando a localidade. No entorno da praça central, surgiram prédios feitos de madeira e pedra onde os cultistas passaram a viver e galerias subterrâneas onde os carniçais habitam em segurança.

Em 1920, a Fortaleza de Mordiggian - nome pelo qual ficou conhecida a cidadela entre os cultistas, estava praticamente concluída. As obras finais se concentravam apenas em melhorar as estruturas habitacionais e capacidade de armazenar suprimentos. Uma das características chave da Fortaleza era um Portal de Oneirologia, criado com um feitiço incrivelmente raro que permitia o trânsito entre o Mundo Desperto e a Terra dos Sonhos. Qualquer pessoa atravessando esse portal emergia na cidadela de Zul-Bha-Sair. O Culto utilizava o portal para viajar facilmente entre dois mundos, garantindo uma fonte de comida e suprimentos que sustentava o Templo em meio às selvas da Guiana Francesa.


Por volta de 1940, aproveitando a situação de grande instabilidade no mundo, o Culto de Mordiggian deu início a um ambicioso plano para expandir o Portal de Oneirologia. O objetivo era realizar uma grande transição, trazendo a Zul-Bha-Sair onírica para o Mundo Desperto e com ela o local onde Mordiggian jazia aprisionado. Com a presença física da entidade no Mundo Desperto, os cultistas esperavam dar o primeiro passo para ganhar poder e influência sobre um mundo mergulhado no Caos da Guerra. A conspiração se baseava em profecias que mencionavam a Segunda Guerra como um tempo de grande perturbação, propício para seus estratagemas frutificarem. Ela teria dado resultado não fosse a intromissão de um grupo de investigadores que conseguiram frustrar os planos. O Portal na Guiana Francesa acabou sendo explodido com dinamite e o Culto se viu seriamente desarticulado depois que seus líderes morreram ou escaparam para a Terra dos Sonhos.

Com a Fortaleza de Mordiggian destruída, os sobreviventes tiveram de buscar outros lugares onde pudessem se esconder, contudo, o Culto jamais se recuperou desse revés. Pequenas células se fixaram no México, Colômbia, Venezuela e Brasil, já que estes lugares atraíram um fluxo de imigrantes no pós-guerra. A França também assistiu o retorno de descendentes dos cultistas que haviam deixado Paris séculos antes. Na década de 1960, aproveitando os Movimentos de contracultura e revoltas ao redor do mundo o Culto de Mordiggian encontrou um solo fértil no Sudeste Asiático. Há boatos não confirmados de que ele se tornou influente no Camboja, com membros da seita ocupando cargos proeminentes no Governo Revolucionário. O Delta Green investigou essas atividades em meados de 1968, acreditando que havia envolvimento de cultistas no Kmer Vermelho. Considerando o genocídio perpetrado naquele país, é possível que os rumores, ao menos em parte, sejam reais.

Nesse novo século, os seguidores de Mordiggian se perguntam o que seu Deus deseja deles e que papel eles irão desempenhar. Há muitas profecias e crenças que compõem sua mórbida doutrina, mas mesmo para eles o futuro parece envolto em mistérios insondáveis.

A seguir, nossa exploração do Culto de Mordiggian prossegue com as medonhas Leis da Necrofilia.