sábado, 27 de fevereiro de 2021

Troféus de Guerra - O medonho costume de colecionar inimigos derrotados


"A Guerra é o Inferno".

Ou assim diz o ditado.

Pode parecer absurdo e bizarro para nossos padrões de civilização, mas soldados sempre removeram partes dos corpos de seus inimigos caídos e os usaram como troféus de guerra. A prática é bastante antiga e reconhecida por historiadores e arqueólogos que estudam o uso recorrente de restos humanos como souvenires de guerra. Segundo estudiosos do tema, os troféus se dividem em duas categorias distintas: Troféus de Dominância e Troféus de Veneração

Um Troféu de Dominância é coletado do corpo de um adversário como uma forma de desumanizar o inimigo e demonstrar a habilidade superior do coletor em batalha. Aquele que venceu o embate passa a "ter direito" sobre os restos do inimigo morto, podendo usá-lo como bem entender. Ele se torna um objeto que pode ser descartado e prospectado sem cerimônia. É o tipo mais comum de Troféu de Guerra e difundido praticamente em todas as partes do planeta. 

No Mundo Antigo os romanos tornaram essa uma prática muito tolerada e difundida em suas fileiras. Basicamente, eles coletavam todo tipo de troféu dos mais variados povos que entravam em seu caminho e que eram subjugados pela eficiente máquina de guerra romana. De mãos, dedos, orelhas até globos oculares, ossos, narizes e pênis, os troféus de guerra eram uma forma de rememorar grandes vitórias e conquistas nos campos de batalha. 

Prisioneiros sendo executados nas Cruzadas

Vários soldados à serviço do Império coletavam pedaços dos inimigos caídos e os usavam com distinção, quase como um distintivo de seus feitos. Havia até mesmo soldados especializados em trabalhar os pedaços trazidos até eles e conceder a cada troféu uma aparência especial. Cronistas romanos como Tito Lívio mencionam legionários que carregavam colares com orelhas ou polegares em volta do pescoço. Era uma forma de identificar o indivíduo como alguém perigoso, habilidoso ou quem sabe, cruel. A prática não era exclusiva dos soldados, mesmo os oficiais tinham seus troféus particulares. Estes eram obtidos diretamente de chefes guerreiros e indivíduos importantes que chamavam a atenção pelas suas características físicas. Na Campanha pelo Norte da África, Plínio menciona que um Tribuno possuía uma vasta coleção de globos oculares guardados em pequenas caixas.

A prática, estava presente também entre outros povos da antiguidade. Os Persas aparentemente haviam se especializado em coletar pedaços de pele humana que eram guardados em rolos como papiros. Os cartagineses davam especial atenção aos ossos que achavam em campos de batalha, os poliam e por vezes os adicionavam aos cinturões ou armaduras. Algo similar era feito pelos Pictos escoceses que usavam ossos das costelas de inimigos como coletes. 

Na Idade Média, a prática continuou muitíssimo popular. Durante as Cruzadas, soldados à caminho de Jerusalém colecionavam dedos de seus inimigos caídos como uma forma de contar quantos inimigos haviam derrotado em nome da Liberação da Terra Santa. Por sua vez, os turcos tinham a prática de arrancar a língua de seus oponentes que eram então pregadas em escudos de madeira e deixadas ali até secarem formando padrões ao gosto do dono. A prática de arrancar pedaços do corpo e pregas nos portões de fortes e fortalezas era bastante popular, uma forma de dizer que invasores não eram bem vindos. 

Práticas similares estão presentes em outras partes do mundo. Os Impérios Maia e Asteca se notabilizaram pelas guerras que travavam contra praticamente todos seus vizinhos. A maioria de suas incursões tinham como fim obter escravos, mas não era raro que as vítimas que resistiam fossem de alguma forma "aliviadas" de partes de sua anatomia. Os Astecas davam enorme importância aos crânios e costumavam decepar os inimigos mais valorosos. Alguns usavam as cabeças atadas ao cinturão quando retornavam para casa. Ao chegar, mandavam as cabeças para indivíduos especializados em limpar carne, músculos e cartilagens deixando o crânio limpinho. Estes eram oferecidos aos deuses como tributo, mas podiam ser usados para adornar as casas. Os cabelos de vítimas eram um presente comum para mulheres e crianças.

Na Grande Guerra enfermeira recebe um "presentinho" dos soldados

Na conquista do Oeste selvagem, colonos fizeram enorme fortuna com a prática de escalpelar os nativos americanos. Os cabelos negros e volumosos dos índios eram removidos e usados como perucas. Embora muitas tribos nativas, em especial os Apaches, sejam associados com a prática de escalpelar, os primeiros a fazê-lo foram os colonos. A prática posteriormente foi adotada por algumas tribos que admiravam sobretudo cabelos loiros e ruivos. O célebre General George Custer teve a longa cabeleira que lhe valia o apelido de "Cabeça Dourada" removida após sua derrota em Little Big Horn. Mesmo na sangrenta Guerra do Paraguai, tropas brasileiras, se notabilizaram por arrancar orelhas das cabeças dos soldados inimigos degolados. 

Um caso bastante peculiar envolve um soldado inglês que foi recompensado pela sua bravura na Batalha de Waterloo. Permitiram a ele que pedisse qualquer coisa do campo de batalha e ele não teve dúvida: quis o esqueleto de um general Francês. O pedido incomum foi acatado, o soldado colocou os ossos em um baú e os levou para a Inglaterra. Lá foram entregues a um artesão que os utilizou como matéria prima na criação de um jogo de chá. As peças eram usadas pelo soldado e pela sua família até que os utensílios fossem doados ao Museu de Hanley onde se encontram até hoje. 

Troféus de Veneração são algo bem diferente. Nesse caso, a parte removida do corpo de um indivíduo é usada como uma espécie de relíquia a ser respeitada, tratada com distinção ou até mesmo venerada pela pessoa que a obtém passando de pai para filho como uma herança.

A pratica é um pouco mais rara, mas está presente na maioria das civilizações e culturas. Os Troféus de Veneração podem assumir várias formas, sendo as mais recorrentes ossos e dentes ainda que existam exemplos de unhas, cabelos e até órgãos devidamente embalsamados. Figuras históricas, indivíduos famosos ou que obtiveram de alguma forma notoriedade são as principais vítimas dessa predação.

O costume de escalpelar os inimigos e arrancar seus cabelos

Nas culturas primitivas, Troféus de Veneração supostamente eram usados como uma maneira de preservar ou transmitir alguma característica desejada - do dono original para aquele que o obtinha. Um guerreiro famoso por sua resistência física podia ter o coração arrancado e usado como amuleto, depois deste ser devidamente ressecado e embalsamado. Um arqueiro de grande habilidade podia ter a mão, usada em vida para fazer os disparos, amputada e usada em volta do pescoço para que favorecesse seu novo dono. Entre as tribos selvagens que viviam no Rio Congo, o pênis avantajado de um inimigo derrotado podia ser arrancado e guardado numa caixa. Este era colocado sob a cama nupcial como uma forma de conjurar o vigor sexual do indivíduo derrotado.

Troféus de Veneração eram muitas vezes oferecidos a Indivíduos Importantes, de Chefes Tribais a Líderes Políticos, passando por Generais e Imperadores. Vários Imperadores Romanos receberam como presente após suas conquistas militares Troféus arrancados de algum Inimigo Valoroso. A Cabeça do famoso General Cartaginês Hannibal, teria sido resgatada de sua sepultura em Lybissa e ofertada aos Tribunos Romanos. Dizem que seu crânio servia como "conselheiro" alertando seus donos contra manobras militares arriscadas. Da mesma forma, existe a lenda de que quando o líder Mongol Genghis Khan morreu, seu crânio teria motivado um grande desentendimento entre indivíduos próximos que desejavam guardá-lo. Acreditava-se que parte de sua habilidade militar poderia ser invocada por seja lá quem o tivesse em seu poder.   

Um exemplo famoso de Troféu de Veneração inclui os restos dos 800 Mártires de Otranto. Antonio Primaldo e 800 de seus leais companheiros de armas foram executados por invasores turcos em um monte nos arredores da cidade italiana de Otranto em 1480. Eles se recusaram a se converter ao Islã e foram degolados um a um. Terminada a execução - o que segundo rumores demorou 3 dias para transcorrer, a população da cidade carregou os restos para a Catedral. No entanto, dedos, dentes, tufos de cabelo e até mesmo alguns pedaços foram removidos no caminho para serem mantidos como Troféus de Veneração extraídos diretamente de mártires. Os homens foram posteriormente beatificados pelo Papa em 1771, o que deu início a uma nova corrida por souvenirs removidos da cripta onde os restos eram mantidos. Uma enorme quantidade de ossos foram retirados por visitantes e curiosos ao longo dos séculos. As pessoas acreditavam serem aqueles restos sagrados. O Papa Francisco beatificou os Mártires de Otranto em 2013, mas a essa altura incontáveis pedaços deles já haviam sido surrupiados.

Os Mártires de Otranto

Um exemplo mais recente envolve o Sargento britânico Thomas Kitching que lutou com o 12o Batalhão de Durham na Grande Guerra. Sua perna foi esmagada na Batalha do Some e precisou ser amputada em 1916. Rather deixou ordens expressas assim que soube que o membro teria de ser removido. Ordenou que um pedaço do fêmur fosse salvo e que ele fosse transformado em um broche para sua noiva, Lizzie. Kitching sobreviveu ao grave ferimento, casou com Lizzie que usou o presente até sua morte.  

Mas se enganam aqueles que pensam que os Troféus de Guerra são algo relegados ao passado e tempos menos esclarecidos. Apesar de leis aprovadas pela maioria das nações, sendo a mais conhecida a célebre Convenção de Genebra assinada em 1929, Troféus de Guerra continuam sendo coletados em campos de batalha.

Em 1944, um congressista norte-americano presenteou o então Presidente Franklin D. Roosevelt com um abridor de cartas feito com o osso do braço de um soldado japonês morto em Saipan. Roosevelt devolveu o macabro presente alguns dias depois e ordenou que ele fosse enterrado de maneira respeitosa. Vários outros itens similares foram trazidos para a América por marines que lutaram no teatro do Pacífico. As forças armadas recolheram a maioria deles, que incluíam todo tipo de souvenir macabro. Do outro lado, japoneses também ficaram conhecidos por coletar prêmios de soldados mortos. Em um bunker em Iwo Jima os militares encontraram uma vasta coleção de mãos, pés, crânios, ossos e genitálias pertencentes a soldados americanos. Os itens ao que tudo indica faziam parte da coleção particular de um oficial nipônico.

Há muitos relatos a respeito da prática ocorrendo nas Guerras da Coréia e do Vietnã, em que não apenas militares foram usados como fonte de troféus. Durante o sangrento conflito no Vietnã o Exército americano teve de emitir ordens expressas para que os soldados envolvidos no front parassem de coletar troféus dos mortos. Mesmo assim, fotografias de soldados posando ao lado de cadáveres mutilados e vestindo colares feitos de orelhas humanas apareceram em jornais com grande destaque.

Marines em Iwo Jima posam ao lado de caveiras de inimigos mortos

Mesmo mais recentemente, na Guerra da Bósnia que se seguiu após a desintegração da Iugoslávia, partes de cadáveres de soldados mortos foram usadas de modo absurdo e desrespeitoso, com mãos se transformando em cinzeiros, ossos em flautas e crânios em copos.

Parece haver uma relação direta entre a escalada de violência nas guerras e o surgimento de Troféus. Quanto mais brutal se torna um conflito, mais desses horríveis itens tendem a aparecer, como se a brutalidade se tornasse uma espécie de licença tácita para que atrocidades ainda maiores pudessem ser cometidas livremente. Em algum momento, no calor do conflito a moral é afogada pelo sangue. 

Comecei esse artigo com um ditado, então aqui vai outro para encerrar: "Na Guerra, a primeira vítima é sempre a inocência dos combatentes".

A frase pode parecer lugar comum, mas não deixa de ser verdade.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Será que um dia ainda veremos um filme de "Nas Montanhas da Loucura"?


O que teria acontecido com o filme "Nas Montanhas da Loucura" do diretor Guillermo Del Toro?

Faz uma década que a clássica novela de H.P. Lovecraft se tornou o projeto dos sonhos do diretor mexicano Guilhermo Del Toro. A história acompanha uma expedição nos anos 1930 que desembarca na até então pouco conhecida Antártida e lá encontra uma antiga civilização de criaturas bizarras que deixou no gelo ruínas que guardam segredos inomináveis sobre o passado remoto da Terra e da própria humanidade. Montanhas é uma das histórias mais populares de Lovecraft, um autor que em vida jamais poderia imaginar a popularidade que conquistaria após sua morte. Redescoberto por uma nova geração de leitores ávidos pelo seu trabalho, Lovecraft se tornou famoso em várias mídias além da Literatura, fazendo seu caminho através de quadrinhos, RPG, desenhos animados e mais recentemente séries de televisão. O cinema, contudo, sempre foi um destino complicado para as obras de Lovecraft.

Com produções modestas mas esforçadas, passando por verdadeiras porcarias indignas de levar seu nome, os filmes baseados na obra de Lovecraft sofrem de uma estranha síndrome de altos e baixos. Montanhas da Loucura poderia sinalizar com a reviravolta que alçaria seu nome a um lugar de destaque nas produções de Hollywood. E vindo dali um sucesso, quem sabe Lovecraft poderia se tornar um nome quente para os estúdios que poderiam adaptar outros contos emblemáticos do Cavalheiro de Providence.

Tudo parecia conspirar para algo monumental, como se as estrelas estivessem próximas de se alinhar. Se existia alguém capaz de fazer a correta transição de Lovecraft do papel para o celulóide, de tornar a aparentemente infilmável história algo factível, esse alguém seria Guilhermo Del Toro, um entusiasta de Lovecraft, nerd, fã de longa data que desfilava por aí com um anel de formatura da Miskatonic University pronunciando os nomes impronunciáveis com uma familiaridade desconcertante.

Em 2006, os rumores começaram a se espalhar e a coisa parecia estar tomando forma.

Del Toro escreveu um rascunho e trabalhou com um roteiro na companhia de Matthew Robbins que ajudou a conceber o script em tempo recorde. Na ocasião, o diretor disse que a paixão pela obra fazia com que as palavras surgissem quase que por encanto. Havia no entanto alguns problemas: a Warner Bros, estúdio que ficaria responsável pelo projeto reclamou do custo elevado (na casa dos 150 milhões) e do teor cínico da história. Para eles, uma história de terror, com conteúdo destinado ao público adulto e com um final pouco feliz era uma aposta perigosa. A saída dada pelos engravatados do estúdio era fazer algumas mudanças no roteiro apresentado: inserir uma personagem feminina, trazer a história para os dias atuais e fazer algumas mudanças no final. 


Os fãs prenderam a respiração.

Del Toro bateu o pé e disse que não comprometeria sua visão da obra de Lovecraft para agradar ao estúdio. Para ele, a história era perfeita da forma que estava e qualquer mudança iria diluir seu impacto, e como todos sabemos, uma história de horror sem impacto é receita para o fracasso.

Apesar de parecer ter ganho o primeiro round, o estúdio acabou recuando. Del Toro recebeu uma proposta para fazer o filme com 65 milhões, uma fração do que se julgava necessário. Foi a vez dele recuar. O projeto foi então engavetado e Del Toro foi lidar de dois outros projetos que tomaram sua atenção pelos quatro anos seguintes Hellboy II e a trilogia The Hobbit.      

Vamos avançar para 2010, quando Nas Montanhas da Loucura foi resgatado do limbo em que se encontrava por ninguém menos que James Cameron que havia acabado de bater todos os recordes de bilheteria com Avatar e que ainda era festejado como o homem que fez o Titanic navegar por águas milionárias. Era sem dúvida um nome de peso! Cameron tinha interesse de ser produtor e tudo parecia conspirar para as coisas avançarem. Ele fez contato com outro estúdio, a Universal Pictures que demonstrou enorme interesse na história, ainda que torcesse o nariz para os 150 milhões e para o final criado por Del Toro.

Ainda assim, as notícias davam conta de que Montanhas seria a maior aposta da Universal para o ano. Del Toro seria o Diretor e receberia carta branca para fazer o que bem entendesse para recriar a expedição ao Inferno Congelado. O nome de Tom Cruise passou a ser associado ao filme. O ator havia supostamente lido o roteiro e se animado com a ideia de viver o Professor Dyer. Outros nomes foram sugeridos em rumores cada vez mais animadores a respeito da produção: James McAvoy (dos filmes da franquia X-Men) que estava se tornando um ator bastante conhecido e Ron Perlman (o Hellboy em pessoa) um amigo e parceiro de longa data de Del Toro. Com grandes expectativas, Del Toro começou a trabalhar nos conceitos para que o filme fosse realizado em 3D, a única imposição da Universal.

Em uma entrevista para a FearNet, Cameron abriu o jogo e contou o que os fãs poderiam esperar da adaptação. De acordo com o produtor, o filme seria um triunfo do ponto de vista visual. Efeitos digitais de tirar o fôlego que marcariam um novo patamar de excelência técnica. Isso vindo de alguém que acabara de dirigir Avatar.


"O desenho da produção é fenomenal - tanto os conceitos tridimensionais quanto os em 2D são notáveis. As maquetes, os testes com CG, o trabalho dos artistas envolvidos. Os fãs certamente ficarão satisfeitos com o que vamos atingir nesse filme".   

Os primeiros modelos de como seriam as criaturas e como seria a interação delas com os personagens animou o estúdio. Ao menos por alguns minutos até eles verem quanto aquele primor custaria. O orçamento do filme chegaria a algo em torno dos 175 milhões, um valor com tendência a inchar ainda mais. 

O risco começava a fazer o estúdio suar frio. A Universal não estava feliz com o grau R (restricted) que o filme teria. Pediram uma reunião com Del Toro e Robbins para conversar sobre alguns aspectos mais sanguinolentos do roteiro e que sem dúvida tornavam o filme adequado apenas para o público adulto. Ou seja, nada de crianças e adolescentes, uma das fatias mais lucrativas da bilheteria. Os produtores expressaram a preocupação de que Montanhas não era um sucesso comercial em face de seu conteúdo aterrorizante. Del Toro bateu de frente com os produtores, contando apenas com o apoio de James Cameron. Ele disse que não iria remover os aspectos mais pesados da trama, e que se o fizesse, o filme não iria funcionar de modo algum. A queda de braço continuou sem que ninguém movesse um centímetro.

Del Toro concedeu uma entrevista na época em que dizia que "Os Pássaros" (clássico de Hithcock) era uma das suas maiores inspirações. Ele usaria efeitos especiais para realçar a visão perturbadora de Lovecraft. Isso tornaria o filme atraente para o grande público, mas não comprometeria sua visão. "O público adora o terror, quando ele é bem feito!" 

Adam Fogelson, o chefe do Departamento de Produção da Universal Pictures, eventualmente aceitou o projeto após várias reuniões com os cineastas. Estes deveriam ceder em apenas dois pormenores: incluir uma protagonista feminina (falou-se de Angelina Jolie por algum tempo) e refazer duas ou três cenas que aos olhos dos produtores seriam certeza de graduação R. Com essas sendo minimamente atenuadas, eles esperavam obter uma classificação PG-17, algo menos arriscado para o estúdio. Na ocasião, Fogelson descreveu o filme da seguinte maneira:

"Será uma das mais extraordinárias e gratificantes experiências cinematográficas dos últimos anos". 


Com sinal verde, Del Toro começou a trabalhar nos detalhes do filme cujo orçamento foi fixado em 160 milhões, o bastante para atingir o grau de excelência esperado. O filme deveria chegar aos cinemas em 2012 e ser uma adaptação fiel seguindo o roteiro original nos menores detalhes. Isso significa que os questionamentos existenciais e o horror cósmico iriam permear cada linha do texto de forma pessimista e aterrorizante. Del Toro queria também monstros e ação, sustos e arrepios. Além disso, esperava apresentar a primeira e mais fiel aparição do Grande Cthulhu

Com o projeto em pré-produção avançando o filme parecia ser uma realidade cada vez mais próxima. Os fãs esfregavam as mãos em antecipação e repetiam o mantra "em Del Toro, nós confiamos". Mas então vieram os problemas detectados na pré-produção.

O 3D e os efeitos CGI custariam, afinal de contas, muito mais caro do que o imaginado, inchando o orçamento para a casa dos 200 milhões segundo estimativas conservadoras. Del Toro queria nada menos do que a mesma equipe empregada em Avatar, algo com que Cameron já havia concordado.

O grande problema, no entanto se encontrava em outra produção que já estava sendo concluída, a prequel de Alien dirigida por Ridley Scott: Prometheus. Muitas pessoas apontavam para uma alarmante semelhança entre os roteiros quanto a origem da raça humana, um dos temas centrais em Montanhas da Loucura. Os dois filmes seriam lançados por volta da mesma época, o que não era uma boa perspectiva do ponto de vista financeiro. Haveriam inevitáveis comparações e os dois filmes poderiam vir a sofrer com isso. Ademais, Prometheus havia largado na frente e Ridley Scott havia prometido entregá-lo com pelo menos 2 meses à frente de Del Toro.

Com tudo isso, o projeto foi colocado primeiro em espera. A Universal ainda tentou negociar com Del Toro uma classificação PG-13, mas nesse momento o próprio diretor decidiu que aquela briga iria continuar indefinidamente. Em meados de 2010, o projeto foi arquivado uma vez mais e continua mantido nesse arquivo como um daqueles filmes extremamente antecipados, mas que dificilmente um dia serão lançados.


Mas o que realmente aconteceu?

Depois do fracasso com a Universal, o Diretor tentou vender o projeto para outros estúdios, mas a essa altura todos já sabiam do altíssimo custo de produção agregado aos riscos inerentes do projeto. Del Toro estava irredutível quanto aos aspectos técnicos e artísticos de seu filme, ele não iria abrir mão de nada que pudesse comprometer sua visão. A Warner voltou a sinalizar para ele, aceitando aumentar o orçamento (sem no entanto, atingir os 200 milhões estimados), mas para isso exigia o comprometimento com um terror menos pesado, uma personagem feminina, um subplot explorando um romance e um final menos denso. Quando Del Toro ouviu que a proposta envolvia uma classificação PG-13 ele teria até abandonado a reunião.

Prometheus também não ajudou em nada. A história similar e o fato do filme receber grande atenção também não eram bom sinal. A luta entre os filmes seria desigual já que Alien era uma franquia consolidada, já Lovecraft não tinha muito a mostrar além de Reanimator. Del Toro estava desanimado com o anúncio de Prometheus, ele temia que o filme seria um sucesso estrondoso e que seu filme ficasse à margem dele...

No final das contas, Prometheus acabou não sendo o filme que se esperava. Apesar de ter conseguido uma boa bilheteria, o filme de Ridley Scott só atingiu uma fração do esperado. Tecnicamente perfeito, o roteiro tinha mais buracos que um queijo suíço. Crítica e Público concordavam que não era exatamente aquilo que se queria e a franquia Alien ficou em modo de espera. Se Prometheus não conseguiu o almejado, será que Montanhas teria melhor sorte?

Del Toro decidiu que tentaria lançar seu nome como diretor respeitado de filmes de ação coalhados de Efeitos Especiais. Ele tentaria um blockbuster na forma de Pacific Rim (2013). Cado o filme, centrado em robôs e monstros gigantescos destruindo cidades, conseguisse o retorno esperado, ele teria respaldo para projetos de altíssimo risco como Montanhas na Loucura. Era uma aposta perigosa que Del Toro aceitou de bom grado.


Infelizmente Pacific Rim, não foi o sucesso que se esperava, terminou por apenas empatar os elevados gastos da produção, em parte graças a bilheteria internacional. E Pacific Rim havia custado 150 milhões, tendo classificação PG-13. Os produtores viram aquilo como um alerta de que o nome de Del Toro podia ser respeitado, mas que seus filmes não tinham o retorno financeiro que se esperava. Assim como havia acontecido com Blade, Hellboy e O Labirinto do Fauno, outros filmes de Del Toro, o público acabava por descobri-los depois deles deixarem os cinemas. Tornavam-se adorados pelos fãs, mas tarde demais para os padrões de Hollywood.

Com o quase fiasco de Pacific Rim e com o Hobbit sendo considerado um projeto megalomaníaco, Del Toro teve de que se reinventar e fez isso com classe. Buscando algo menor e mais introspectivo ele conquistou a glória com "A Forma da Água" (2017), que lhe rendeu o Oscar de Melhor Filme e Direção.

Com o sucesso, o nome de Guilhermo Del Toro se tornou respeitado novamente e muitos esperavam que agora ele poderia conduzir o projeto que bem entendesse. Desse modo, Nas Montanhas da Loucura finalmente estaria apto a ser filmado e lançado, certo?

Bem, até agora isso não aconteceu...

O roteiro continua em poder da Universal e ele permanece com o status de pré-produção, o que nos faz pensar que não foi enterrado de uma vez por todas. Um porta-voz da Universal chegou a cogitar que o filme poderia seguir adiante dirigido por outra pessoa, mas nesse caso Del Toro reagiu dizendo que seu roteiro não será negociado.

Com certeza o diretor não esqueceu da adaptação de H.P. Lovecraft e continua sonhando com ela. Esse é um projeto do qual ele não consegue se despedir e permanece como uma meta a ser alcançada. Ele disse em repetidas entrevistas que ainda espera filmar "Nas Montanhas da Loucura" e que esse dia irá chegar num futuro próximo. No entanto, ele parece bem mais ponderado e menos afoito em impor o filme na base do custe o que custar. Del Toro parece ter compreendido que os filmes tem um momento certo para serem realizados e que é questão de tempo até que Montanhas complete seu caminho.


O sucesso recente da série da HBO Lovecraft Country ajudou a alavancar a esperança, mas ao mesmo tempo a imagem de Lovecraft como indivíduo preconceituoso não ajudou muito. Inegavelmente Lovecraft era um gênio, mas suas opiniões são o pesadelo para qualquer relações públicas. Vender um filme baseado em sua obra como "ame a obra, não o autor" parece ser a proposta mais acertada. Ainda assim existe certo grau de polêmica.

Mas será que ainda veremos Del Toro no timão desse navio?   

Em uma entrevista recente no Indiewire, ele disse que continuará lutando para ver esse filme pronto e que só vai desistir depois de estar morto e enterrado. Há boatos de que a Netflix em 2019 teria entrado em contato com a Universal Pictures, que detém os direitos sobre o roteiro escrito por Del Toro e que teria sinalizado com interesse de adquiri-lo. Não se sabe em que pé está essa negociação se é que ela existe. Seria o filme então transformado em uma série? E se for, isso seria bom ou ruim para a obra?

Enquanto essas perguntas não são respondidas, os fãs tentam observar o horizonte distante, que parece coberto por uma densa neve branca e um nevoeiro espesso. Eles esperam enxergar o contorno das Montanhas da Loucura se delineando a qualquer momento, mas os fãs fiéis de Lovecraft devem saber que isso só irá acontecer quando as estrelas estiverem certas.

Até lá nos aguardamos.

Bom, enquanto o filme não sai, podemos sonhar com o cartaz. Que tal esse aqui?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

O Ladrão de Cabelos - Um Invasor em busca de estranhos troféus


Localizada em Jackson County, Mississippi, encontra-se a cidade de Pascagoula. Embora hoje ela seja o centro do distrito de Jackson e conte com uma população de mais de 30 mil pessoas, houve um tempo em que ela não era mais do que uma tranquila vila de pescadores onde nada de importante acontecia. Apenas na Segunda Guerra, Pescagoula experimentou um certo desenvolvimento, quando foi convertida em estaleiro para a Marinha norte-americana desesperada por suprir a demanda por navios de guerra. 

A cidade então inchou, atraindo operários e técnicos especializados que passaram a trabalhar e morar lá. Em apenas dois anos, a população residente triplicou. Infelizmente isso trouxe uma quantidade considerável de pessoas indesejáveis para a sociedade local. A maioria eram simples ladrões, bêbados e bandidos raia-miúda, mas houve um outro criminoso que se instalou na cidade nesse período, um que deu origem a um dos mais bizarros casos de invasor misterioso de que se tem notícia.   

Tudo começou em 5 de junho de 1942, quando duas jovens chamadas Mary Briggs e Edna Hydel estavam dormindo em seus quartos no convento de Nossa Senhora das Vitórias em uma, até então, tranquila noite de verão. As duas acordaram assustadas por um ruído alto que atraiu sua atenção para a janela do aposento. Ali, iluminado pela luz da rua e emoldurado pela janela quebrada, estava a silhueta de um homem pequeno e magro. Ele olhou na direção das moças antes de agilmente escalar o parapeito e escapar para a escuridão da noite. Ao que tudo indica, o sujeito havia acidentalmente quebrado o vidro em sua tentativa de deixar o quarto. 

As moças assustadas gritaram e chamaram por ajuda que logo veio em seu socorro. Acreditavam se tratar de um ladrão, mas no quarto, após uma rápida revista, não deram pela falta de nada de valor. Uma outra moça então chamou a atenção para um fato curioso: cada uma das moças parecia ter perdido uma mecha de cabelo, como se tivesse sido cortado cuidadosamente com uma tesoura. Embora ninguém tenha se ferido, aquilo era estranho, já que alguém havia entrado no quarto de duas moças na calada da noite com o objetivo único de cortar seus cabelos.

Até essa altura, a polícia não se importou muito com o ocorrido, afinal, parecia, quando muito, algum tipo de brincadeira de gosto duvidoso. Entretanto, esse caso foi apenas o início de algo que se desenrolou numa série de estranhos incidentes cada vez mais bizarros.

Uma semana mais tarde, o invasor cortou uma tela e se infiltrou no quarto da casa da família Peattie para roubar um tufo de cabelo de uma menina de seis anos que dormia logo ao lado de seu irmão. Nesse caso ninguém ouviu nada e só perceberam que havia acontecido algo na manhã seguinte. Uma pegada deixada por um pé descalço e um punhado de terra na entrada da casa foram todas as pistas encontradas. O invasor não roubou nada - embora tenha passado pela sala onde havia um relógio caro sobre a mesa - e deixou a residência sem ferir ninguém.


Nessa mesma semana aconteceriam mais três casos similares, com o invasor cortando telas de proteção para entrar em casas no meio da madrugada para reclamar seu troféu de cabelo.

Para muitos, aquilo parecia uma brincadeira inofensiva, ainda que extremamente desagradável. Contudo as coisas iriam mudar e se tornar violentas, quando o Sr e Sra Heidelberg foram acordados no meio da noite e atacados brutalmente por um homem empunhando uma barra de ferro. O sujeito, descrito como um homem baixo com cerca de 30 anos, usou a barra para espancar o casal arrancando-lhes dentes e deixando ferimentos na cabeça. A Sra Heidelberg, atordoada pelo ataque, ainda ouviu o homem se aproximando e repetindo para si mesmo: "Vocês tinham que estar dormindo! Tinham que estar dormindo! Mas tiveram de acordar, tiveram de dificultar as coisas..." ele repetia nervosamente. Então retirou do bolso uma tesoura e cortou cuidadosamente os cabelos da mulher. Ela percebeu que o sujeito guardou os cabelos em um envelope, antes de sumir.

A repentina escalada de violência deixou a população de Pascagoula em pânico. Havia um maníaco na cidade, um que não se importava de espancar as pessoas para obter seu estranho prêmio. Esse estranho caso foi o suficiente para deixar as pessoas em alerta. Os jornais, por sua vez, faziam enorme estardalhaço com o caso, chamando o perpetrador pelo apelido de "O Barbeiro Fantasma de Pascagoula". As pessoas estavam temerosas e agora trancavam portas e janelas, coisa que jamais acontecia na pacífica cidade, sobretudo, nos meses de mais calor.

Três noites depois o Ladrão de Cabelos atacou novamente. Dessa vez, uma moça de 22 anos chamada Mae Anderson foi o a vítima. Ela acordou no meio da noite e percebeu que não estava sozinha no quarto. O homem percebendo que ela estava despertando correu na sua direção colocando a mão sobre sua boca. Ele sentou sobre ela, e a moça percebeu que o sujeito estava nu. Ele sussurrou em seu ouvido: "Fique calada ou vai ser pior. Eu não quero ferir você a não ser que precise". A moça perdeu a consciência com o susto e terror, quando acordou o invasor havia desaparecido assim como parte de seu cabelo cortado com tesoura. Na beirada da cama, o perpetrador havia deixado uma mancha de sêmen, mas não havia machucado a moça ou roubado qualquer coisa.

O medo era palpável em Pascagoula, sobretudo porque muitos acreditavam que o monstro havia violentado a moça e esta se encontrava traumatizada, incapaz de lembrar do horror. As pessoas ficavam acordadas, ouvindo qualquer ruído estranho que pudesse denunciar o ataque do ladrão de cabelos. Dois grupos de vigilância se formaram para proteger a vizinhança, os homens andavam armados com espingardas e tacos de baseball. Não encontraram nada!


Vários outros relatos chegaram nas semanas seguintes, sempre envolvendo casos em que um invasor havia entrado na calada da noite, cortando telas ou destrancando portas para chegar até suas vítimas. Agora ele não se contentava de cortar apenas uma mecha do cabelo, mas produzia enorme estrago cortando tufos inteiros para saciar sua compulsão bizarra. Aos poucos, um padrão começou a se formar: o ladrão de cabelos dava preferência a cabelos loiros, era mais ativo nas segundas e sextas e parecia se satisfazer sexualmente com suas ações. Em mais de uma ocasião, encontrou-se manchas deixadas no colchão ou mesas de cabeceira dos quartos. O maior temor era justamente que o criminoso já havia demonstrado propensão para a violência e não parecia disposto a ser capturado. Ainda que aparentemente não tivesse molestado nenhuma das mulheres, tal coisa parecia ser questão de tempo.

As autoridades estavam desesperadas para pegar o invasor e tomaram medidas para isso. Contrataram seis novos delegados e recrutaram voluntários para montar uma força tarefa que deveria patrulhar as ruas. Dois cães farejadores foram trazidos de Memphis para ajudar na caçada. Até mesmo o Exército, que havia se instalado na cidade ajudou na caçada, reformulando horários de trabalho e auxiliando as autoridades com membros da Polícia Militar destacados para a função. Apesar de todos esses esforços ninguém foi preso e a única pista foi um par de luvas ensanguentadas encontradas em um bosque próximo. Se havia alguma conexão entre as luvas e o Barbeiro Fantasma ninguém sabia ao certo. 

Pior, o Ladrão de Cabelos continuava atacando impunemente apesar da polícia patrulhar as ruas que agora ficavam iluminadas. O Ladrão de Cabelos conseguiu entrar na casa da Sra. Edith Newman de 32 anos, esposa de um militar enviado para lutar. Ela acordou com o homem misterioso em seu quarto e conseguiu descrever o que se passou em termos no mínimo perturbadores. Assim que percebeu que ela estava desperta, ele avançou contra ela e a agrediu com um soco no rosto que a fez perder os sentidos. Edith acordou posteriormente, descobrindo que estava amarrada na guarda da cama com pedaços rasgados de lençol usados para imobilizá-la pelos pulsos e tornozelo. Sua boca foi amordaçada e ela se sentiu obviamente aterrorizada temendo o que viria a seguir.

O invasor ainda estava ali com ela, nu, usando uma máscara na face. Ela viu então que ele se aproximou para afagar sua cabeça: "Você é bonita! Que cabelo bonito!" disse com um sussurro. Em seguida apanhou a tesoura e começou a cortar parte de seu farto cabelo loiro. O mais estranho veio a seguir, o maníaco levantou a máscara o bastante para destampar a boca onde enfiou mechas inteiras do cabelo recém cortado. O sujeito engolia parte do cabelo ajudado por goladas numa garrafa que estava sobre a cômoda. A sra. Newman assistiu aquilo transtornada virando o rosto de um lado para o outro, o que desalojou a mordaça que a impedia de falar. Ela então soltou um grito de desespero aterrorizante. O maníaco saltou sobre ela e socou seu rosto fazendo com que ela perdesse os sentidos. Alertados pelo grito, vizinhos chamaram a polícia, mas quando estes chegaram, encontraram a mulher em choque. Não havia nenhum sinal do Ladrão de Cabelos que escapou novamente.

A essa altura, as pessoas já começavam a se perguntar se não haveria algo sobrenatural nos ataques. Circulava o boato de que o Ladrão de Cabelos não era um homem e sim um fantasma capaz de vagar pela cidade sem ser visto ou detectado pelas autoridades. Uma coisa era certa, depois da perturbadora descrição dada pela mulher, a população estava disposta a acreditar em qualquer coisa. A Sra. Newman não chegou a sofrer ferimentos graves, mas o choque do incidente a deixou profundamente traumatizada. O que poderia significar esse comportamento bizarro? O que pretendia o Ladrão e porque tal coisa parecia ser tão importante para ele?

Após uma ausência, possivelmente motivada pela vigilância cada vez mais rigorosa, o Invasor atacou três semanas depois em uma área isolada nos arredores da cidade. Dessa vez, o maníaco usou de uma estratégia diferente para vitimar a Sra. Elisa Taylor, 24 anos, esposa de um soldador que trabalhava no estaleiro naval nos turnos da madrugada. Taylor contou que sentiu um forte cheiro de produto químico antes de perder os sentidos. Seu marido a encontrou desmaiada com parte do cabelo faltando. A polícia suspeitava que o invasor tivesse usado um agente químico, provavelmente um derivado de clorofórmio para agir sem o risco de ser descoberto. O ataque causou uma histeria jamais vista na cidade, com a população exigindo que o responsável por aquela onda de crimes fosse capturado. Um tumulto, causado por uma suspeita entre funcionários do estaleiro quanto a um dos seus colegas, quase terminou com um inocente sendo linchado. O acusado em questão sequer estava na cidade na época dos primeiros ataques e possuía álibis que o isentavam de qualquer responsabilidade.


Em meio a esse pânico crescente a polícia surpreendeu a todos anunciando que havia encontrado um suspeito que acreditavam ser o Ladrão de Cabelos. O homem era um químico, descendente de alemães chamado William Dolan que trabalhava com compostos químicos e tinha uma longa história de rancor com os Heidelberg. O elemento mais comprometedor, no entanto, foi um envelope de papel contendo cabelo humano achado em uma gaveta trancada em sua casa. O cabelo loiro supostamente pertencia a Sra. Heidelberg e havia sido guardado com enorme cuidado. Dolan se disse totalmente inocente, afirmava que não tinha nada a ver com os crimes cometidos e que havia sido incriminado por ser descendentes de alemães. Dizia que a polícia havia forjado a prova dos cabelos achados em sua casa.

Havia muita discussão a respeito da culpa de Dolan e muitos achavam que realmente ele servia como bode expiatório. Uma teoria é que ele foi incriminado para desviar a verdadeira identidade do Ladrão de Cabelos, que na concepção de alguns seria um oficial militar de carreira, uma pessoa de família importante ou ainda um cidadão acima de qualquer suspeita, o pastor e o prefeito estavam entre os suspeitos. Dolan era um simpatizante do nazismo, em 1938 havia participado de demonstrações favoráveis ao regime alemão pelo seu antissemitismo raivoso. Muitos o viam desde então como um traidor embora ele não tivesse realizado nenhum outro ato de apoio aos nazistas, ao menos desde a entrada da América na Guerra. Alguns especulavam se Dolan não teria sido incriminado pelo próprio Ladrão de Cabelos que tramou tudo para escapar da perseguição. 

Dolan não tinha álibi para todas as noites em que o Barbeiro atacou, vivia sozinho em uma cabana isolada e não tinha muitos amigos. Era um tipo solitário e nem um pouco simpático. Ainda assim, isso seria o bastante para apontá-lo como o criminoso que colocou a cidade de joelhos? Pesava contra a teoria o fato dele ser alto, com quase 1,85 e ter um QI muito baixo, de apenas 100.

Muitos apontavam o fato de que, desde a prisão nenhum outro ataque havia ocorrido. Para todos os efeitos, o sumiço do criminoso apontava que Dolan podia ser o culpado afinal de contas. Dois boatos circularam pela cidade nos dias posteriores à prisão: o primeiro de que um Tenente do Exército havia sido transferido de Pescagoula. Posteriormente muitos acreditavam que ele recebeu baixa por transtorno psicológico e que teria sido mandado para uma unidade militar de tratamento mental. Não s efalava muito à respeito porque as forças armadas cuidavam dos seus, mesmo os problemáticos. O outro boato mencionava o suicídio de um rapaz baixo e atarracado de 20 anos chamado Jerry Hinds. O rapaz havia se enforcado num banheiro público depois de ser dispensado do serviço militar. Ele foi encontrado nu com uma carta de despedida em que admitia sua culpa nos crimes, ainda que tal carta jamais tenha sido vista. Hinds, descrito como uma pessoa introvertida, estranha e com uma passagem pela polícia por exibição indecorosa, era um excelente suspeito.

Uma vez que os crimes cessaram logo em seguida, e a situação de guerra continuou atraindo muito mais atenção, a população começou a deixar de lado o bizarro caso. Aos poucos ele foi se tornando uma estranha lembrança, quase uma nota de rodapé dos tempos da Segunda Guerra.

Restam, no entanto muitas questões. A principal: Por que cabelos?


À Luz da Psiquiatria Forense, o criminoso parecia ser um clássico fetichista compulsivo, um indivíduo que se satisfaz com a obtenção de determinados objetos que, para ele, possuem um significado profundo. Os fetichistas geralmente revivem suas fantasias e precisam estabelecer uma conexão cada vez mais material com suas lembranças exuberantes. Não é raro que quando iniciam uma carreira de crime, sigam adiante com ela, para sustentar sua necessidade patológica. Criam coleções guardadas com enorme devoção e zelo. Estas funcionam como um componente físico para ativar suas lembranças. O risco, a sensação de domínio e principalmente a excitação é rememorada pela manipulação dos objetos - chamados de troféus. 

Cabelos são um tipo de troféu comum entre fetichistas. Eles simbolizam a vaidade feminina e são também elemento associado com a beleza. O fetiche poderia ser por afagar os cabelos da vítima, uma sugestão sexual clara ou ainda cortar os cabelos, um elemento claro de humilhação. Considerando que o criminoso demonstrava alívio sexual após cortar os cabelos, é provável que ele fosse normalmente impotente e que dificilmente conseguisse manter uma relação satisfatória.   

Geralmente o fetichista clássico não incorre em violência, contudo, não é impossível que a patologia mental possa evoluir nesse sentido, sobretudo se eles se sentirem ameaçados. Ao contrário de muitos outros criminosos eles não desejam ser apanhados pois tem vergonha de seus hábitos e do que as pessoas podem pensar deles. Os fetichistas podem recair em violência física, cometendo estupro ou até assassinato em certos casos. O Ladrão de Cabelos parecia estar progredindo nessa direção e seria questão de tempo até ele incorrer em algo mais grave do que mera invasão. É extremamente raro que eles parem de cometer atos criminosos, exceto se capturados ou totalmente impedidos de fazê-lo. A compulsão do fetichista é muito forte, quase um vício.

Isso não explica, entretanto, a medonha descrição dos cabelos sendo consumidos.

Nesse caso, a explicação nos leva a assumir que o criminoso tinha uma compulsão tão exacerbada que o forçava não apenas a coletar os troféus, mas incorporá-los inteiramente a si mesmo. Ele não guardava os prêmios conquistados, mas os absorvia por inteiro acreditando que aquilo era o mais próximo que ele poderia chegar da intimidade almejada. 

A verdadeira identidade do Ladrão de Cabelos ainda hoje é motivo de debate. William Dolan chegou a ser condenado, mas eventualmente foi colocado em liberdade no ano de 1951. Os autos de seu processo atestam que ele foi condenado por associação criminosa e receptação de mercadorias roubadas, não pelas invasões em Pascagoula como muitos supunham. Ele negou até sua morte que fosse o responsável pelas invasões e que foi incriminado para que o verdadeiro perpetrador escapasse ileso. Ele morreu em 1960 de câncer no pulmão.     

Seja lá o que tenha acontecido entre junho e setembro de 1942 em Pascogula, Mississippi, é provável que jamais venhamos a compreender. O caso permanece hoje como uma nota de rodapé na história em meio a um momento de grande comoção.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Explorando os Mythos mais obscuros - Nug e Yeb as obscenidades gêmeas


Dentre os Mythos de Cthulhu, essas duas obscuras entidades referidas coletivamente, constituem um mistério profundo envolvido por um enigma indevassável. A verdadeira origem e propósito de Nug e Yeb permanecem insondáveis e nenhum culto, estudioso ou feiticeiro pode se dar ao crédito de afirmar entender sua natureza profana.

Conhecidos como as Obscenidades Gêmeas, eles são citados brevemente no Necronomicon. Os horrores parecem compartilhar da mesma origem sendo tratados como irmãos gêmeos. Acredita-se que eles sejam as crias de Shub-Niggurath e de Yog-Sothoth, gerados nas entranhas do universo quando os dois titânicos Deuses Exteriores se encontraram. Seu nascimento teria se dado através de fissão assexuada. Em outras versões o sêmen de Yog-Sothoth teria fertilizado o útero fecundo de Shub-Niggurath, dando origem aos gêmeos que foram gestados no ventre da Cabra Negra. Eles estariam entre as mais poderosas crias da Cabra Negra, descendentes diretos de duas das mais portentosas forças cósmicas do universo. Outra suposição é que Nug e Yeb seriam a prole de Shub-Niggurath e Hastur, o que parece mais razoável considerando que essas duas entidades são frequentemente mencionadas em conluio. 

Além dessa procedência familiar ilustre, as aberrações, segundo alguns estudiosos, teriam produzido ninguém menos que Cthulhu e Tsathoggua. Essa teoria foi fortemente contestada e resultou em um ponto de atrito entre diferentes cultos. Algumas seitas consideram a mera noção uma heresia, enquanto outras defendem que muitas entidades dos Mythos possuem uma complexa relação de afinidade entre si - uma que não nos cabe ponderar a respeito.


Como acontece com a maioria dos detalhes sobre o Mythos, não há como corroborar essas suposições. Tudo pode não passar de um simples delírio da mente distorcida de Abdul Al-Hazred que escolheu vê-los como irmãos gêmeos. São poucos os tomos que versam a respeito da genealogia do Mythos, em especial os Pergaminhos de Pnom, tratado em sânscrito que oferece um vislumbre da descendência dos Deuses e suas progênie.

O que se sabe é que Nug e Yeb foram venerados em Irem, ainda quando a Cidade dos Mil Pilares era habitada pela raça não-humana que a construiu. Posteriormente, milênios depois da cidade ser abandonada, tribos nômades encontraram o local em que os habitantes originais cultuavam seus deuses. Naquelas câmaras de pedra ainda reverberavam as energias dos antigos e estas despertaram nos homens a vocação para seguir tais divindades. O lendário Santuário dos Ritos localizado nas ruínas de Irem guarda vários entalhes em suas paredes onde Nug e Yeb são representados como forças cósmicas opostas. Um desses entalhes ancestrais teria dado origem ao símbolo místico do yin-yang, representando o equilíbrio entre forças antagônicas. 

Dos desertos da Arábia Saudita onde Irem permanece sepultada sob as areias, os cultistas teriam carregado o saber de Nug e Yeb. Um dos lugares em que esse saber profano teria florescido foi o lendário continente de Mu localizado em algum lugar do Pacífico. Os dois, no entanto jamais foram tão populares quanto os outros horrores abertamente venerados pelo povo do continente. Em parte por ser caráter egoísta e indiferente, permaneceram louvadas por alguns poucos dementes. 


Quando Mu foi destruída, o conhecimento dos Deuses viajou novamente, encontrando caminho até as cavernas profundas de K´N-Yan. Nesse reino subterrâneo, em meio a um abominável povo imortal, os Gêmeos granjearam maior reconhecimento. O povo de K-N-Yan, conhecido pelo seu misticismo e devoção ao Mythos dedicou a Nub e Yeb vários rituais. A maioria dessas cerimônias orgiásticas eram especialmente execráveis, envolvendo sacrifícios, violação e tortura como elementos fundamentais. Durante tais cerimônias, um simulacro humano incorporava a essência das Obscenidades Gêmeas tornando-se um ser andrógeno. Ele então era levado a um templo na forma de arena onde o aguardava um grupo de homens e mulheres escolhidas para a Cerimônia de Acasalamento. O simulacro devorava os homens depois de extrair deles o esperma para ser alterado em seu próprio corpo e o usava para inseminar as mulheres. Estas eram impregnadas para gerar bebês ungidos por Nug e Yeb. As mulheres estavam fadadas a morrer quando dessem à luz aos horrores que cresciam em seu útero. Delas iria emergir uma nova geração de simulacros ainda que apenas o mais forte deles sobrevivesse.  

Para os sacerdotes de K'n-yan, os gêmeos são os criadores do Grande Jardim em que Yig viceja. O Deus Serpente, que nos milênios seguintes se converteria em uma das entidades principais do prolífico Panteão de K'n´yan acabou sendo associado intimamente aos deuses gêmeos. Em várias interpretações teológicas esse Jardim luxuriante, criado por Nug e Yeb, seria o equivalente a um Paraíso que permitiu o surgimento de todos os seres vivos, inclusive o homem. Ele representaria metaforicamente a Terra e sua luxuriante natureza. 

Contudo, esse Jardim está fadado a ser destruído quando o alinhamento cósmico sinalizar com o retorno dos Grandes Antigos. Na filosofia de K´n-yan, os dois serão os responsáveis por abrir os portais através do qual os Antigos se materializarão na Terra. Antes eles irão devastar a superfície do planeta com fogo e água, que consumirá toda vida no globo. Isso irá purificar a Terra e a deixará pronta para o retorno dos Antigos. 


As escrituras sagradas de K'n-yan atestam a existência de dois dispositivos localizados nos polos do planeta que serão usados para extinguir toda vida no globo. Esses misteriosos dispositivos conhecidos como Fornalha de Yeb e Tocha de Nug, supostamente estão enterrados sob o gelo dos polos aguardando o momento de serem acionados pelos gêmeos. Qual a sua forma, como surgiram e quem os construiu são questionamentos jamais explicadas embora alguns teóricos acreditem que os dispositivos sejam na verdade vulcões adormecidos.

Até onde se sabe, não existe nenhum culto puramente humano venerando Nug e Yeb nos últimos milênios. O caráter egoísta e abominável dos rituais talvez tenha contribuído para afastar qualquer culto devotado a esses horrores. Algumas doutrinas esotéricas disseminadas pelos Monges de Leng ensinam que as Obscenidades Gêmeas seriam respectivamente os nomes verdadeiros dos obscuros Grandes Antigos Lloigor e Zhar. Esses dois Deuses são cultuados exclusivamente pelos degenerados Tcho-Tcho que habitam os planaltos da Ásia Central.

A aparência blasfema de Nug e Yeb é bastante similar o que torna difícil saber quem é quem. De fato, há muita controvérsia a respeito da identidade desses horrores. 

A dupla surge como uma enorme massa purulenta que se contorce, reforma e se desfaz a cada instante. As criaturas são compostas simultaneamente por gases de vapor nocivo e matéria sólida alienígena. A substância gasosa os envolve num tipo de envelope miasmático de coloração verde amarelada extremamente densa como um nevoeiro em torvelinos. O gás é tóxico recendendo a um fedor profundo de cloro e enxofre que empesteia o ar e irrita tanto olhos quanto a garganta. Esse gás forma uma espécie de defesa que afugenta qualquer tentativa de aproximação.  


A massa sólida que dá forma aos horrores por sua vez assume a aparência de um aglomerado de carne cinzenta pustulenta e ulcerosa que flutua em meio ao nevoeiro daninho. Essa massa pode medir algo entre dois e dez metros de comprimento, variando de acordo com a intensidade com a qual os deuses escolhem se materializar. Olhos arredondados com íris róseas descoloridas e desprovidos de pálpebras surgem em toda massa brotando, observando e então se desmanchando. Da mesma maneira uma infinidade de bocas largas aparecem rasgando horizontalmente a superfície; elas estalam, mordem e cospem antes de desaparecer ao serem reabsorvidas. Uma infinidade de estruturas similares a esfíncteres também se abrem e fecham em todo canto. O conjunto inteiro goteja e escorre numa farta torrente de saliva, suor, bile, pus e sânie que cobre inteiramente as criaturas numa medonha combinação de excrementos.

Na parte inferior das criaturas destacam-se estruturas coalescentes que pendem soltas no ar, semelhantes a pernas descarnadas dotadas de garras e por vezes cascos. Estas escoiceiam à esmo, aparentemente sem uma utilidade prática visto que não são usadas para deslocamento. Abaixo delas uma floresta de órgãos sexuais, tanto masculinos quanto femininos se formam e reformam, intumescendo e molificando à todo momento.

Os horrores flutuam lentamente parecendo grandes balões de ar que se mantém a alguns centímetros do chão. Eles evitam tocar o solo ou qualquer objeto sólido ao seu redor, embora deixem um rastro pegajoso após sua passagem. Nug e Yeb parecem evitar qualquer tipo de interação com o ambiente que os cerca ou outros seres: não respondem a súplicas, ameaças ou ordens, de fato, não se comunicam e parecem totalmente alheios a presença de seres inferiores. É provável que sequer reconheçam humanos como algo digno de sua atenção. Se por algum motivo eles se sentirem incomodados os dois reagem com certo descaso, a não ser que sejam de alguma forma ameaçados ou feridos. Nesse caso eles formam longos braços fibrosos para agarrar e enormes bocas repletas de presas afiadas para morder e destroçar suas vítimas. Essa reação é totalmente passiva, como o movimento de uma pessoa para afugentar um mosquito.  

Poucas coisas podem ser mais aviltantes e grotescas do que as Obscenidades Gêmeas e a mera visão delas é capaz de despertar um terror primal incontrolável no observador. Felizmente Nug e Yeb raramente se manifestam fisicamente diante de plateias humanas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Destruidor de Pirâmides - A Vida e os tempos de Giuseppe Ferlini


Se existe uma coisa que simboliza a arqueologia, essa coisa é o cuidado.

Cada toque, cada retirada de terra, cada movimento é cuidadosamente calculado com o objetivo de jamais danificar uma peça. Na maioria das vezes, esse cuidado é justificável pela idade e fragilidade dos objetos. De fato, uma das ferramentas mais utilizadas pelos arqueólogos é a escova macia, usada para remover pequenas concentrações de areia e poeira.

Mas nem sempre foi assim. Em seu início, a Arqueologia buscava obter resultados imediatos exumando as civilizações do passado a qualquer custo, com métodos diretos sem qualquer cerimônia.  A maioria dos especialistas ficariam horrorizados com a forma como as coisas eram feitas, literalmente com pás, picaretas e marretas. Um bom exemplo desse estilo brutal de arqueologia pode ser sintetizado pela figura de Giuseppe Ferlini.  

Vamos nos posicionar cronologicamente para compreender quem era ele e em que época ele viveu. No início do século XIX, a Arqueologia era uma ciência auxiliar da história, sem o respeito de hoje em dia. Obviamente as pessoas sempre tiveram interesse no passado e nas crônicas dos povos antigos, contudo foi apenas depois do Renascimento que aconteceu um revival da Antiguidade Clássica. A arte, ciência, filosofia e arquitetura clássicas passaram a ser admiradas, desejadas e copiadas. Tudo antigo, era almejado. Sabemos que indivíduos como Brunelleschi, Michelangelo e Domenico Fontana participaram de escavações de ruínas romanas em busca de artefatos perdidos.

Nos séculos seguintes, o interesse pelo passado apenas aumentou com o surgimento de sociedades que buscavam tesouros com o intuito de preservá-los. Havia ricos colecionadores que se interessavam em coletar esses objetos para suas coleções. Vários nobres e ricos comerciantes mantinham galerias particulares em que despontavam estatuetas, documentos, obras de arte e outros objetos. Mas foi apenas no século XVIII, quando Johan Joachin Winckelmann começou a escavar a cidade soterrada de Pompeia, que se deu o nascimento da Arqueologia moderna.

As Pirâmides de Meroé, ou o que sobrou delas

Foi o início de uma verdadeira corrida entre as nações mais esclarecidas da Europa. Uma busca incessante por antiguidades que permaneceram esquecidas por muito tempo e que repentinamente despertavam interesse. Durante a Campanha do Egito, Napoleão tratou de levar consigo uma comitiva de cientistas, historiadores e arqueólogos para estudar os monumentos e coletar o maior número possível de artefatos. Os ingleses fizeram o mesmo, bem como as demais nações, Era a época dos Gabinetes de Curiosidades, coleções de itens raros ambicionados pelos ricos e influentes. Coube aos soldados o trabalho pesado de pilhar tumbas, saquear ruínas e varrer o deserto em busca de qualquer coisa que pudesse ter algum valor. Contrabandistas e agenciadores facilitavam o transporte desses artefatos que podiam atingir valores exorbitantes para os colecionadores na Europa. Foi nesse período de grande interesse pelo Egito Antigo que Ferlini atuou.    

Giuseppe Ferlini nasceu na cidade italiana de Bologna em 1797, mas logo deixou sua casa para escapar da coexistência impossível com sua madrasta. Dono de um espírito inquieto, ele desejava conhecer o mundo e viajar muito além das fronteiras de seu país. Juntou-se a uma companhia de mercenários antes mesmo de completar 16 anos. Ele esteve em Veneza e Corfu, onde atuou como assistente do médico de sua tropa, aprendendo a suturar, remover balas e amputar membros. Viajando de um lado para o outro, ele acabou indo parar na Albânia em 1817. O país ainda era parte do Império Otomano, mas estava engajado numa sangrenta rebelião contra o Sultão. O exército albanês dava as boas vindas a qualquer pessoa que quisesse participar da revolta, especialmente se tivesse experiência militar. Se soubesse o básico de medicina de campo, tanto melhor. Ferlini rapidamente se tornou um oficial e viu ação nos sangrentos campos de batalha.

A rebelião foi esmagada e Ferlini acabou escapando para a Grécia onde se juntou a um novo exército que enfrentava os Turcos na Península do Peloponeso. Novamente derrotado pelos inimigos liderados por Ibrahim Pasha, filho do governador do Egito, Mehmet Ali, Ferlini fugiu de volta para a Itália. Na ocasião carregou consigo um butim de artefatos gregos antigos que ele descobriu poderiam ser negociados com colecionadores. Equilibrando suas finanças, ele voltaria a se juntar ao conflito quando os principais poderes da Europa (Rússia, França e Inglaterra) interferiram no conflito contra os Turcos.
  
Ferlini não participava dessas guerras por razões políticas, embora ele odiasse os turcos com todas as suas forças, o que o motivava era a perspectiva de enriquecer. Ele havia descoberto que explorar as grandes nações do passado em busca de objetos valiosos podia ser muito lucrativo. 

A única fotografia existente de Giuseppe Ferlini tirada em 1858

Quando a coalizão derrotou os Turcos em Navarini, o mercenário bolonhês concluiu que havia chegado a hora de imigrar mais uma vez. O destino dessa vez seria o Egito, que lhe interessava por duas razões. A primeira é que muitos de seus companheiros gregos estavam estacionados lá para lutar contra os odiados turcos. A segunda é que lá ele esperava encontrar artefatos ainda mais valiosos que fariam sua riqueza ao retornar para casa. 

Os planos de Ferlini, no entanto mudaram quando ele descobriu que Mehmet Ali estava modernizando sua administração e tencionava contratar vários técnicos europeus. Um médico era mais do que bem vindo. Engolindo seu ódio pelos turcos e seu próprio orgulho, ele acabou se oferecendo para trabalhar no Cairo na construção de um hospital para a cidade. Em 1829, o italiano acabou se alistando no Exército Turco que havia combatido fervorosamente a maior parte de sua vida. Ferlini foi alçado ao posto de oficial médico e se tornou um dos responsáveis por criar um serviço de saúde para o Primeiro Regimento de Sennar que enfrentou insurgentes na Etiópia.       

Sua jornada pelo Norte da África durou cinco meses e nesse período Ferlini visitou lugares históricos como Cartum e Wadi Halfa, no qual explorou numerosas ruínas e sítios arqueológicos repletos de artefatos. Após um sangrento combate, Ferlini decidiu abandonar o exército e se radicou na Etiópia, onde casou com uma ex-escrava e enfrentou um surto de malária. Depois da morte de sua esposa e filho, vítimas da doença, ele partiu para Cartum, transferido com uma equipe médica. Com mais de 30 anos, ele se tornou amigo do Governador britânico que comprou várias de suas peças. O bolonhês participou de várias expedições pelo Deserto Núbio em busca de tesouros perdidos. Cavalgava montado num camelo, vestido como árabe, carregando um rifle nas costas, bandoleiras e um cinturão onde pendiam coldres com revólveres e a cimitarra tomada de um saqueador.


As pirâmides de Meroé antes de sua destruição

A essa altura, Ferlini sabia que não lhe restava muito tempo para conseguir uma fortuna que sempre almejou. Ele apostava que o Egito poderia ser a resposta para seus problemas: os antigos Faraós haviam escondido enormes riquezas em câmaras ocultas nas ruínas. Bastava ter disposição para cavar e encontrar esses tesouros. Havia precedentes em que ele podia se amparar. O francês Bernardino Drovetti, seu compatriota Giovanni Batista Belzoni e o britânico Henry Salt haviam acumulado uma enorme fortuna com artefatos egípcios. 

Ferlini escolheu Meroé como seu alvo, o antigo reino que deu ao Egito as Dinastias de Faraós negros. Ele se lançou em uma expedição financiada pelo mercador albanês Antonio Stefani, que pagou pelo equipamento, armas e suprimentos em troca de parte dos lucros.

Os dois começaram a jornada até Meroé em agosto de 1834, acompanhado por esposas, guias, homens armados, centenas de carregadores, além de um bom número de cavalos e dromedários. À princípio o resultado dessa aventura não foi muito bom. O grupo se estabeleceu próximo de um templo parcialmente enterrado, mas embora tenham conseguido acesso ao interior, não acharam nada valioso. A expedição chegou a encontrar um enorme obelisco decorado com hieróglifos, mas este não pode ser transportado em face de suas dimensões e peso. Infelizmente doença e fome começaram a se espalhar, matando homens e animais.

A expedição não se mostrava nem um pouco promissora quando Ferlini decidiu tentar a sua sorte com as pirâmides. Não as egípcias, mas os mais de 100 monumentos erguidos em Meroé que haviam sido descobertos poucas décadas antes. Ele havia ouvido lendas a respeito de depósitos de ouro no interior das pirâmides e estava disposto a encontrá-los à qualquer custo. E de fato ele não iria parar por nada. Acompanhado por mais de 100 escavadores munidos de pás e picaretas, ele ordenou a abertura das pirâmides, uma por uma.   

Uma representação de como foi Meroé em seu auge

O dano foi irreparável e desnecessário. Não havia nada de valor que ele pudesse levar. Desesperado, o bolonhês escolheu a maior das pirâmides, a que hoje em dia é conhecida como N6, e ao invés de derrubar as paredes laterais optou por derrubá-la de cima até embaixo. Dessa vez, a sorte acabou sorrindo para Ferlini que encontrou um sarcófago, sem múmia, acompanhado de uma série de ornamentos valiosos. Ele imaginou que se tratasse de uma sepultura real e que haveria mais. Outras pirâmides foram igualmente destruídas pelos operários que usaram o que tinham à mão para demolir paredes e colocar abaixo as obras que haviam sobrevivido a passagem de séculos. Ferlini encontrou então braceletes, anéis, colares, estatuetas e diversos adornos de valor inestimável. Temendo que os nativos estivessem planejando roubá-lo, ele deixou a escavação no meio da madrugada com três camelos carregados.

Ao reencontrar Stefani, Ferlini o apressou para que juntos deixassem a escavação antes que os escavadores nas pirâmides viessem em seu encalço. Os dois partiram no meio da noite, perseguidos pelos homens ironicamente contratados para fazer sua segurança. Eles conseguiram chegar até a quinta catarata do Nilo, escapando de emboscadas e dos seus perseguidores. Ao chegar ao Cairo ele foi recebido com honras pelo governador que o tratou como um verdadeiro herói. A história de Ferlini foi publicada em 1836, na forma de uma série de artigos com o título Nell'interno dell'Africa (Primeira Viagem pelo interior da África).

O impressionante tesouro obtido por Ferlini foi compartilhado pela Europa inteira, através de vendas, doações e leilões para recuperar o investimento na expedição. Boa parte das peças foi arrematada por Museus em Berlim e Munique pelo egiptólogo Karl Richard Lepsius, que reconheceu o valor das peças depois que o Museu Britânico as tratou erroneamente como falsificações. Os tesouros da Pirâmide N6 estão entre os maiores e mais importantes artefatos do Reino Núbio de Meroé.

O que restou das pirâmides depois da passagem de Ferlini

Após sua derradeira aventura, Ferlini decidiu se aposentar e viveu dos lucros obtidos na empreitada e das histórias que contava (elas foram republicadas dezenas de vezes). Ele morreu em 1870, aos 73 anos de causas naturais e foi enterrado no Cemitério de Certosa em Bolonha com grandes honrarias, cercado de indivíduos ilustres da história italiana. 

Giuseppe Ferlini jamais foi censurado em vida por ter destruído monumentos de enorme importância para a história da humanidade. Os danos extensivos produzidos nas Pirâmides não puderam ser restaurados. Por muitos anos ele foi considerado como um dos mais importantes Arqueólogos do século XIX. Posteriormente, seu trabalho foi descreditado e a maioria dos arqueólogos passaram a tratá-lo como um simples ladrão de sepulturas e caçador de tesouros interessado exclusivamente em riquezas, não na preservação da história. 

Hoje ele é pouco lembrado, exceto pelo título "Destruidor de Pirâmides".