sábado, 31 de julho de 2021

Algo estranho nos céus da Colônia - O Primeiro caso de OVNI nos Estados Unidos


É difícil estabelecer uma data para o início da mania a respeito de OVNI nos Estados Unidos, mas existem algumas narrativas realmente curiosas. O avistamento de Kenneth Arnold em 1947 frequentemente aparece na lista, assim como a suposta queda de um disco voador em Roswell, Novo México, no mesmo ano. Estes são os casos que inauguraram a febre do fenômeno OVNI e deram início a toda moda de "discos voadores". Contudo houve avistamentos e incidentes que vão muito além desses marcos consolidados. De fato, os primeiros relatos de OVNI no país são bem anteriores aos incidentes de Arnold e Roswell. 

Muito mais antigos!

O primeiro avistamento inexplicável envolvendo algo estranho nos céus do Novo Mundo foi testemunhado e documentado no ano de 1639.

No início do século XVII, colonos puritanos ingleses estabeleceram a Colônia de Massachusetts, que se tornou o segundo maior assentamento na Nova Inglaterra, atrás apenas da Colônia de Plymouth. Uma figura muito importante na época era um advogado chamado John Winthrop, que estava encarregado de trazer colonos para a América. Ele serviu como Governador da colônia por 12 anos a partir de 1629 e foi fundador de várias outras comunidades ao longo da Baía de Massachusetts. Winthrop era conhecido como um líder autoritário e uma espécie de fanático religioso (o que na época era tido como algo bom!), contrário à democracia pura, chamando-a de "a pior e mais perigosa forma de governo". 

Apesar disso, ele ainda era um líder e político respeitado que deixou sua marca no início da história dos Estados Unidos, com alguns de seus textos influenciando políticos até os dias atuais. Contudo, um dos aspectos menos conhecidos sobre o sujeito é que ele escreveu narrativas muito estranhas em seus diários, incluindo aquelas que provavelmente são os primeiros relatos sobre OVNIs feitos por europeus no Novo Mundo.

O Governador Winthrop

Escondido entre as páginas de vários relatos mundanos da vida colonial consta uma entrada muito curiosa datada de 1º de março de 1639. Nela Winthrop escreve sobre um incidente muito bizarro e envolvendo um homem chamado James Everell, que ele atesta ser um "discreto, sóbrio homem temente à Deus". De acordo com Winthrop, Everell estava remando com outros dois colegas por uma seção do Muddy River, a cerca de três quilômetros da vila de Charlestown, quando viram uma "grande luz no céu que parecia ir e vir, como se dotada de vontade própria". Ele descreveria o acontecimento da seguinte forma:

"Voava pelo céu, para cima e para baixo em grande velocidade. Por vezes, parava no ar e ficava ali por longos minutos brilhando. Então de repente, precipitou-se velozmente em direção ao chão. Nos aproximamos para ver do que se tratava e descobrimos que tinha cerca de três metros quadrados e que havia pegado fogo; ficamos observando por alguns minutos, então se ergueu do solo e voou velozmente, tão rápido quanto uma flecha em direção a Charlton [Charlestown]. Várias outras pessoas confiáveis viram a mesma coisa subindo e descendo por cerca de duas ou três horas."
 
Os homens alegaram que, após o avistamento, inexplicavelmente se viram transportados cerca de uma milha rio acima, sem nenhuma ideia ou memória de como haviam chegado lá, sem qualquer noção do tempo que havia transcorrido. Este é um detalhe estranho, pois marcaria este incidente não apenas como o primeiro relato de um OVNI nas colônias, mas também o primeiro relato de perda de tempo e possivelmente o primeiro de abdução alienígena. 

Uma das explicações na época era que os homens apenas haviam visto luminosidade de um fenômeno causado pelo gás do pântano, algo denominado ignis fatuus, que é causado pela combustão da matéria orgânica em decomposição. Outros trataram o incidente como a queda de um meteorito. Finalmente, um cético chamado James Savage, acrescentou sua própria nota de rodapé sobre o avistamento em seu diário, dizendo:

"O relato sobre ignis fatuus [luz pálida do solo pantanoso] pode facilmente ser creditado a um testemunho menos respeitável do que aquele que foi feito. Alguma ação do diabo, ou outro poder além dos agentes habituais da natureza, pode ser o responsável, mas provavelmente ele foi imaginado pelos relatores e ouvintes. Já a maravilha de serem carregados uma milha contra a maré demonstra se tratar de mera imaginação. Talvez tenham sido levados, durante o espanto de duas ou três horas, por certa distância, pelo vento ou pela maré, nada mais".

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No final, nem o gás do pântano nem os meteoritos realmente parecem explicar adequadamente o que os homens relataram conforme escrito no diário de Winthrop e, considerando que só é mencionado em uma entrada e aconteceu há muito tempo, provavelmente nunca saberemos com certeza. Mas curiosamente, este não é o único relato estranho encontrado nos diários de Winthrop. 

Cinco anos mais tarde há outra anotação datada de 18 de janeiro de 1644, que faz menção a uma luz misteriosa erguendo-se da água. Esta foi avistada por várias testemunhas, sobretudo barqueiros perto de Boston que se assustaram com o incidente. Esta luz assumiu uma forma "alongada e brilhante" e "voou uma pequena distância sobre a cidade, sendo vista por muitas pessoas antes de desaparecer". 

Algumas semanas depois disso, outra entrada de diário menciona novo relatório ocorrido nos arredores do Porto de Boston, no qual Winthrop descreve:

"Uma luz muito forte surgiu a nordeste de Boston e sobrevoou a Ilha de Nottles. Outras luzes menores também foram vistas circulando sobre ela. Estas se reuniram por alguns instantes antes de se separarem voando na direção da colina da ilha onde sumiram. Essas luzes pareciam lançar chamas e às vezes faíscas que faziam o céu se iluminar. Era cerca de oito horas da noite, já estava escuro e o acontecimento foi testemunhado por muitos que se colocaram nas ruas para observar. Quase ao mesmo tempo, uma luz semelhante foi vista entre Boston e Dorchester segundo diversas pessoas piedosas que trouxeram a notícia. Cerca de 14 dias depois, as mesmas luzes foram vistas por outras pessoas do outro lado da cidade."

Winthrop escreveria mais tarde que as luzes eram provavelmente os fantasmas de marinheiros que haviam morrido em um naufrágio poucos meses antes na Ilha de Nottles. A embarcação havia explodido após um incêndio no armazém de pólvora matando 12 homens. Não se sabe exatamente o que levou o Governador a levantar essa hipótese e correlacionar os eventos. 


Seja lá o que fosse, é um relatório muito bizarro e difícil de classificar. Os incidentes só aparecem nessas entradas e não são mencionado posteriormente, nos deixando sem maiores detalhes. O caso inteiro é muito estranho e nos faz imaginar o que diabos aquelas pessoas estavam vendo. 

Será que há algo de real em alguma dessas narrativas e se sim, o que eram essas luzes afinal de contas? Sabendo da reputação do Governador Winthrop, é difícil acreditar que ele teria inventado tudo isso ou feito algum tipo de piada. 

As misteriosas luzes sobre a Colônia de Massachusetts provavelmente jamais serão corroboradas ou explicadas satisfatoriamente, mas constituem uma fascinante estranheza histórica creditada como o primeiro avistamento de algo inexplicável nos céus do Novo Mundo.

quarta-feira, 28 de julho de 2021

Espírito da Vingança - A criação do Tupilaq e do Tuumbaq



A vida dos Inuit  é uma forma de existência bastante precisa. Essas tribos habitantes do Ártico em especial o Norte do Canadá e Groenlândia, estabelecem uma harmonia com a natureza, vital para sua sobrevivência em um ambiente extremamente hostil. Aprender a não desperdiçar nada e respeitar as normas sociais é a primeira e mais importante lição. Divergir dessas leis ancestrais não apenas constitui um tabu, mas representa um perigo para o equilíbrio e sobrevivência da tribo.

Um bom exemplo das regras dos Inuit diz respeito a uma de sua principais atividades: a caça. O caçador não é simplesmente um agente que mata uma presa para se alimentar dela. Ele aprende desde cedo que matar um animal constitui uma troca, na qual o indivíduo ou a tribo se beneficiam do ambiente, tirando dele um elemento importante, algo que precisa ser reparado ou atenuado. As armas são fabricadas atendendo determinados princípios, elas não devem ser cruéis e a morte não pode ser excessivamente dolorosa para o animal. O caçador não deve caçar determinadas presas quando é tempo de procriação e jamais abater a mãe ou os filhotes sobre sua proteção. Quando a presa abatida é trazida para a aldeia, o caçador deve tratá-la de maneira respeitosa. Cada parte do animal abatido, seja uma foca, uma morsa, um caribou ou um urso deve ser aproveitada, nada pode ser desprezado para não enfurecer os espíritos da natureza. Um caçador que mata indiscriminadamente, sem motivo ou necessidade arrisca o equilíbrio e atrai a desgraça sobre si mesmo.    

A religião Inuit acredita que há uma infinidade de espíritos habitando o mundo e que estes podem ser tanto benéficos quanto maléficos dependendo de como um indivíduo ou grupo se relaciona com eles. As tribos compartilham de lendas e de um folclore bastante rico. Todas as coisas que possuem um nome, tem um espírito, e este é liberado após a morte ou destruição física, ficando livre no mundo. Um alce, uma geleira, uma árvore ou mesmo uma pedra podem ter espíritos que devem ser apaziguados para evitar repercussões. O espírito de uma árvore antiga que é cortada para se tornar lenha é abrandado por orações cujo objetivo é justificar sua destruição. O objetivo é que o espírito compreenda a necessidade e que possa renascer em outra forma.


Os Inuit possuem seus xamãs, os responsáveis por compreender a natureza e interpretar a vontade dos espíritos. Eles praticam rituais que permitem comungar com o mundo astral: abrir comunicação com os espíritos, entender as demandas e banir as manifestações que se tornam vingativas. Também cabe a eles construir totens, artefatos mágicos e amuletos de proteção usados em inúmeros rituais. Não por acaso, o xamã é um dos indivíduos mais respeitados de uma tribo e peça essencial para o funcionamento da sociedade.
    
Mas nem sempre esse equilíbrio harmônico é respeitado, pois existem aqueles que fazem mal uso da magia e distorcem a relação entre o mundo real e o espiritual. Para todos os efeitos, estes são o que podemos compreender como feiticeiros.

Os Feiticeiros Inuit, os Angakkuq, realizam rituais que permitem afetar outras pessoas, controlar o ambiente e principalmente escravizar os espíritos fazendo com que eles os sirvam. Dentre os mais temidos rituais de feitiçaria encontra-se algo conhecido como Tupilaq, um ritual que permite criar e controlar um espírito vingativo de pura maldade e força destrutiva.


O Tupilaq é construído usando como matéria prima partes de animais selvagens em especial ossos, tendões, pelo e pele de criaturas do ártico. As partes são combinadas em uma forma híbrida grande e aterrorizante com chifres, presas e garras. O corpo pode ser complementado com neve, madeira e pedras, mas boa parte da estrutura deve vir de seres vivos. Há casos em que o Tupilat (o singular para Tupilaq) é criado com cadáveres de homens, mulheres e crianças, o que concede a eles uma aparência ainda mais bizarra ao conceder à criatura características antropomórficas combinadas a aparência geral de um caribou, lobo ou urso.

A construção do Tupilat se inicia com um ritual no qual o feiticeiro tenta ocultar sua identidade dos espíritos que serão invocados. Para isso, ele cerimonialmente veste sua anorak (o traje típico dos inuit) ao contrário, com o capuz cobrindo sua face. No corpo são traçados desenhos geométricos e símbolos de proteção, produzidos com as cinzas de ervas e animais queimados numa pira. O feiticeiro toma o cuidado de escolher um lugar afastado, já que sigilo absoluto é uma das condições para esse ritual ocorrer. Ademais, uma das primeiras ações do Angakkuq é empreender contato sexual com as partes que vão constituir sua criação. Basicamente, ele precisa derramar seu sêmen repetidas vezes sobre o Tupilat para assim conceder a ele "vida". Cantar e proferir palavras mágicas e versos de poder também é parte essencial do ritual que pode levar vários dias.

Segundo a tradição, o ritual de criação do Tupilaq é tão potente que desencadeia efeitos danosos em toda região onde ocorre. Mulheres grávidas sofrem abortos espontâneos, crianças contraem doenças,  homens são vítimas de acidentes e animais se tornam especialmente ferozes. Uma série de incidentes inexplicáveis podem ser indicativo de que um Angakkuq está criando um Tupilaq, acontecimento que causa grande preocupação entre os Inuit.


A fase seguinte da criação do Tupilaq envolve atrair e prender um ou mais espíritos dentro do simulacro. Os espíritos são atraídos por uma combinação de canto, dança e a queima de ervas medicinais em uma fogueira ritualística. O feiticeiro escolhe qual o espírito que deseja escravizar, sendo que cada um parece ter uma serventia específica: o espirito de um lobo se traduz em ferocidade, o do Caribou resistência, o do Urso força e assim por diante.

O espírito aprisionado no Tupilaq faz com que o simulacro ganhe vida e se torne imediatamente compelido a servir o Angakkuq. Esses monstros estão associados a atos de vingança, sendo criados principalmente com o intuito de matar um ou mais desafetos do feiticeiro. O Tupilat também pode ser criado para proteger uma floresta, um rio ou um determinado território. O folclore Inuit dita que a criatura tentará cumprir o seu propósito e que sua existência está condicionada ao feiticeiro que o aprisionou. Se o feiticeiro morrer, o espírito é liberado e o simulacro se desfaz.

O mito afirma ainda que existe um grande risco para quem cria um Tupilaq. Se a pessoa que o monstro for enviado para matar tiver poderes mágicos superiores ao seu criador ou de alguma forma o alvo o derrotar em combate, o Angakkuq perde o comando sobre a criatura. Seu primeiro ato então é se voltar contra seu criador.

O Tupilak é um monstro cuja ferocidade e sede de sangue não conhecem limites. Ao caçar um indivíduo ele não para por nada, seu único propósito é rastrear, perseguir e matar o alvo. Seu ataque deixa, em geral, um cadáver mutilado por mordidas e garras afiadas e todos aqueles que tentam ficar em seu caminho também são passíveis da sua fúria.


O mito também esta relacionado ao lendário Tuumbaq, um monstro criado pelos desígnios malignos do Deus dos Mares, Sedna. Em uma fábula Inuit, Sedna criou o Tuumbaq - de forma semelhante a como os Tupilaq são criados pelos feiticeiros. O Tuumbaq assumiu a forma de um monstruoso Urso Polar e foi enviado para lutar com divindades rivais de Sedna. Essa batalha durou 10,000 anos e não teve vencedor. Eventualmente o Tuumbaq conseguiu se libertar do comando de seu criador e veio parar no mundo dos homens. 

Ele passou gerações caçando os Inuit e devorando suas almas, até que os xamãs treinaram pessoas com capacidades místicas, os sixam ieau, para trazer comida para o Tuunbaq e ganhar sua confiança.  Eles prometeram que nenhum ser humano invadiria seu território sagrado que dependendo da fonte fica em diferentes lugares do estremo norte. Segundo a tradição, os sixam ieau demonstram sua devoção removendo a própria língua em uma idade muito jovem, tornando-os incapazes de se comunicarem com qualquer pessoa que não seja o Tuunbaq. Os mitos assumem em algumas versões assumem que o Tuunbaq foi o primeiro e mais poderoso dos Tupilaq.

Uma das explicações metafísicas para a destruição da Expedição Franklin (1845) é que os brancos ignoraram os avisos dos Inuit de que estavam entrando no território sagrado do Tuumbaq. Os xamãs e sixam ieau tentaram avisar os forasteiros de que sua presença atrairia a fúria do Tuumbaq e que este não iria tolerar invasores. O Tuumbaq teria atacado a expedição fazendo vítimas fatais, levando terror e paranoia ao coração da tripulação dos Erebus e Terror. Mais do que um simples animal, o Tuumbaq das lendas é considerado o predador perfeito: uma besta criada por um Deus e portanto dotada de inteligência, força e resistência. Ele é também praticamente indestrutível, capaz de entrar e sair do mundo espiritual, tornando-se invisível e não deixando rastros de sua passagem.

Para os Inuit, nada no mundo se assemelha à fúria do Tuumbaq.

NOTA: Nesse artigo usamos o termo Inuit para endereçar os povos que vivem nos territórios mais setentrionais da Terra. O nome esquimó, criado por exploradores franceses, significa "comedores de carne crua", e é considerado pelos povos dessa região como ofensivo.

domingo, 25 de julho de 2021

Erebus e Terror - O Horrível destino da Expedição Franklin (parte 2)


O destino da Expedição Franklin, ou o que havia restado dela após seus últimos e dramáticos momentos saudava o médico e explorador John Rae. Ele era o primeiro a contemplar aquele cenário dantesco e seus olhos dardejavam de um horror para outro. Eram as evidências factuais de toda loucura e horror que havia se apoderado daqueles pobres diabos.

Haviam corpos espalhados pelo perímetro inteiro, estavam simplesmente descartados aqui e ali na tundra sem que ninguém tivesse tido o cuidado de enterrá-los. Algumas tendas ainda estavam de pé, mas o barco que o grupo arrastou com cordas até aquele ponto havia sido virado. Muitos dos cadáveres apresentavam horríveis sinais de mutilação produzidas com faca e machadinhas. O cenário evidenciava um caos reinante no qual civilização cedeu espaço à barbárie na vã tentativa de sobrevivência.

A equipe de Rae investigou com cuidado os restos e contou 30 cadáveres no campo. Aparentemente os homens haviam morrido lentamente no decorrer do inverno. A causa foi inanição, mas no esforço de viver eles tentaram de tudo. Nas panelas encontraram restos humanos cozidos e uma macabra caixa que serviu de depósito para as porções de carne fatiadas dos companheiros mortos. A visão evidente do tabu máximo, o canibalismo, sendo cometido, deixou os homens de Rae aterrorizados. Alguns não quiseram prosseguir na investigação e se afastaram para esperar os demais concluírem a arrepiante tarefa. Recolheram alguns artefatos para confirmar a procedência dos objetos e enterraram os cadáveres.    

Rae relatou: "Pelo estado de mutilação de alguns cadáveres, e o conteúdo dos potes e caixas, fica claro que nossos pobres compatriotas foram levados ao último recurso - o canibalismo como forma de prolongar sua existência".

O médico não fez menção imediata ao caos que evidenciava uma luta entre membros da tripulação. Mas esta parecia clara aos olhos de Rae. Muitas das mortes pareciam ter sido provocadas após uma disputa dentro do bando que já não respondia a hierarquia ou graduação de comando. Talvez uma discussão pela divisão de suprimentos ou outra razão menor tivesse sido o estopim da querela. Não havia como saber.


A narrativa trazida por Rae causou grande consternação quando chegou à Inglaterra. Embora o almirantado estivesse aliviado, pois podia parar as buscas, a notícia era péssima. Lady Franklin e o Conselho Ártico estavam chocados, não apenas pelas mortes mas principalmente pelo canibalismo. Diante daquelas notícias eles fizeram a única coisa razoável: eles duvidaram da narrativa e evitaram receber Rae. Mesmo apresentando as provas obtidas, não foi o suficiente para convencer os amigos e parentes dos membros da Expedição - era algo funesto demais. 

Contrariando toda a lógica, Lady Franklin levantou fundos para uma nova Expedição que segundo suas palavras "provaria a verdade dos fatos". A essa altura, 15 anos após o desaparecimento do marido, ela estava certa de sua morte, mas não estava disposta a acreditar nas circunstâncias aviltantes de seu fim.  

O navio à vapor Fox, liderado pelo Capitão Leopold MacClintock foi despachado para o Ártico e serviu de base para equipes que se distribuíram por terra, cobrindo a vastidão gelada com trenós puxados por cães. Eles seguiam os rumores relatados a Rae e buscavam qualquer indício do acampamento final da tripulação. Quase por milagre, um destes grupos localizou uma série de documentos e mensagens deixadas sob um monte de pedras em Victoria Point. Estes papéis forneciam informações sobre o progresso da expedição. Entre essas mensagens estava a trágica notícia de que o próprio Comandante Franklin havia morrido em circunstâncias desconhecidas. A mensagem dizia:

25 de abril de 1848 - Os navios HM Terror e Erebus foram abandonados no dia 22 de abril, 5 léguas NNW deste, tendo sido assediados desde 12 de setembro de 1846. Os oficiais e tripulações, consistindo de 105 almas, sob o comando do Capitão Crozier, acampou aqui em latitude 69° 37 '42 N, longitude 98° 41' W. 

Sir John Franklin morreu em 11 de junho de 1847; e a perda total por mortes na expedição foi até esta data de 9 oficiais e 15 homens.

Assinado pelos Capitães Crozier e Fitzjames do Erebus.


A expedição Fox também encontrou vários pertences da Expedição perdida no que pareciam ser acampamentos provisórios ao longo de quilômetros. Os objetos foram sendo abandonados ao longo do caminho, bem como sepulturas escavadas na tundra. 

Na Ilha de King William a equipe fez outra estranha descoberta, um depósito de provisões enterrado na neve contendo trenós, comida, roupas e equipamento. Tudo havia supostamente sido abandonado ali por uma tripulação extenuada que não suportava carregar nada além do considerado imprescindível. Em outro depósito, contudo, cerca de 10 quilômetros adiante, Fox achou vários itens não essenciais, como livros, lenços de seda, sabonete perfumado, esponjas, chinelos, pentes de cabelo e colheres de chá. Havia também muitas latas de carne em conserva fechadas, o que também era uma coisa estranha de se encontrar, considerando que os homens, àquela altura estariam morrendo de fome. Era um mistério o que teria acontecido ali.

Pouco mais de dois quilômetros adiante, havia outra descoberta sinistra os aguardando. Os restos de um barco amarrado a um trenó improvisado continha dois cadáveres horrivelmente mutilados por animais selvagens e pelo vento polar. Um dos cadáveres estava sem a cabeça, no outro faltava o braço e boa parte do flanco pelo qual escorriam as entranhas mordiscadas por animais selvagens. A cena era medonha e deixou a equipe do Fox apavorada. Mais adiante haviam outras latas de carne descartadas, o que novamente chamou a atenção do grupo de resgate. Ninguém perto de morrer de fome descartaria comida daquela maneira.

Exaustos física e mentalmente, McClintock e a tripulação do Fox voltaram ao navio e partiram para a Grã-Bretanha no dia 6 de agosto, chegando em Londres no dia 21 de setembro de 1859, com três membros da tripulação original a menos. 


A busca por Franklin havia terminado no que dizia respeito ao Almirantado, aquilo era o fim. Entretanto, persistia a dúvida sobre o que havia causado a tragédia.

Embora o destino exato da expedição Franklin e a causa de seu declínio não pudessem ser discernidos, as várias descobertas e peças de evidência coletadas pelas equipes de resgate permitiram que uma provável cronologia tomasse forma. 

Assume-se que, em 1846, o Erebus e o Terror encontraram condições ideais de mar aberto logo após adentrar o estreito de Lancaster. Com um clima agradável na chegada e um inverno menos severo, a tripulação passou o primeiro inverno acampada na Ilha Beechey. Depois disso, o acampamento foi repentina e inexplicavelmente abandonado. O mais estranho é que a expedição abandonou na praia uma pilha de dejetos incluindo pelo menos 700 latas de comida cheias de cascalho, assim como os túmulos de três tripulantes.

Após o primeiro inverno, os dois navios partiram para o sul, para Peel Sound e o Estreito de Franklin, mas foram pegos por mau tempo e gelo. O gelo começou a se formar ao redor dos navios e em pouco tempo ambos ficaram aprisionados. Basicamente, as embarcações se tornaram prisões de gelo. Por um ano e meio, as tripulações viveram confinadas dentro das embarcações em meio a um frio intenso, longe de qualquer sinal de civilização, até que finalmente tomaram uma arriscada decisão. Concluíram que se ficassem no navio acabariam morrendo de fome, decidiram se colocar a andar em 26 de abril de 1848. 

O acampamento em Beechy island ontem e hoje

Naquela altura, 24 homens já tinham perecido por diferentes motivos, incluindo o próprio Comandante Franklin. Os 105 homens restantes, muito abatidos e famintos, partiram por terra em direção ao Grande Rio dos Peixes, um lugar do qual haviam ouvido falar através de caçadores inuit com quem estabeleceram amizade. Os Inuit os avisaram que a travessia seria extremamente difícil e que se eles fossem pegos nesse deserto durante o inverno, suas chances de sobrevivência seriam quase nulas. O plano era atravessar o território levando dois barcos à remo que eram empurrados pelo grupo. Ao atingir o outro lado, com sorte eles conseguiriam chegar ao mar e iniciar a volta para casa. Seria necessário mais um pouco de sorte para que alguém os recolhesse depois de atingir alguma rota seguida pelos baleeiros.

A travessia por terra deve ter sido especialmente árdua, os homens provavelmente se revezavam puxando e empurrando o pesado bote que levava os suprimentos. O grupo construiu vários acampamentos provisórios e muitos homens foram ficando pelo caminho. Já no limite de suas forças, vítimas de inanição e esgotados mentalmente, a tarefa deve ter sido uma verdadeira provação. Há indícios de que tenha havido deserção e que alguns homens decidiram se separar e tentar a sorte sozinhos ao invés de carregar os feridos e doentes. 

Os grupos fizeram o possível para atingir o outro lado da ilha, mas quando ficou claro que não teriam como atingir o objetivo antes da chegada do inverno, se conformaram em construir um acampamento. Deve ter sido uma perspectiva aterrorizante montar o campo sabendo que dificilmente conseguiriam sobreviver ao que estava por vir. Para piorar, o inverno foi incrivelmente atroz.

Em meio a essa situação periclitante, não é de se estranhar não ter havido registros escritos. Os homens levados aos limites já deviam contemplar que a carne de seus companheiros seria a tentativa final para sobreviver ao inverno. Não querer discorrer sobre isso é perfeitamente compreensível.

Na ausência de informações, a única evidência vem das muitas histórias dos nativos sobre homens brancos morrendo de fome no gelo e sua queda na antropofagia. Alguns relatos falam de grandes navios afundando e outros sugerem que alguns membros da tripulação viveram entre as tribos por até um ano. É incerto exatamente o que aconteceu com esses sobreviventes remanescentes, mas é evidente que todos eles pereceram gradualmente de uma forma ou de outra em algum ponto durante sua jornada por terra através do deserto gelado.


O destino final da expedição Franklin e dos navios Erebus e Terror, tornou-se um dos grandes mistérios históricos do século. Várias teorias foram apresentadas ao longo dos anos sobre o que aconteceu aos homens condenados depois que eles seguiram para o interior. Uma das teorias mais comuns é que eles simplesmente morreram de fome, mas foi apontado que ainda havia suprimentos de comida enlatada encontrados no acampamento. As tribos esquimós da área não eram contrárias ao comércio com forasteiros, então porque motivo os homens não os procuraram para realizar uma barganha? Certamente muitos morreram de fome, frio, doenças como pneumonia ou acidentes, mas parece estranho que todos os 105 homens tenham morrido em tão pouco tempo, considerando que expedições árticas anteriores tivessem sobrevivido a condições similares. 

Uma teoria que se tornou muito popular é que os homens sofreram problemas de saúde devido à ingestão de alta concentração de chumbo nos alimentos enlatados. As provisões de comida enlatada da expedição foram preparadas às pressas e as tampas das latas seladas à baixo custo pelo fornecedor com invólucros de chumbo. Acredita-se que essa solda permitiu que o chumbo penetrassem na comida e causasse complicações. Os sintomas clássicos de envenenamento por chumbo incluem náusea, dores crônicas nos rins, desorientação e confusão mental, mas em casos graves pode ocasionar coisas ainda mais graves, como alucinações. 

Isso poderia explicar algumas das bizarras decisões tomadas pela tripulação, como arrastar trenós pesados ​​por terra carregados de itens desnecessários, como livros, lenços de seda e talheres, bem como a recusa em abrir algumas das latas de carne mesmo quando a fome os havia dominado ao ponto do canibalismo. Certamente, tal deterioração mental teria prejudicado muito as chances de sobrevivência. A comida enlatada mal preparada também foi responsabilizada por causar um surto de botulismo entre a malfadada tripulação, o que só teria servido para acelerar sua condenação iminente.

Outras teorias afirmam que os sobreviventes se envolveram em uma disputa com as tribos Inuit ou mesmo entre si, o que poderia explicar as terríveis descobertas dos corpos mutilados e esqueletos sem cabeça. Submetidos a confusão mental, os homens podem ter se voltado uns contra os outros em um frenesi homicida. Sem as leis da civilização, as coisas saíram do controle rapidamente.


No final, foi provavelmente uma combinação de fome, doença, condições extremas e desnutrição que conspirou para dizimar a tripulação, mas as circunstâncias exatas e as descobertas bizarras em torno das mortes nunca foram completamente explicadas. Além disso, muitos dos corpos nunca foram recuperados e permanecem até hoje em algum lugar daquele deserto gélido.

Quanto ao paradeiro dos próprios navios, há muito se pensava que eles teriam se partido no gelo irregular do Ártico e afundado. Várias buscas foram realizadas ao longo dos anos em busca de destroços dos navios, com grandes faixas do leito marinho do Ártico meticulosamente procurado por quaisquer sinais deles. 

Finalmente em setembro de 2014, uma expedição batizada de "Victoria Strait" encontrou um dos navios de Franklin no leste do Golfo Queen Maud, a oeste da Ilha O'Reilly. Inicialmente não estava claro qual navio havia sido encontrado, mas posteriormente descobriram tratar-se do Erebus que estava bem preservado e praticamente intacto.

Quase exatamente dois anos depois, no dia 11 de setembro de 2016, um navio naufragado foi encontrado a cerca de 24 metros de profundidade em uma baía ao sul da Ilha King William. Ele foi inspecionado por um pequeno veículo submersível operado remotamente que constatou ser aquele o Terror, também num estado de preservação notavelmente intacto. Haviam pratos, latas nas prateleiras e os painéis de vidro de três das quatro janelas da cabine de popa ainda intactos As descobertas indicam que o navio afundou lentamente depois de ser fechado e preparado para o inverno.

O Terror foi encontrado cerca de 90 quilômetros mais ao sul de onde se pensava ter sido esmagado pelo gelo marinho. Sua localização e estado muito bem preservados indicam que alguns membros da tripulação podem ter fechado o navio e então tentado navegar para o sul afim de escapar de sua situação, sem obter sucesso na empreitada.


Um dos maiores mistérios da expedição perdida de Franklin é a completa falta de registros escritos, exceto os poucos documentos encontrados no monte de pedras em Victoria Point. Por que não havia mais documentação sobre uma expedição tão importante? A prática comum da época ditaria que cada navio tivesse dois conjuntos de registros duplicados descrevendo todas ocorrências relevantes à bordo, então, para onde foi tudo isso? Acredita-se que tais papéis devam existir em algum lugar, mas até agora nenhum foi encontrado e eles parecem ter sofrido o mesmo destino misterioso que tudo o mais na expedição. É provável que o conteúdo de tais diários nunca seja conhecido. É uma pena, já que tal arquivo documental esclareceria muito sobre o caso.

A Expedição perdida de Franklin apresenta muitas perguntas e poucas respostas. Ela se tornou com o passar do tempo um dos episódios de descobrimento mais famosos e debatidos. Um símbolo emblemático de uma época em que os homens acreditavam ser os senhores do mundo e sobre ele declaravam posse. O legado do Expedição Franklin talvez seja colocar em perspectiva nossa própria fragilidade diante da inclemente força da natureza e mais... das forças do próprio destino. 

quinta-feira, 22 de julho de 2021

Terror e Erebus - A Jornada de Horror da Expedição Franklin (parte 1)


"Não está aqui: o Norte branco tem os seus ossos;
E tua heroica alma de marinheiro, segue em viagem mais feliz
 agora em direção a nenhum Polo terrestre".

- Alfred, Lord Tennyson,
inscrição no memorial a Sir John Franklin 
na Abadia de Westminster
Nós humanos, como espécie, sempre tivemos um forte impulso que nos levou a explorar o mundo em que vivemos. Seja por terra, pelos mares ou mesmo no espaço, temos uma vocação natural que nos compele a conhecer à fundo nosso mundo e um desejo instintivo de tocar seus limites. É uma necessidade quase irresistível de saber o que além da próxima colina, em torno da próxima onda e, de fato, além do próximo planeta. É esse espírito empreendedor de exploração que vibra no coração de nossa civilização, um motor de iluminação que no passado impulsionou o avanço rumo aos recantos mais distantes e que resultou em realizações humanas impressionantes.
Nos anais das grandes explorações, existiram aqueles que tiveram sucesso em seus esforços para expandir nosso mundo. Que traçaram mais adiante as fronteiras mapas do que anteriormente conhecíamos e que preencheram os vazios nos mapas. Contudo, houve outros que, embora tivessem grandes aspirações, não conseguiram cumprir seus objetivos. Desapareceram nas selvas do mundo, sumiram nos mares distantes ou foram tragados da existência por forças além de sua capacidade. Estes nunca mais voltaram. 
Em muitos casos, essas expedições perdidas, marcadas pela tragédia e circunstâncias de sua condenação tornaram-se mistérios duradouros. Mistérios estes que perduram além daquilo que esperavam descobrir. Um dos casos mais emblemáticos entrou para a história como a Expedição Franklin, que em 1845 navegou da Inglaterra para o grande frio do norte, nas bordas de nosso mundo para nunca mais ser vista ou ouvida novamente.

A expedição foi lançada na primavera de 1845, com o objetivo de tentar encontrar a lendária Passagem do Noroeste. Já em 1845, havia uma grande preocupação em encontrar ao norte uma rota navegável alternativa que ligasse os oceanos Atlântico e Pacífico. O caminho, cuja existência era apenas presumido era chamada de Passagem Noroeste. Sua descoberta seria de extrema importância, ligando os mares e possibilitando viagens mais curtas até os ricos mercados orientais. Até então, a única maneira de chegar ao Pacífico vindo do Atlântico era uma longa e perigosa jornada ao redor do Cabo Horn, no extremo sul do Chile, na América do Sul, ou a igualmente traiçoeira passagem ao redor do Cabo da Boa Esperança na África. Se alguém pudesse encontrar outra maneira de cruzar do Atlântico para o Pacífico, poderia abrir uma rota comercial alternativa muito lucrativa para o Oriente e as ilhas das Especiarias, e isso valeria uma enorme fortuna. 
O esforço para sua descoberta capturou a imaginação dos exploradores do Ártico por séculos e alimentou muitas expedições para encontrá-la. Desde o século XV, antes mesmo da América ser descoberta, navegadores já conjecturavam a existência da passagem, mas a sua busca continuou por boa parte do século XIX. Os britânicos, em particular, estavam convencidos de que tal rota existia e, nos idos de 1890, estavam absolutamente obcecados em encontrá-la. Aquilo se tornou motivo de orgulho nacional.
A Expedição Franklin seria a mais ousada e planejada das expedições visando encontrar a Passagem Noroeste. Contaria com mapas desenhados por exploradores e intérpretes que conversaram com esquimós que viviam naquela região extrema. A Expedição seria chefiada por John Franklin, um marinheiro e explorador experiente que ingressou na Marinha Real aos 16 anos e lutou com distinção nas Guerras Napoleônicas. Franklin era tido como um dos melhores comandantes navais da Marinha Real Britânica, havia completado três viagens bem-sucedidas para mapear a costa norte do Canadá e o nordeste do Alasca. Tinha portanto vasta experiência em mares gélidos, onde abundavam os perigos manifestados por icebergs, tempestades e nevascas. Além disso, recebeu o título de cavaleiro por seu trabalho e serviu como vice-governador da Terra de Van Diemen (agora conhecida como Tasmânia, Austrália) antes de retornar à Inglaterra para explorar o Ártico. Franklin sempre foi obcecado pela ideia da Passagem Noroeste e queria encontrá-la de uma vez por todas; seria a conclusão de sua carreira com chave de ouro. 

No centro da expedição estavam dois enormes navios, o Erebus e o Terror, embarcações que provaram sua coragem na exploração da Antártica e que desafiaram climas e temperaturas inclementes. Ambos foram originalmente naves de guerra, concebidas como navios de bombardeio, embarcações que carregavam morteiros e que precisavam ser naturalmente resistentes. Os dois transportariam um total de 24 oficiais e 110 marinheiros. O Erebus seria comandado por James Fitzjames e o Terror foi colocado sob o comando de Francis Crozier, enquanto toda a expedição estava sob a liderança experiente do próprio Comandante Franklin. Apesar de ter completado os 60 anos, idade considerada bastante avançada para esse tipo de aventura, não havia dúvidas de que ele era o homem para a missão.
Os preparativos para a expedição foram bem coordenados desde sua concepção. Tanto o Erebus, que tinha 19 anos de serviço, quanto o Terror, que acumulava 32 anos, eram navios antigos, mas que passaram por extensas reformas para transformá-los em naves mais resistentes e modernizadas. Eles receberam novos mastros reforçados, lemes retráteis e hélices de parafuso, uma inovação nos navios árticos. Instalaram ainda novos motores a vapor extremamente potentes, que eram tecnologicamente o que havia de mais avançado para a época. Os navios também foram equipados com recursos modernos: arcos reforçados com grossas vigas de ferro, a fim de torná-los capazes de suportar os rigores dos mares gelados e um dispositivo de aquecimento interno movido a vapor para manter a tripulação sempre aquecida. A expedição inteira também foi muito bem abastecida com alimentos conservados e enlatados que deveriam durar 3 anos, um estoque de lenha e carvão para queimar, água potável, barris com suco de limão, uma infinidade de cobertores e uma extensa biblioteca, bem como vários outros luxos.
Com todo equipamento de alta tecnologia em ordem, os navios de última geração estavam prontos para a ação. O Erebus e o Terror partiram rumo à glória, deixando o Porto de  Greenhithe, na manhã de 19 de Maio de 1845. A primeira parada foi na Escócia para receber mais uma carga de provisões antes de cruzarem o Atlântico, rumo aos mares frios do Ártico, águas traiçoeiras jamais mapeadas, em busca da descoberta que mudaria o mundo para sempre. 
Com preparativos e equipamentos tão impressionantes e sob a liderança de homens que eram versados ​​na exploração do Ártico, ninguém imaginava que algo pudesse dar errado. Enquanto uma multidão de pessoas se reunia nas docas para vê-los partir, certamente ninguém suspeitou que o Erebus e o Terror estavam destinados a se tornar um dos maiores mistérios da história.


Não demorou muito para que a Expedição de Franklin fosse rapidamente envolvida por um turbilhão de problemas e infortúnios que se iniciaram tão logo eles deixaram sua pátria natal. Os navios estavam lotados até o limite da capacidade com 65 tripulantes cada, resultando em condições de aperto que acarretavam numa tripulação irritada, propensa a discussões e brigas. A conduta desordenada prevalecia à bordo, o que Franklin, um capitão á moda antiga, não tolerava. O comandante era notoriamente rigoroso quanto a palavrões e embriaguez, e cinco tripulantes foram mandados para casa por beber e praguejar quando os navios pararam para comprar provisões na Escócia antes mesmo de cruzarem o Atlântico. Não era um bom sinal do que estava por vir. 

A viagem transcorreu com um moral surpreendentemente baixo desde o início. Alguns homens reclamavam do salário, que embora fosse superior ao soldo habitual, previa um tempo de serviço indeterminado, afinal, ninguém podia dizer quanto tempo demoraria a missão. Os supersticiosos se queixavam que deixar em branco o espaço onde constava data de retorno atraía má sorte. À despeito disso, Franklin zelava por manter a disciplina. Ele levou os navios através do Atlântico Norte até a baía de Disko, na costa oeste da Groenlândia. Lá embarcaram carne bovina fresca, frango defumado, linguiça e outros suprimentos. Também seria a última oportunidade para a tripulação escrever cartas endereçadas para casa.

A expedição seguiu a rota de Lancaster Sound, onde planejavam começar sua investida em território desconhecido. Eram águas misteriosas que eles estavam prestes a enfrentar. Até aquele ponto, várias expedições ao Ártico haviam gradualmente mapeado porções da região, mas restavam cerca de 181.300 km2 de território jamais navegado e nunca mapeados e era este vasto e desconhecido território que a Expedição estava adentrando. 

Em 26 de julho de 1845, o Capitão Dannert, mestre do baleeiro Príncipe de Gales, avistou os dois navios na Baía de Disko, esperando por condições mais claras para adentrar o estreito de Lancaster. Seria a última vez que alguém de sua terra natal os veria com vida. 


Dannert escreveu em seu diário:

"Cruzamos com o Erebus e Terror aportados e já carregados com as provisões. Os marinheiros vieram para o tombadilho nos saudar agitando lenços e pedaços de pano. Ficaram felizes com a presença de compatriotas, o que pareceu aliviar os ânimos à bordo daqueles enormes navios. Ainda assim, era a tripulação mais sisuda que já vi, homens tristonhos, como se estivessem incertos quanto à missão diante deles. E não é para menos! Não sabiam o que encontrariam mais adiante, a única certeza é que teriam gelo, ventos causticantes e um clima inclemente. Nenhum dos meus comandados os invejava e posso dizer que eu tampouco gostaria de trocar de lugar com qualquer um deles".

Ao deixar o porto, os navios sumiram da história e se tornaram parte das lendas. 

Quando nenhuma notícia foi ouvida sobre a expedição por mais de dois anos, seus patrocinadores na Inglaterra ficaram temerosos. Não havia uma data pré-estabelecida para o retorno, mas ninguém imaginava que eles ficariam tanto tempo sem notícias. Não seria a primeira vez que navios acabavam presos no gelo, incapacitados de retornar. A expedição tinha suprimentos para três anos não mais que isso, o que começou a causar preocupação em parentes e amigos.

A esposa do comandante, Lady Jane Franklin, ficou obcecada por encontrar seu marido, ou ao menos saber de seu paradeiro. Ela usou contatos políticos e pressionou o Almirantado para que tomasse uma atitude. Um grupo, o Conselho Ártico, foi formado para estudar a situação. Este organizou a primeira missão de resgate em 1848. O objetivo era determinar o que havia acontecido. A Marinha não poupou despesas nesse resgate, recrutando todos os navios disponíveis na caçada à Expedição de Franklin. Uma vultuosa recompensa no valor de 20 mil libras chegou a ser oferecida para quem encontrasse o grupo, outros 10 mil para quem trouxesse informações e mais 10 pela descoberta da Passagem Noroeste. Isso obviamente atraiu muitos interessados; apenas em 1850, uma dúzia de navios partiram para tentar encontrá-los. 




Impelidos pela curiosidade e promessa de recompensa, várias expedições seguiram rumo ao norte para encontrar qualquer evidência do que havia acontecido com eles. Algumas dessas expedições pioneiras revelaram algumas pistas.

Os primeiros vestígios de relíquias deixadas pela expedição, restos de um acampamento de inverno e túmulos de tripulantes foram encontrados na Ilha de Beechey. Os poucos resquícios de acampamento eram estranhos, sem os típicos círculos de pedra usados para acender fogueiras. Tudo parecia um tanto descuidado, o que era atípico para exploradores experientes. Tanto as buscas marítimas quanto as buscas terrestres foram realizadas à duras penas sob um clima hostil. Na tentativa de resgate muitos outros perderam suas vidas. Por fim, os americanos também se envolveram no esforço, já que o governo cedeu navios de guerra para a missão de resgate. 

Todos tinham uma teoria a respeito do que havia sucedido, o que Franklin teria feito e o que poderia ser feito para achá-los. Raposas árticas foram capturadas com mensagens presas ao redor do pescoço com detalhes da situação. As mensagens eram carregadas de desesperança e temor diante do pior. Medalhas e insígnias foram achadas com esquimós, supostamente dadas a eles por membros da expedição para que, se estes encontrassem um grupo de resgate. Apesar de todos os esforços, nenhuma pista definitiva lançou uma luz sobre o destino final dos 141 homens perdidos.  

Mas o que teria acontecido com a Expedição Franklin? Que fim tiveram os homens envolvidos em uma das mais ousadas incursões através da Fronteira Ártica? Teriam todos eles perecido diante das agruras do território selvagem? E se esse foi o caso, sob que circunstâncias? Será que teriam encontrado a tão almejada Passagem Noroeste e se visto incapazes de retornar com as informações? Os questionamentos eram muitos, bem como as opiniões que inflamavam a imaginação do público.  


Em 1854, o médico John Rae, à serviço da Hudson Bay Company, entrevistou nativos de uma tribo Inuit que contaram uma sinistra história. Segundo eles, cerca de três anos antes, um grupo de 30 ou 40 homens brancos foram vistos cruzando o deserto gelado. Arrastavam um barco sobre trenó onde carregavam seus suprimentos pela paisagem desolada. Eles contaram uma trágica história sobre como o navio que os trouxe havia ficado preso e terminou esmagado pela pressão do gelo. Os esquimós negociaram com eles um pouco de carne de foca, mas ficaram apreensivos com a maneira como os forasteiros se comportavam: Pareciam incomodados, irritadiços e propensos à violência. Decidiram não se aproximar mais deles temendo que estivessem doentes ou tomados por maus espíritos. Dias mais tarde, a tribo escutou gritos e o estampido de tiros cujo som se propagou pela planície. Encontraram algumas semanas depois alguns cadáveres, mas os outros haviam partido arrastando o barco, ainda mais para o interior.

Os esquimós disseram que os homens ficaram presos quando o inverno chegou. Foi um inverno especialmente severo e eles não tiveram nenhuma chance, acabaram morrendo de inanição. Em meio ao desespero, os inuit afirmaram que eles teriam enlouquecido e recorrido ao canibalismo antes de expirar. Para comprovar a história, mostraram alguns artefatos, incluindo colheres de prata e roupas posteriormente identificados como pertencentes a Expedição Franklin. Os objetos haviam sido barganhados com a tribo. 

Rae ficou chocado com a narrativa e pediu indicações aos esquimós para chegar até o lugar onde a tragédia teria ocorrido. Como era verão, o tempo ajudou e ele conseguiu localizar o acampamento final sem grandes dificuldades. Lá, uma visão descrita como apocalíptica, o aguardava.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Viagem aos Limites da Terra - Uma Expedição infernal em busca de uma Ilha Invisível


Nos arquivos da American Geographical Society em Milwaukee existe uma das maiores coleções de mapas e cartas geográficas do mundo. Muitas destas com séculos de idade correspondem aos primeiros registros conhecido de terras distantes, continentes e ilhas avistadas por navegadores e exploradores durante suas viagens. Nessa vasta coleção, existe um mapa com um segredo peculiar. Ao norte da Groenlândia, a carta  mostra a ponta de uma ilha em formato de gancho, identificada como "Terra de Crocker" (Crocker Land). Abaixo da marcação há a seguinte observação: "Visto por Peary no ano de 1906".

O Peary em questão é ninguém menos que Robert Peary, um dos mais famosos exploradores polares do final do século XIX e início do século XX, e o homem que afirmou ter sido o primeiro a colocar os seus pés no Pólo Norte. Mas o que torna este mapa notável é ele ter sido o primeiro aludindo à Terra de Crocker. Mas que lugaré esse? Qual a sua importância e significado? 

Por muitos anos a Terra de Crocker foi considerado um dos últimos grandes mistérios geográficos. Sua localização era motivo de acirrado debate e polêmica. Acreditava-se que esse lugar poderia ser uma ilha ou quem sabe até, um continente flutuando no mar gelado, pronto para ser descoberto e explorado. A grande controvérsia à respeito da Terra de Crocker era se Peary realmente havia avistado o lugar e se a Terra de Crocker de fato existia, ou se não passava simplesmente de uma invenção.

A história começa da seguinte maneira:

Em 1906, Robert Peary já era considerado um explorador veterano, endurecido por cinco longas e perigosas expedições ao Círculo Polar Ártico. Cada uma de suas incursões no território selvagem do Ártico foi por si só uma aventura. Nem todos os seus acompanhantes tiveram a mesma sorte que ele, muitos morreram de fome, doença ou diante do perigo oferecido por animais e o clima impiedosos.  

Robert Peary

Peary era um sobrevivente movido por uma grande ambição, ser o primeiro homem a chegar ao Pólo Norte. Atingir o "telhado do mundo" era uma verdadeira corrida, uma disputa pessoal entre vários exploradores, questão de orgulho patriótico já que todos queriam enterrar a bandeira de seu país nessa que era uma das últimas fronteiras do mundo. 

No verão de 1905, Peary deixou Nova York à bordo de um navio quebra-gelo de última geração, o Roosevelt - nomeado em homenagem a um dos principais patrocinadores da expedição, o então Presidente norte-americano Theodore Roosevelt. A missão de colocar os pés na parte mais setentrional do globo acabou em fracasso: Peary disse que chegou de trenó até aproximadamente 280 quilômetros do Pólo, mas teve de retroceder em vista de fortes tempestades e suprimentos cada vez menores. A distância pode parecer longa, mas em meio do deserto gelado e condições limítrofes enfrentadas, aquilo era simplesmente fantástico. Os membros do grupo avançado haviam se tornado os primeiros seres humanos a se aventurar tão ao norte do planeta. Uma pena que seus dados eram extremamente duvidosos e foram prontamente refutados.

Após retornar, Peary se sentiu diminuído pelos questionamentos. Isso o levou quase que imediatamente a planejar uma nova expedição que o levasse ao seu objetivo. Infelizmente ele se viu com os patrocinadores reduzidos. O questionamento a respeito da realização de sua façanha arranhou a reputação do explorador e fez com que alguns o vissem como desonesto. 

Peary tentou obter recursos com um de seus patrocinadores anteriores, o financista de San Francisco George Crocker - que havia doado US $ 50.000 para a missão 1905-1906. O nome de Crocker foi dado a uma massa de terra supostamente avistada por Peary. Em seu livro lançado em 1907, Peary afirmou que, durante a expedição, avistou "os cimos brancos e tênues" de uma terra anteriormente desconhecida, localizada a 130 milhas a noroeste do Cabo Thomas Hubbard, uma das regiões mais ao norte do Canadá. Sua esperança era conseguir outros US $ 50.000 com Crocker que ajudariam a custear uma futura expedição. Contudo, seus esforços foram em vão: o milionário prometeu ajudar a reconstruir São Francisco após o devastador terremoto de 1906. No fim das contas, sobrou muito pouco para a expedição ao Ártico. 

A equipe de Peary no Ártico

Mas Peary não se deu por vencido! Ele conseguiu obter o apoio da National Geographic Society para custear uma nova expedição que deveria levá-lo de uma vez por todas até o Pólo Norte. Em 6 de abril de 1909, ele atingiu o topo do planeta - ou pelo menos, segundo os seus cálculos, foi o que aconteceu. "Enfim o Pólo!!!! escreveu o explorador em seu diário. "O prêmio de 3 séculos, meu sonho e ambição de 23 anos. Finalmente ao meu alcance. "

Peary não iria comemorar sua conquista por muito tempo: quando voltou para casa, ele descobriu que Frederick Cook - que servira sob o seu próprio comando em uma expedição em 1891 ao norte da Groenlândia - afirmava ter chegado primeiro ao Pólo com cerca de um ano de vantagem. Por um tempo, um debate acirrado com reivindicações dos dois homens sacudiu a comunidade científica e acadêmica - e a Terra de Crocker tornou-se parte dessa disputa. Cook afirmou que em seu caminho para o Pólo Norte ele viajou até a área onde a ilha deveria estar, mas não viu nada lá. "A Terra de Crocker", disse ele, "simplesmente não existe". A lógica era a seguinte: se Peary havia inventado sua existência, como confiar que ele estivesse falando a verdade quanto a ter chegado ao Pólo Norte? 

Os apoiadores de Peary ficaram indignados. Um de seus assistentes, Donald MacMillan, anunciou que lideraria uma expedição para provar a existência da Terra de Crocker, justificando Peary e arruinando para sempre a reputação de Cook. 

Também haveria, é claro, a glória de ser o primeiro a pisar na ilha até então inexplorada e cuja localização permanecia em aberto. Com ambos os Pólos conquistados, Crocker Land tornou-se "o último grande lugar desconhecido no mundo". Seria uma conquista para a humanidade, além de escrever o nome de seu descobridor entre os grandes exploradores da era moderna. 

A disputa para saber quem era o conquistador do Pólo Norte

Após receber o apoio do Museu Americano de História Natural, da Universidade de Illinois e da Sociedade Geográfica Americana, a Expedição MacMillan partiu do Estaleiro da Marinha do Brooklyn em julho de 1913. MacMillan e sua equipe levaram suprimentos, cães, um cozinheiro, "uma máquina fotográfica portátil", e equipamento de rádio sem fio, com o grande plano de fazer uma transmissão ao vivo da Terra de Crocker para os Estados Unidos. Seria um grande acontecimento.

Mas quase imediatamente a expedição enfrentou infortúnios: o navio de MacMillan, o Diana, naufragou na costa da Groenlândia por seu capitão estar, segundo alguns, bêbado. A seguir MacMillan foi transferido para outro navio, o Erik, para prosseguir na jornada. No início de 1914, com os mares congelados, a expedição deu sequência à jornada viajando de trenó. O percurso era de nada menos que 1900 quilômetros  através da Groenlândia, uma das paisagens mais inóspitas e severas da Terra, tudo em busca da Ilha Fantasma de Peary.

Embora inicialmente inspirada pela importância da missão, a equipe de MacMillan começou a dar sinais de desapontamento à medida que nenhum sinal da Terra de Crocker surgia. Os nativos inuit afirmavam que o lugar procurado não existia e nenhum navegador que passou pelas águas gélidas do Mar do Ártico teve sequer um vislumbre dela. À medida que o grupo penetrava na vastidão gélida, e era saudado por um deserto branco, os homens se perguntavam se aquela busca realmente fazia sentido. 

"Você pode imaginar o quão cuidadosamente examinamos cada centímetro daquele horizonte - para chegar a uma única conclusão: não havia nada à vista", escreveu MacMillan em seu livro sobre a expedição.

Certo dia, durante a jornada por terra, um alferes de 25 anos chamado Fitzhugh Green, deu-lhes alguma esperança. Como MacMillan contou mais tarde, "Green saiu do iglu e voltou correndo, chamando pela porta:‘ Nós achamos! ’Seguindo Green, corremos para o topo do monte mais alto. Não poderia haver dúvida sobre isso. Céus! Que terra longa! Colinas, vales, picos cobertos de neve que se estendiam por pelo menos cento e vinte graus do horizonte."

Os perigos de cruzar o deserto gelado em um trenó

Mas as visões da mítica Terra de Crocker evaporaram rapidamente. "Recorri a Pee-a-wah-to", escreveu MacMillan sobre seu guia Inuit (também conhecido por alguns exploradores como Piugaattog). "Depois de examinar criticamente a suposta terra firme por alguns minutos, ele me surpreendeu ao responder que não se tratava de terra, mas uma 'poo-jok' (névoa)."

De fato, MacMillan registrou que "a paisagem mudou gradualmente sua aparência e variou em extensão com o movimento do Sol; finalmente, à noite, ele desapareceu por completo". Por mais cinco dias, os exploradores seguiram em frente, até que ficou claro que o que Green vira não passava de uma miragem, uma fata morgana polar. Batizada com o nome da feiticeira Morgana le Fay da lenda do Rei Arthur, essas poderosas ilusões são produzidas quando a luz se curva ao passar pelo ar gelado, criando imagens misteriosas que parecem montanhas, ilhas e às vezes até navios flutuantes. 

Mais de um explorador já se deixara levar por visões incríveis como aquela, quando na verdade o que estavam vendo era nada além de ilusão de ótica. Fata Morgana é uma ocorrência comum nas regiões polares, mas um explorador veterano como Robert Peary teria se deixado confundir por algo tão corriqueiro? 

"Enquanto bebíamos nosso chá quente e comíamos o alimento desidratado, pensamos muito", escreveu MacMillan. - "Será que Peary, com toda sua experiência, se enganou? Foi esta miragem que nos enganou oito anos antes? Se ele viu a Terra de Crocker, então deveria ter ido muito mais longe, pois até aquela altura, nada havíamos visto senão ilusões".
 
A missão de MacMillan foi obrigada a aceitar o impensável e retornar ao seu porto de partida. "Meus sonhos nos últimos quatro anos foram apenas sonhos; minhas esperanças terminaram em amarga decepção", escreveu MacMillan. Mas o desespero ao perceber que a Terra de Crocker não existia foi apenas o começo da provação.

MacMillan enviou Fitzhugh Green e o guia inuit Piugaattog para o oeste para explorar uma possível rota de volta ao acampamento base. Infelizmente, os dois ficaram presos no gelo e uma de suas equipes de cães morreu em um deslizamento. Tendo de se virar com os cães restantes, Green - com alarmante falta de remorso - explicou em seu diário o que aconteceu a seguir: "Eu suspeitei que o guia estivesse planejando fugir e me deixar sozinho com recursos reduzidos... resolvi dar um tiro para o ar, e quando ele se voltou atirei na sua direção... eu o matei [Piugaattog] com um disparo no ombro e outro na cabeça." Para piorar o crime, Green mutilou o cadáver e deu parte dele para os cães comerem, para conseguir poupar suprimentos.
MacMillian no gelo

Green relatou tudo isso a MacMillan, mas o líder da expedição preferiu esconder a verdade. Preferiu dizer aos demais inuites que Piugaattog havia perecido no deslizamento, pois temia que a verdade causasse uma revolta generalizada.

Os revezes continuariam a atormentar a expedição marcada por mais tragédias. Vários membros da missão acabaram ficando isolados por nevascas, presos em acampamentos improvisados no gelo. Alguns por mais de três anos, vítimas do clima ártico. As rotas ficaram bloqueadas por completo, cortando o caminho dos homens até o local em que os barcos haviam ancorado. Duas tentativas do Museu Americano de História Natural para resgatá-los fracassaram. Ninguém conseguia chegar até eles e para todos os efeitos, muitos consideravam que os homens estavam perdidos para sempre. Apenas em 1917 MacMillan e seu grupo foram finalmente resgatados pelo navio Neptune, capitaneado pelo experiente marinheiro do Ártico Robert Bartlett. 

Enquanto estavam presos no gelo, os homens fizeram bom uso de seu tempo; eles estudaram geleiras, astronomia, marés, a cultura Inuit e tudo o mais que atraiu sua curiosidade. Eles finalmente retornaram com mais de 5.000 fotografias, milhares de espécimes animais e algumas das primeiras filmagens do Ártico (muitos dos quais podem ser vistos hoje nos arquivos da American Geographical Society na University of Wisconsin).

Quanto à missão original: a descoberta da Terra de Crocker, nada foi encontrado.

Não está claro se MacMillan alguma vez confrontou Peary à respeito da Terra de Crocker e do que ele realmente viu em 1906. Quando a notícia do fracasso de MacMillan chegou aos Estados Unidos, Peary se defendeu numa coletiva de imprensa observando que poderia ser difícil localizar terras no Ártico: “Visto à distância ... um iceberg com terra e pedras pode ser ser tomado por uma rocha, um vale com paredes de penhasco cheio de neblina como um fiorde, e as densas nuvens baixas acima de um pedaço de mar aberto como terra." Ele sustentou, que "indicações físicas e teoria ainda apontavam para a existência de uma grande massa de terra em algum lugar naquela área. Mas que apenas o futuro provaria tal coisa


Robert Peary morreu em 1920 ainda defendendo a existência da Terra de Crocker.

Pesquisadores posteriores que tiveram acesso às anotações da Missão liderada por Peary em 1905-06 perceberam que ele não menciona o avistamento da Terra de Crocker. É no mínimo estranho que uma descoberta dessa magnitude, não tenha sido citada nos diários da expedição. Nenhum líder esconderia tal coisa. Da mesma forma, vários membros da expedição mantinham seus próprios diários e nenhum deles menciona o avistamento. 

Muitos acreditam que Peary simplesmente inventou a existência da Ilha, apenas para agradar seu principal patrocinador George Crocker. Mas se esse foi o caso, sua mentira permitiu que a expedição rumasse para um lugar absolutamente estéril e extremamente perigoso, sabendo que não havia nada a ser descoberto. Bons homens sofrearam e morreram por nada... 

Crocker por sua vez não chegou a viver, para testemunhar a controvérsia sobre a Ilha continental que levava seu nome. Ele morreu em dezembro de 1909, vítima de câncer no estômago, um ano depois de Peary ter partido no Roosevelt em busca do Pólo e alguns anos antes da fatídica Expedição MacMillan.

Quaisquer esperanças da descoberta da Terra de Crocker foram afundados de vez em 1938, quando Isaac Schlossbach realizou o primeiro voo de mapeamento aéreo sobre a região em que a ilha deveria estar. Ao olhar para baixo de sua cabine, ele não viu nada a não ser o gélido Mar Ártico certificando-se de uma das maiores mentiras da história da exploração.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

Palacete Bolonha - A Casa construída pelo amor e dominada pelo Terror


A Lenda do Palacete Bolonha começa como muitos romances góticos da ficção: com uma História de Amor.

O engenheiro Francisco Bolonha, personagem principal dessa trama, havia se apaixonado perdidamente pela pianista Alice Tem-Brink que conhecera no Rio de Janeiro. Os dois começaram a namorar, mas como o engenheiro era natural de Belém do Pará a distância tornava extremamente complicado o relacionamento, quanto mais naqueles tempos. Alice alegava que não podia abandonar a família e que nada sabia a respeito do então Grão-Pará para desistir da vida na Capital e ir para aqueles recônditos. Francisco prometeu então que se ela aceitasse seu pedido de casamento, mandaria construir para os dois um palacete que não deixaria nada a desejar aos da Europa.

E foi isso que Bolonha fez.

Mandou erguer, no ano de 1905, uma das edificações mais importantes da arquitetura de Belém. O Palacete era um prédio em estilo art noveau, com características clássicas do apogeu do Ciclo da Borracha quando impulsionado pela riqueza dos seringais, o Pará, experimentou um enriquecimento rápido e uma modernização acelerada.

O Palacete foi construído com o que havia de mais moderno em termos tecnológicos e que o dinheiro podia pagar. O construtor uniu vários estilos arquitetônicos no edifício e realizou a morada mais suntuosa e luxuosa da cidade àquela época. O prédio contava com quatro pavimentos, térreo, salões, áreas sociais com direito a salão de baile, banheiros, pias de granito e torneiras douradas, além de vários quartos. A magnífica fachada com detalhes intrincados, sacadas, varandas e mansarda com torreão, media quase vinte metros de altura.


Por dentro, o palacete tinha uma distribuição particular, com enorme quantidade de estuques, dourados e azulejos decorativos no estilo art noveau, contava ainda com mosaicos que lembravam os de Pompéia, alto relevos com motivos greco-romanos e vários revestimentos em madeira de alto padrão. No térreo ficavam as acomodações dos criados e a área de serviços, no primeiro pavimento estava a área social para recepção de visitas. Através do pátio de entrada chegava-se ao vestíbulo, sala de música, salões de jantar e almoço. Uma escadaria de mármore levava para os aposentos particulares no segundo e terceiro pavimentos. A planta dava destaque para sacadas cobertas, roupeiros, sala de banho e mais varandas. Os quartos do casal ficavam no terceiro pavimento, que trazia ainda capela, escritório e biblioteca. Finalmente, o quarto e último pavimento, acessado por uma escadaria em caracol levava a um deslumbrante mirante do qual se via as redondezas.

A Mansão contava com instalação elétrica nos aposentos, encanamento de água quente e fria em todos os banheiros, rede integrada de gás e esgoto - um verdadeiro luxo para a época. A propriedade, conforme prometido era um palácio de sonhos de fadas. Mas a história que se seguiu era digna de pesadelos! 

Apesar da suntuosidade, o prédio sempre atraiu a atenção das pessoas por outras razões além de sua importância arquitetônica. Diz a sabedoria popular que riqueza nem sempre está associada à felicidade e que fortuna, muitas vezes não é sinônimo de alegria. No que diz respeito ao célebre Palácio Bolonha, não faltam lendas e histórias bizarras que parecem confirmar esses dizeres. Uma sucessão de fatos e incidentes macabros ocorreram na propriedade nos últimos cem anos e estes ajudaram a construir a fama do local como o endereço mais assombrado de Belém.

Primeiro a respeito do lugar escolhido para a construção. Nem sempre ali existiu uma avenida larga e requintada: antes, dizem, havia uma charneca pantanosa, com lagoas de água estagnada e profunda. Por ser um lugar de difícil acesso, habitat de grandes jacarés, convencionaram usá-lo como ponto de desova para os cadáveres de escravos a quem não se dava sequer um enterro digno. Uma vez por mês, uma carroça vinha dar naqueles alagadiços insalubres e descarregava sua macabra carga para regalo dos enormes répteis. Não por acaso esse horrível detalhe fez com que o pântano ganhasse fama de ser maldito, assombrado pelos espíritos dos infelizes ali abandonados. Quando o charco foi drenado para as obras de infraestrutura da cidade que crescia, vieram à tona as ossadas, mas ao invés de dar a elas descanso, uma parte simplesmente foi jogada de lado e outra coberta com aterro.

Se os restos humanos que ficaram no terreno carregavam ou não uma maldição é discutível, mas o mesmo não se pode dizer de outros aspetos que contribuíram para fomentar a lenda. Por muito tempo, correu o boato de que Bolonha desenvolveu um interesse perigoso pelo sobrenatural e que este sedimentou-se nas paredes de sua obra prima arquitetônica.


Francisco Bolonha nasceu em Belém do Pará no ano de 1870, oriundo de uma família tradicional da cidade que sempre teve muito dinheiro, mas que aumentou sua riqueza através da exploração da Borracha. Durante sua infância, a família se mudou para a Europa, para o tratamento da frágil saúde de sua mãe, Henriqueta Bolonha. Foram morar em Paris e aparentemente viveram uma existência tranquila na Cidade Luz. Na volta ao Brasil, após alguns anos, Francisco experimentou sua primeira grande tragédia, quando a mãe, acometida por forte depressão, se lançou ao mar na frente do menino, que a viu sumir nas águas do Oceano Atlântico.

A tragédia deixou sequelas no menino de 10 anos, que ficou mudo por quase um ano, atormentado por pesadelos e lembranças daquela noite. Preocupado com o filho, Manoel Bolonha recorreu à vários médicos conceituados e psiquiatras para romper o silêncio da criança. Quando estes falham, buscou padres, curandeiros, benzedeiras e até pajés que sugeriram os mais variados tratamentos. Curiosamente, o que acabou funcionando e devolvendo ao menino a alegria foi a companhia de um grande cão da raça Rotweiller. Em algumas semanas Bolonha voltou a falar e retomou o rumo de sua vida. Aos 16 anos ele foi para o Rio de Janeiro para estudar engenharia e depois de se formar, seguiu para exercer a profissão em Paris.

Na França, o rico herdeiro conviveu com a alta sociedade parisiense, conhecendo artistas, gente influente, e descobrindo também a famosa boêmia da capital. Sua vida era uma esbórnia regada a festas intermináveis, champanhe, drogas alucinógenas e as tão famosas prostitutas francesas de quem se torna assíduo cliente. Mas sua animada existência no auge da belle époque tem novo revés com a segunda tragédia em sua vida. Um amigo pessoal e colega, também arquiteto de renome, tem uma morte repentina bem diante de Bolonha. A tragédia reaviva seus antigos traumas e ele cai em depressão sentindo que não há sentido na vida.

Bolonha afunda na depressão e no vício, tendo a companhia de indivíduos ligados às alegadas Ciências Proibidas e ocultistas. Em dado momento, decide voltar ao Brasil e deixar para trás o ambiente insalubre no qual havia mergulhado. Dizem que seu plano era se lançar ao mar no mesmo ponto em que a mãe havia perecido, mas lhe falta coragem para dar cabo da própria existência.

Pouco depois de desembarcar no Rio de Janeiro, Francisco foi convidado para um recital onde conheceu a pianista Alice Tem-Brink por quem acaba se apaixonando. A paixão reaviva seu desejo de viver e é tão avassaladora que ele passa a cortejá-la insistentemente. À princípio a moça resiste aos seus galanteios, pois não pretendia se casar tão cedo e com um noivo de um lugar tão distante, mas aos poucos ela vai cedendo. Dessa corte acaba surgindo o plano de construir o Palacete em Belém, uma obra que representaria o amor entre os dois.


Após o casamento e lua de mel, o casal aparentemente feliz e otimista com o futuro se estabelece no recém inaugurado Palacete Bolonha. Os primeiros anos do casamento transcorreram em meio a riqueza, ostentação e prosperidade. Mas nem tudo ia bem nesse conto de fadas... Alice não conseguia engravidar, e a relação do casal começou a se desgastar, visto que um culpava o outro pela infertilidade. A tristeza descambou então para brigas sucessivas, por vezes, até agressões. 

Na casa, os empregados são os primeiros a perceber que algo mais estava errado. Eles mencionam sons estranhos na calada da noite: correntes sendo arrastadas, gritos de horror e lamentos. Certa noite, uma criada de confiança de Alice desmaia depois de ver três homens negros com os corpos retalhados, como se tivessem sido atacados por animais selvagens. Comenta-se que são os espíritos dos escravos lançados no antigo charco e despedaçados pelos jacarés famintos. As histórias se multiplicam entre a criadagem e é difícil controlar as fofocas.

Francisco insiste que tudo isso não passa de bobagem e superstição, mas Alice também é afetada pelos incidentes cada vez mais frequentes. Certa noite ela se depara com o fantasma de um escravo no salão de festas. Isso a abala profundamente e faz com que ela evite andar pela casa depois do anoitecer. A dona do palacete vive enclausurada em seu quarto e teme sair de lá. Passa os dias rezando e pedindo proteção, as noites em constante vigília. A personalidade de Bolonha se deteriora: ele volta a beber, usa drogas e leva mulheres para o Palacete. A sociedade local fica escandalizada pelos rumores de que Francisco mandou importar prostitutas da França. Dizem que se envolve novamente com o oculto, que havia deixado de lado desde seu retorno ao Brasil. Fascinado pelo tema, ele consulta livros de magia negra, realiza rituais e cerimônias no estúdio trancado para horror de todos. 

A cada dia que passa Bolonha se entrega mais e mais numa existência promiscua que arruína sua saúde e consome grande parte da sua fortuna. Em poucos anos  vivendo no limite, o engenheiro vira um trapo humano, doente com diabetes e sífilis, cai de cama. Ele é cuidado por sua fiel esposa, que se dedica ao marido até o dia em que Bolonha morre em decorrência da diabetes. Alice após esse episódio se vê livre, vende o Palacete e com o que resta da fortuna de Bolonha, parte para a Europa. Ela nunca mais volta ao Brasil.

Mas a história do Palacete Bolonha não para por ai, e fica ainda mais macabra. Depois da venda do imóvel e a morte do engenheiro, o local se torna por algum tempo a Sede da Prefeitura de Belém. Funcionários reclamam constantemente que o lugar tem uma "aura estranha" e enervante. Coisas parecem sumir, objetos mudam de lugar, portas e armários abrem sem que haja alguém por perto. Um segurança noturno pede as contas depois de se deparar com uma aparição macabra, um escravo com o braço dilacerado. 


No curso dos anos, diversas famílias tradicionais se revezam no local, mas nunca permanecem mais do que seis meses na propriedade. Ao sair, preferem manter sigilo sobre o motivo para deixar o edifício, talvez para não desvalorizar o valor de venda. Alguns afirmam que o fantasma de Francisco Bolonha, amargurado, emaciado e confuso, se uniu a hoste de espíritos inquietos de escravos aprisionados no Palacete.

A história vai se tornando cada vez mais infame com o passar dos anos: uma narrativa macabra alimentando a seguinte, criando uma longa tapeçaria de rumores que o povo de Belém segue compartilhando entre si. Aqueles que antes se deslumbravam com a magnífica casa, agora sentem pavor, e evitam olhar para a construção maldita. Muitos moradores do bairro de Nazaré contam que nas noites escuras, de madrugada, o enorme cão negro de Bolonha, pode ser ouvido latindo e uivando no topo da construção. O animal morto há muito, foi enterrado na frente do casarão com as palavras em latim "Caven Canen" (cuidado com o cão) no mosaico que cobre a sepultura. 

Um dos episódios mais macabros dessa história relata que em 1968, dois homens tentaram invadir a propriedade, motivados pelas histórias de que objetos valiosos continuavam lá dentro. Os dois supostamente foram mortos com brutalidade extrema. Um Jornal da época publicou a perturbadora história:

"Dois corpos foram encontrados estraçalhados no bairro da Campina, entre a Praça da República e Reduto. Os corpos, literalmente, haviam sido trucidados e partes deles foram achadas espalhadas em frente ao Palacete Bolonha, pendurados em fios da iluminação pública, em um raio de 300 metros; uma verdadeira visão dantesca do inferno em plena Belém!"

Depois desse acontecimento a casa ficou fechada durante 30 anos, sendo que coisas estranhas continuavam acontecendo como relatavam vizinhos e testemunhas. Mesmo desabitada, ainda se ouvia passos, lamentos e gritos vindos do interior. Em 1998 o palacete foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Cultural, retornando sua posse à Prefeitura de Belém - a casa é restaurada e aberta para a visitação pública.


Mesmo que com menor intensidade, as atividades paranormais continuaram a acontecer no Palacete. Turistas relatam ver mulheres nas banheiras, vultos passando de uma sala para outra, escravos mutilados e os latidos de um cão de grande porte. Um relato especialmente bizarro cita os membros de um grupo teatral que foi contratado pela prefeitura para se apresentar no salão da casa. Uma das atrizes, ao usar o banheiro, tem uma visão aterradora de uma mulher cadavérica na banheira. A atriz passa mal, perde os sentidos, desmaia, bate a cabeça e sai de lá em uma ambulância.

Vários médiuns e sensitivos visitaram o palacete para sondar o ambiente sobrenatural. A maioria dos relatos citam que Francisco Bolonha não conseguiu se desligar da casa e que seu espirito, junto com o do cão, vagam pelo local. Conforme as lendas, há ainda os espíritos de mulheres lascivas, supostamente trazidas por Bolonha da Europa para serem suas amantes e de escravos cujos ossos continuam nas fundações da casa. Nas últimas décadas um rumor se torna recorrente entre aqueles que tentam traçar a origem do horror contido nesse endereço macabro. Afirmam que a tragédia da família decorre de uma maldição trazida por Manuel Bolonha, quando este tentava curar o filho traumatizado pela morte da mãe. Ele teria firmado um pacto com o demônio, recebendo o cão negro que ajudaria a romper o transe do menino. O animal, no entanto, seria responsável por perverter a natureza do jovem Francisco e torná-lo um homem escravo de seus vícios e caprichos.

Mas o que podemos tirar dessa história macabra? Seria ela verdadeira ou não passa de uma lenda coberta de exageros descabidos e rumores infundados? Vamos ao que se sabe a respeito dessa história sob um olhar mais cético.

O Palacete Bolonha, obviamente existe em Belém do Pará e foi construído pelo arquiteto Francisco Bolonha, profissional conceituado que realmente formou-se pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, esteve na França e casou com a pianista carioca Alice Tem-Brink. O palacete foi morada do casal, construído como presente de casamento pelo arquiteto à sua amada esposa. Os dois viveram na propriedade por décadas, e não chegaram a ter filhos uma vez que Francisco contraiu caxumba já adulto. As brigas e discussões do casal à cerca da incapacidade de ter filhos, são mera especulação. Mas embora detalhes da vida privada no palacete sejam fragmentados, não há como atestar os rumores sobre indiscrições e traições no local. Essa parte, parece também deveras exagerada, sobretudo o abuso de álcool, drogas e o desfile de amantes na propriedade.


A história corrobora que a localização no passado correspondia a um pântano e é razoável crer que haviam ali jacarés, mas se o local foi usado como cemitério de escravos, parece aberto a discussão. Não há nada que comprove esse detalhe, a não ser velhas histórias. Mesmo a parte a respeito de ossadas achadas após a drenagem não puderam ser comprovadas.

Já da morte de Henriqueta Bolonha, mãe de Francisco ao que consta, realmente ocorreu em alto mar, no retorno da família ao Brasil, contudo, não existe consenso se ela teria caído do navio ou saltado para seu destino. Fato é que o menino testemunhou o ocorrido e ficou profundamente traumatizado. Sabe-se que ele de fato não falou por algum tempo e que um grande cão Rottweiler presenteado ao menino foi essencial para sua recuperação depois que métodos tradicionais falharam. O cão aliás, foi de fato enterrado no pátio do Palacete com a famosa inscrição "Caven canem" em um mosaico.

Não existe registros de que Francisco tenha sido um assíduo frequentador de cabarés e da vida noturna de Paris. É de se supor que ele de fato tenha aproveitado dos prazeres da capital da França, mas não há qualquer menção à excessos ou de um amigo arquiteto que tenha morrido diante dele. Em algumas versões dessa história, esse tal amigo seria ninguém menos Auguste Eifell, o construtor da famosa torre que recebeu seu nome. Bolonha supostamente estudou com Eifell em sua estadia em Paris, mas é impossível que o amigo morto diante dele e o catalizador de uma nova tragédia pessoal fosse o famoso construtor francês. Este morreu em 1923, sem qualquer menção a uma testemunha brasileira. Tampouco o alardeado "interesse pelas Ciências Proibidas" de Francisco é mencionado em qualquer lugar antes da lenda. Tudo leva a crer que esse pormenor tenha sido incluído em algum momento da construção do mito.


Francisco Bolonha tinha uma saúde frágil em seus últimos anos e ele de fato faleceu em decorrência de complicações causadas pela diabetes. Um corte no pé gangrenou e o levou ao óbito. Não há, entretanto menção alguma a ele ter definhado e cedido por conta de um quadro agravado por doença venérea. Quando de sua morte, ocorrida em 1938, ele tinha a idade considerável de 68 anos e o cortejo fúnebre foi seguido por um grande número de populares, o que contraria muito a noção dele ser visto com reservas pela sociedade e população local. Não há registros do que aconteceu com Alice Tem-Brink, mas é razoável supor que após a viuvez, e sem filhos, ela tenha levado uma vida bem pouco chamativa até sua morte.

A grande questão nessa história diz respeito aos fantasmas e a natureza sobrenatural do Palacete, afinal, não faltam relatos sobre assombrações que infestam o lugar. Não é raro que prédios antigos e lugares históricos se tornem o ponto focal de lendas sobre fantasmas, e o Palacete Bolonha parece o típico lugar capaz de atrair tais histórias. Podemos dizer que o lugar sempre teve fama de assombrado e que essa fama apenas aumentou após a morte de seus donos e o progressivo abandono do prédio cuja fachada se deteriorou e concedeu a ele uma aparência de "castelo assombrado". Não faltam relatos de pessoas que alegam ter visto algum fantasma nos arredores do palacete e como geralmente acontece, essas histórias vão se acumulando até serem costuradas ao tecido das lendas urbanas das grandes cidades.

Hoje o Palacete continua lá, aberto à visitação e aos olhares de curiosos que passam pelos seus salões surpresos pela opulência decadente do passado. Tudo leva a crer que o Palacete continuará a atrair essas histórias, ainda mais agora que constitui uma das atrações principais da capital paraense. A história fictícia da Casa Bolonha, o Palácio construído pelo amor e dominado pelo Terror, exerce sobre nós, amantes de uma boa história assombrada, um enorme fascínio difícil de afastar.