quinta-feira, 29 de abril de 2021

BIBLIOTECA LOVECRAFTIANA - Terceira Semana


E essa é a TERCEIRA semana de nossa Biblioteca Lovecraftiana.

Diariamente (ou quase) no grupo Mundo Tentacular do Facebook colocamos algum livro que tenha ligação com o Universo dos Mythos de Cthulhu com uma pequena descrição.

Com o objetivo de preservar esse material, semanalmente vamos transcrever os textos para cá. espero que gostem.

SPAWN OF AZATHOTH
Chaosium


Teria tudo para dar certo, afinal se trata de uma das mais antigas campanhas de Chamado de Cthulhu - lançada no distante ano de 1986. Ela segue a premissa das demais, com uma clássica investigação ao redor do mundo na qual os investigadores tem um prazo para conter uma catástrofe global. Também não faltam perigos, horrores e situações bizarras.
 
O problema é que o roteiro da Campanha SPAWN OF AZATHOTH (Cria de Azathoth) não empolga e acaba sendo confuso, pouco interessante e um tanto arrastado. Não por acaso, foi uma das campanhas que eu nunca tentei rodar, por achar que simplesmente o esforço de fazer as mudanças necessárias seria grande demais, e provavelmente, não valeria a pena.

A campanha segue uma série de acontecimentos após a morte de um mentor dos investigadores e de uma trilha de pistas deixadas por ele. O grupo descobre que uma espécie de guardião espiritual que protege o planeta contra "Sementes" do Deus Azathoth está sendo ameaçado por uma conspiração. Se ele for destruído, a humanidade estará perdida.
 
O problema não é o plot central, mas os cenários individuais que levam o grupo de Providence para Montana, Florida, as Ilhas Andaman na costa da Índia, dali para as Dreamlands e encerrando nas Montanhas do Tibet. Dos sete cenários, ao menos dois são totalmente descartáveis e acrescentam bem pouco à campanha.
 
Com uma execução fraca e pontas soltas, essa não é nem de longe a campanha que poderia ser. Nem mesmo a arte decente e os Handouts caprichados ajudam muito. Das campanhas de Chamado de Cthulhu, essa infelizmente e o ponto fora da curva.

1,5/5 Tentáculos

O HABITANTE DAS TREVAS
Editora Script


Um dos últimos contos escritos por Lovecraft, O HABITANTE DAS TREVAS (The Haunter in the Dark) é uma história injustiçada ao meu ver. Trata-se de um dos grandes contos do autor, com uma atmosfera incrível e claustrofóbica, mas que por alguma razão não tem o mesmo prestígio de outras histórias do mestre do Horror Cósmico.

O protagonista, um autor com uma enorme curiosidade pelo estranho e inexplicável, se torna obcecado por uma estranha igreja abandonada em Providence. Seu interesse pela história e pelo passado do lugar, evitado por todos, o leva a buscar informações e faz com que ele descubra a existência de algo aterrorizante habitando aquele antro maldito.

De muitas maneiras, essa história é o protótipo de uma aventura de terror investigativo no qual o protagonista se vê mergulhado num horror indescritível do qual não há escapatória.

Lançado pela Editora Script, essa edição caprichada tem muitos méritos. A tradução do texto original à cargo de Mariana Costa é certeira, possivelmente a melhor já feita para esse conto. O acabamento é incrível, com um formato em "widescreen" que fica acondicionado numa capa protetora. Mas a grande atração são as magnificas ilustrações do artista argentino Salvador Sanz que consegue captar de forma magistral cada nuance do roteiro e traduzir em imagens o assombro desse clássico irresistível.

4,5/5 Tentáculos

CTHULHU BRITANNICA
Cubicle 7


Não são loucas as editoras que pegaram carona no sistema clássico de Call of Cthulhu para lançar produtos do jogo em sua sexta edição. Cthulhu Britannica foi a aposta da Cubicle 7 para apresentar sua visão particular dos Mythos.

Esse seu primeiro livro, daquilo que se tornou uma série de curta duração, trazia histórias centradas nas Ilhas Britânicas em diferentes épocas. O modelo é bem interessante já que os cenários oferecem diferentes interpretações do Horror Lovecraftiano. Temos aventuras na complexa alta sociedade Victoriana, uma numa escavação nos anos 1930, uma curiosa história nos dias atuais, uma desesperadora num futuro próximo e a última num futuro distópico bem distante. Em comum o fato dos Mythos figurarem com preponderância.

Antologias de Cenário são um balaio de gatos, nunca se sabe o que esperar das histórias e aqui isso não e diferente. Temos histórias bem construídas e outras fracas, sendo que uma é muito boa e pelo menos uma me deixou sem palavras, simplesmente por ser estranha demais em sua proposta. Dos cinco cenários, eu lembro de ter narrado dois, e ter alterado alguma coisa. As histórias acompanham personagens prontos, uma boa arte e Handouts bem feitos.
 
Cthulhu Britannica é um suplemento razoável, ainda que não seja incrivelmente empolgante, cumpre seu papel de ser divertida e provocadora. Uma pena a série ter acabado, mas veremos as demais aqui na Biblioteca.

3/5 Tentáculos

SOLDIERS OF PEN AND INK
Pelgrane Press


Um dos aspectos mais atraentes das ambientações lovecraftianas é seu aspecto histórico. Embora os cenários versem sobre ficção de horror e forças aterrorizantes, o pano de fundo é sempre o mundo real. Isso permite aos jogadores interpretar pessoas que viveram em épocas e momentos chave da história.

Em Soldiers of Pen and Ink (Soldados de Caneta e Tinta, uma forma de se referir aos Correspondentes de Guerra) o momento histórico apreciado é a conturbada Guerra Civil Espanhola que dividiu o país e cobrou um pesado preço de sua população. Algo que reverbera até hoje na sociedade, passados quase 100 anos.

Idealizado para Rastro de Cthulhu, usando o sistema Gunshoe, o cenário é uma investigação se passando em meio ao conflito espanhol. Os investigadores assumem o papel de soldados que integram as forças legalistas, as brigadas internacionais. Em meio a barbárie eles começam a perceber algo ainda mais medonho acontecendo nos bastidores da guerra. De fato, é algo que parece usar a guerra em causa própria e que se não for contido ameaça se espalhar.

A ideia e a execução do cenário são muito boas, o único pecado é o visual. A escolha de arte, um tanto simplista, destoa onde algo mais realista seria bem vindo. A parte de cartografia e Handouts também deixa um pouco a desejar. A aventura é interessante, mas eu senti falta de um pouco mais de detalhes históricos da ambientação. Ainda assim, vale a pena pela proposta de vivenciar em sua mesa de jogo um período de Horror bem humano, temperado com horror cósmico.

3/5 Tentáculos

TALES OF THE CTHULHU MYTHOS
Del Rey


Uma das grandes sacadas dos primeiros autores a explorar os Mythos de Cthulhu foi abrir essa mitologia a todos que quisessem contribuir com as histórias. Foi assim que o Círculo Lovecraftiano se expandiu, com o acréscimo de inúmeros autores. 

E assim, ele continua crescendo...

Tales of the Cthulhu Mythos é uma antologia de contos escritos por autores - muitos deles em início de carreira, que se tornaram famosos explorando o tema. Medalhões como Clark Ashton Smith, Robert Bloch, Henry Kuttner, August Derleth, Colin Wilson, Robert E. Howard, Frank Belknapp Long entre outros, foram os primeiros a sondar todas possibilidades do Horror Cósmico.
 
As histórias reunidas nessa coleção estão entre as mais conhecidas. Elas definiram os parâmetros do gênero e são quase obrigatórias para os fãs. Pessoalmente eu considero essa uma das melhores antologias reunidas pela Del Rey, uma que realmente vale a pena conhecer.

O único problema pode ser o papel fino que tende a amarelar e manchar, mas esse é um pecado menor que não depõe contra o sensacional material aqui reunido. Para quem quer conhecer os Mythos à fundo, esse é o melhor caminho.

5/5 Tentáculos.

KINGSPORT - The City in the Mists
Chaosium


KINGSPORT é mais uma das cidades da Lovecraftian Country, um grupamento de pequenas e antigas cidades na Nova Inglaterra, cenário de vários contos escritos por H.P. Lovecraft.

O balneário de Kingsport é um lugar curioso em que o tecido que divide o Mundo Desperto da Terra dos Sonhos é mais tênue. Lá, os sonhadores encontram um terreno fértil para a exploração onírica. Não por acaso é uma cidade de artistas, poetas, pintores, boêmios e pensadores a adotaram como seu lar. Também e uma cidade curiosa, com muitos mistérios e habitantes peculiares.

Esse livro, oferece um panorama completo da cidade: seus residentes, seus segredos, lugares interessantes e possibilidades para investigações no Universo do Mythos. Arte, capa e diagramação de primeira, além de 4 cenários prontos que permitem explorar a cidade. Ah sim, com um belo mapa para completar!

Das cidades que integram a Lovecraft County, KINGSPORT talvez seja a menos conhecida, ainda assim, ela tem muitos atrativos como a Casa no Alto das Névoas e a mansão do Terrível Homem Velho. A opção de misturar sonhos e horror, tornam esse livro um trabalho acima da média.

3,5/5 Tentáculos

PROVIDENCE
Panini


Alan Moore é indiscutivelmente um dois maiores nomes dos quadrinhos, e quando alguém como ele se propõe a explorar o universo dos Mythos Lovecraftianos, é preciso parar e prestar atenção.

Redimindo a si mesmo do fraco Neonomicon, que é um ponto fora da curva em sua carreira, Moore volta com força total nessa série em 9 partes, encadernada em 3 volumes (lançada aqui pela Panini em formato capa dura e edição bastante caprichada).

Em Providence temos uma reimaginação dos Mythos: dos personagens e contos sob uma ótica diferente. A história segue os passos de Robert Black um jornalista em busca de uma história à respeito de folclore e crenças estranhas. A busca de Black pela verdade, que ele parece ser incapaz de enxergar pelo seu ceticismo (mesmo quando está bem diante de seus olhos), faz com que ele viaje pela Nova Inglaterra e entre em contato com horrores indescritíveis. Suas experiências arrepiantes mudarão sua vida para sempre e abrirão as portas de nosso mundo para algo Inominável.

Com roteiro e desenhos incríveis, Providence é repleto de referências e citações a serem descobertas a cada página. Excelente trabalho!

4,5/5 Tentáculos.

*      *      *

Essa foi a segunda semana, fiquem conosco para as próximas.

Tem muita coisa esperando na fila.

terça-feira, 27 de abril de 2021

Filho de Gigantes - O Maior Homem de Todos os Tempos


Sempre existiram pessoas que por alguma razão conseguiam transcender o normal. Essas pessoas deixavam os ditos "normais" perplexos demonstrando os limites de nosso potencial, bem como os mistérios do corpo humano. Uma dessas pessoas viveu no século XIX e era considerado um verdadeiro gigante - para alguns, "o maior homem que já existiu".

Mills Darden nasceu em 1798 em Rich Square, North Carolina, nos Estados Unidos, e era um bebê perfeitamente normal. Não havia nada particularmente diferente até seus primeiros anos de infância, quando ele começou a crescer, crescer, crescer... 

Não demorou para ele ultrapassar seus irmãos, seus amigos e seus pais. Darden não crescia apenas em estatura, mas em diâmetro. Quando ele chegou à idade adulta, tornou-se ajudante em uma fazenda em Lexington, Tennessee, época em que já tinha 2,28 metros de altura e impressionantes 1,50 de cintura, pesando nada menos do que 390 quilos. Ele era tão imenso que as pessoas pareciam diminutas ao seu lado. Para se ter uma noção do que estamos falando, a estatura média para um homem adulto na época era estimada em 1,58, com apenas 30% da população americana acima disso. Para colocar esses números em perspectiva, ele era um gigante, que media quase 60 centímetros mais do que as pessoas ao seu redor e pesava cinco vezes mais. Isso o tornava não apenas um dos homens mais altos ou pesados da história, mas as duas coisas ao mesmo tempo.

Apenas o casaco de Darden havia sido confeccionado com 12 metros de pano e seus sapatos eram feitos sob medida pois tinham tamanho 68. Sua casa havia sido modelada para permitir um mínimo de conforto com portas extra largas, móveis de carvalho desenhados para suportar seu peso e uma cama que havia sido criada a partir de um bote à remos. O apetite de Darden era condizente com seu tamanho prodigioso, com um café da manhã que consistia diariamente de uma dúzia de ovos, dois litros de café, um galão de água e 30 biscoitos amanteigados. 

Ao lado do segundo homem mais alto de Lexington.

Ele era tão forte quanto sua estatura sugeria. De acordo com testemunhas, Darden era capaz de arremessar um fardo de 250 quilos de feno como se fosse um tijolo e erguer um saco de 500 quilos de ração acima da cabeça. Também diziam que ele havia conseguido retirar sozinho uma carroça que caiu num buraco, depois de uma dúzia de homens sequer conseguirem movê-la. Os patrões de Darden se orgulhavam de tê-lo, pois ele era um excelente recurso para o trabalho na fazenda. O homem, afinal era um verdadeiro trator.

Os rumores davam conta de que ele não era "exatamente humano". Alguns supunham que ele tivesse em seu sangue algo diferente, algo que o colocava no reino do sobrenatural. Muitos acreditavam que "o maior homem do mundo" era um descendente da mítica raça dos Gigantes. Um boato maldoso começou a circular, dando conta de que os pais de Darden haviam encontrado o bebê nas florestas virgens de seu estado natal. Eles o levaram para casa e criaram como se fosse seu filho, mas na verdade ele seria cria de uma raça de gigantes que são citados em lendas indígenas da região. 

Segundo essas histórias presentes no folclore cherokee, na aurora do mundo, uma raça de gigantes viveu nas florestas densas. Tinham uma estatura semelhante às majestosas árvores que cresciam em seus domínios, uma força arrebatadora e uma fome aterrorizante. Os gigantes vagavam apanhando qualquer coisa que caísse em suas garras, se alimentando de animais e pessoas igualmente. Ainda segundo o mito, esses gigantes foram conduzidos para o centro das Terra, quando bravos guerreiros os enganaram prometendo um banquete que seria servido no interior de uma caverna sagrada. Quando o último gigante se espremeu na gruta com dificuldade, os bravos rolaram uma pedra que lacrou sua entrada. Sem ter como retornar, eles passaram a viver nas profundezas em um reino só deles. Diz a lenda, ainda que de tempos em tempos, uma criança gigante de pequena estatura (mas para nossos padrões enorme) era passada através de uma fresta na caverna e assim ganhava sua liberdade. Para os povos indígenas, isso explicava a estatura de alguns homens, para seus padrões, filhos de gigantes.   

Darden se ressentia dessas histórias. Eventualmente, ele acabou se cansando da vida na fazenda e decidiu abrir uma taverna em Lexington, onde sua fama apenas aumentou. As pessoas vinham de longe para conhece-lo. Ele entretinha os visitantes dobrando barras de ferro, desentortando ferraduras e erguendo barris de cedro cheios de cerveja com uma única mão. Em certa ocasião, ele aceitou uma aposta de que seria capaz de derrubar um touro com um soco, façanha que cumpriu com relativa facilidade. Em outra ocasião ele foi contratado por um agente de luta para enfrentar um conhecido boxeador local. Na apresentação, o oponente desistiu da luta, ainda mais depois presenciar como um soco do gigante destruiu um saco de couro reforçado e cheio de areia.

Ainda que os negócios estivessem indo bem, Darden começou a se incomodar de ser visto como uma atração pelos frequentadores de seu estabelecimento. Ele passou a se negar a posar para retratos, ser medido ou pesado por estranhos que o viam como uma aberração ou encarnação de lendas locais. A essa altura da vida, com 40 anos, supõe-se que ele tivesse algo em torno de 2,33 de altura e possivelmente ultrapassasse os 500 quilos.


Darden chegou a constituir família e ter uma vida relativamente comum. Ele se casou duas vezes, sua segunda esposa era uma mulher chamada Mary e os dois eram uma visão bastante curiosa, uma vez que ela media pouco mais de 1,50 de altura e pesava apenas 50 quilos. Estima-se que ele tenha tido 7 filhos, todos de estatura normal, sendo que o mais alto não passava de 1,70. Darden se manteve bastante ativo por sua vida inteira apesar de suas dimensões até sua morte em 1857 com 56 anos de idade.

Os médicos não sabem ao certo a causa da morte, mas chegaram a peculiar conclusão de que ele teria morrido sufocado pela gordura em volta de seu pescoço que lhe impedia de respirar. Ele foi enterrado em Lexington, em um Cemitério que pertenceu a Família Darden. Uma das pessoas que esteve presente ao enterro descreveu o acontecimento da seguinte forma: 

"O Serviço Funeral do Sr. Mills Darden, que faleceu em sua residência no Condado de Henderson, foi realizado nesse domingo a 5 milhas a sudeste de Lexington, Tennenssee. A irmandade maçônica local esteve presente com trajes cerimoniais para a ocasião solene. O falecido era sem dúvida o maior homem do mundo. Sua cintura tinha mais de 1,80 de diâmetro. Seu peso estava pouco abaixo dos 500 quilos! Foram necessários quase 30 metros de tábuas de madeira para produzir seu caixão; ele media à época de sua morte notáveis 2,37. O caixão tinha aproximadamente 2,5 metros, com 90 centímetros de profundidade por 1,90 metro de largura. O Sr. W Brooks, que vendeu e produziu o material funerário afirmou que é de longe o maior caixão que se tem notícia".

Algumas pessoas contaram que foram necessários 17 homens para colocar Darden no caixão e que uma parede inteira de sua casa teve de ser colocada abaixo para que fosse feita sua remoção. 

Médicos hoje em dia concordam que o crescimento acelerado de Darden fosse devido a um problema em sua glândula pituitária, e que ele continuaria crescendo ao longo de sua vida inteira. De fato, ele próprio contava que a cada ano aumentava um pouco seu tamanho.

É lamentável que não existam maiores detalhes conhecidos a respeito dessa impressionante vida, ainda que Mills Darden tenha deixado sua marca na comunidade em que nasceu, viveu e morreu. Não como um gigante de lendas, mas como uma pessoa gentil e amada. Ele foi por si só, uma declaração a respeito do quão impressionante pode ser o corpo humano e que algumas lendas podem ter um fundo de verdade.

sábado, 24 de abril de 2021

A Condessa de Sangue - A Vida e as Mortes de Elizabeth Bathory


Qual a forma mais frequente que o mal assume? Perversidade? Loucura? Crueldade?

Na maioria das vezes o mal se manifesta na forma de algo inumano, hediondo, nefasto... mas nem sempre o mal toma essa forma. Por vezes, o mal assume uma forma bela e angelical. No final do século XVI e início do século XVII, uma bela mulher escreveu seu nome com sangue, lado a lado aos mais cruéis seres humanos de que se tem notícia.

Elizabeth (ou "Erzsebet") Bathory era filha de George e Anna Bathory, nascida na atual Eslováquia no ano de 1560. Bathory passou a maior parte de sua infância no antigo Castelo de Cachtice. Embora o Castelo seja frequentemente situado na lendária região da Transilvânia, na verdade ele fica próximo à cidade de Vishine, a poucas milhas da atual Bratislava (onde Áustria, Hungria e a Eslováquia compartilham uma tríplice fronteira). Aquela era uma região escura, de escarpas rochosas e com superstições muito antigas entranhadas no coração dos camponeses. 

Bathory cresceu em uma época em que a maior parte da Hungria estava sob ataque do poderoso exército turco do Império Otomano. Os Hapsburgos enfrentavam o avanço Turco transformando a Áustria em um vasto campo de batalha. Massacres e atrocidades eram algo relativamente comum, praticado pelos dois lados que não perdiam a oportunidade de castigar as populações civis de seus inimigos e impingir a elas as mais horríveis punições. 

A região inteira era dividida por rivalidades religiosas que colocavam vilarejo contra vilarejo, vizinho contra vizinho. A Família Bathory havia se convertido ao Protestantismo que abertamente contestava o poder do Papa e do Catolicismo Romano. Elizabeth foi criada na propriedade da família, quando criança era afligida de surtos nervosos acompanhados de ira e comportamento incontrolável. Alguns suspeitavam que a menina, dada a gritos e crises histéricas era possessa e que demônios habitavam seu corpo de tempos em tempos.


Em 1571, o primo de Bathory, Stephen tornou-se Príncipe da Transilvânia e, no final daquela década assumiu o trono da Polônia. Ele foi um dos mais eficientes governantes de sua época. Entretanto, seus planos de unir a Europa contra os turcos fracassou pois ele teve de desviar sua atenção para a ameaça representada pelo Czar Ivan - que entrou para a história com o título "O Terrível". O governante russo tinha ambições sobre a Polônia e pretendia anexá-la ao seu império.

Apesar de restrita aos limites do castelo, Elizabeth ficou grávida como resultado de um breve romance com um camponês em 1574. Quando sua condição se tornou evidente, ela foi escondida da visão de todos para que o boato não chegasse ao Conde Ferenc Nadasdy a quem ela estava prometida. Pouco se sabe a respeito dessa criança, a lenda afirma que ela chegou a dar à luz a um menino. O pai de Elizabeth enfurecido teria atirado o recém nascido aos cães selvagens e forçado a filha a assistir enquanto ele era despedaçado. O amante de Elizabeth, por sua vez, foi morto na masmorra do castelo; seus gritos ecoaram pelos corredores por dias e noites, enquanto ele era torturado. Dizem que todos que sabiam do ocorrido também foram eliminados ou banidos, para que não falassem da indiscrição cometida. 

Em 1577, Elizabeth e o Conde Nadasdy finalmente se casaram e mudaram-se para as Terras deste na Polônia. Como o marido era um soldado, ele estava frequentemente longe de casa, o que deixava nas mãos de Elizabeth a responsabilidade de administrar as terras da Família Nadasdy. Diferente da maioria das mulheres de sua época, Elizabeth recebeu educação esmerada, sabia ler e escrever, dominava outros idiomas e era plenamente capaz de discutir política. A maioria dos nobres húngaros eram analfabetos e mesmo o Príncipe da Transilvânia conhecia pouco de livros. Ela provou ser uma governante eficiente, ainda que implacável. Encheu os cofres da Família a medida que aumentava impostos dos camponeses e os afundava cada vez mais na penúria. 

Foi mais ou menos nessa época que a carreira maligna de Elizabeth teve início.

Quando menina, Elizabeth já havia dado sinal de um fascínio doentio pela dor e sofrimento. Ela fazia com que outras crianças torturassem e matassem animais domésticos para satisfazer sua curiosidade mórbida. Ainda adolescente se esgueirava pelos corredores da masmorra do Castelo de Cachtice, descendo até as partes mais profundas afim de assistir o medonho trabalho dos torturadores. Sozinha no escuro, ela se deliciava com os gritos e possivelmente descobriu-se excitada sexualmente por tais sons e visões. É provável que essas experiências solitárias tenham estabelecido em sua mente a noção de que dor e prazer andavam juntos, o que resultou numa personalidade extremamente sádica e absurdamente perversa.    
  

Em uma época em que crueldade era um instrumento empregado por aqueles em posição de poder, Elizabeth a usou como poucos. Ela não apenas punia aqueles que infringiam as leis, mas encontrava desculpas para castigar fisicamente seus serviçais, em especial jovens criadas, deliciando-se com a tortura e morte. A menor infração era motivo de punição e todos no castelo temiam a fúria avassaladora da Senhora. O repertório de atrocidades de Lady Bathory era tão vasto quanto medonho. Ela contratou à peso de ouro torturadores de toda Europa que tinham fama de manter suas vítimas vivas por dias, enquanto ministravam seu doloroso ofício. Elizabeth assistia extasiada as sessões e chegava ela própria a participar delas, aprendendo as técnicas usadas. 

Ela adorava enfiar agulhas em pontos sensíveis de suas vítimas, queimar a pele delas com ferros em brasa ou ainda usar o infame Gato de Nove Caudas, um chicote com nove pontas de couro curtido. No inverno, ordenava que os presos de sua masmorra fossem despidos e levados para a neve, onde eram encharcados até que congelassem totalmente. Elizabeth se divertia quando os corpos congelados como estátuas petrificadas eram então despedaçados a golpes de martelo. Ela era como uma criança perversa, com um sortimento infindável de brinquedos à sua disposição.

O Conde Ferenc partilhava do mesmo fascínio doentio da esposa pela dor e sofrimento. Durante sua campanha no Oriente, ele havia aprendido várias técnicas de suplício usadas pelos turcos em seus prisioneiros. Entre estas estava a cruel tortura do "favo de mel" empregada pelos otomanos para punir o Crime de Adultério. Nessa modalidade, a vítima era despida e coberta de mel, então era amarrada numa estaca e deixada ao relento para que abelhas a picassem até a morte. O sadismo era tamanho, que o casal assistia sessões de tortura - sobretudo o flagelamento - e inebriado pelo que viam, mantinham relações sexuais. Contudo, o Conde adoeceu e morreu em 1604. Elizabeth então se mudou para os arredores de Viena logo após o enterro. Ela se desfez de suas terras e adquiriu uma belíssima propriedade em Beckov, cheia de bosques e riachos. 

Mas a despeito da paisagem bucólica, seria lá que ela daria início aos seus mais famosos e cruéis crimes.


Nessa época, uma das grandes preocupações da Condessa Bathory (então com 44 anos) era com sua aparência física. Ela pretendia se casar novamente com um candidato que compartilhasse de seus gostos peculiares, mas para isso precisava se manter bela e sedutora. Elizabeth passava cada vez mais tempo diante de espelhos, examinando cuidadosamente qualquer mudança em sua fisionomia: o surgimento de rugas, marcas de idade e cabelos brancos que arruinassem sua perfeita imagem. Tudo isso lançava terror em seu coração de pedra. Em sua cólera, ela gritava enlouquecida e quebrava os espelhos. As criadas que tivessem atrativos se tornavam então suas vítimas prediletas, ela as açoitava para que a beleza delas ficasse para sempre imperfeita.

Foi na Áustria que Lady Bathory conheceu uma velha viúva chamada Anna Darvulia, acusada de assassinar o marido com veneno. As duas se tornaram boas amigas depois que Anna contou detalhes de como planejou dar cabo de seu odiado cônjuge. A mulher tinha fama de ser uma feiticeira e de conhecer dezenas de malefícios que praticava desde criança. Aquilo atraiu a atenção de Elizabeth que já havia flertado levemente com heresia, mas que conteve esse interesse por temer a reação do marido. Sem essa limitação, ela ordenou que Anna relatasse suas experiências com Magia Negra, contudo, o que realmente chamou sua atenção foi a promessa dela de arranjar uma maneira de preservar sua juventude para sempre. 

Na época, havia a crença de que o Sangue era a força por trás do vigor físico. Dessa forma, a maneira de preservar a tão almejada juventude envolvia usar o sangue de outras pessoas. Diz a lenda que Darvulia instruiu a Condessa a drenar o precioso líquido direto da veia das vítimas, na maioria moças e saudáveis, que uma vez assassinadas eram penduradas pelo pés de ponta cabeça com intuito de verter até a última gota. Bathory então mergulhava numa tina de sangue fresco cobrindo-se dos pés à cabeça.

Aquilo a satisfazia e ela via resultados em seu horrível tratamento de beleza - a pele estava cada vez mais alva, as bochechas rosadas, os olhos azuis faiscando e os cabelos cheios. Mas Lady Bathory precisava de cada vez mais vítimas e quando o sortimento de jovens em Viena diminuiu, ela passou a contratar mocinhas vindas de longe. Estas não haviam ouvido os estranhos rumores que já circulavam lá e cá. Os demais nobres de Viena se espantavam com a grande rotatividade de serviçais que chegavam e supostamente partiam da propriedade. Achavam que Lady Bathory era severa e que tratava os serviçais de maneira austera, mas não desconfiavam do que realmente acontecia. 

Em 1609, Darvulia ficou doente - supostamente contraiu uma doença degenerativa contagiosa - e Elizabeth a mandou embora. Ela então se associou a outra mulher misteriosa Erzsi Majorova, a viúva de um de seus oficiais que foi salva da execução pela Condessa.


Majorova também era conhecida como feiticeira e temida em toda Viena. Apesar de agradecida à sua Senhora, ela foi a principal responsável pela queda de Lady Bathory. Majorova havia aconselhado Elizabeth a matar jovens mulheres de berço nobre, garantindo que o sangue delas era muito mais potente e valioso do que o das simples camponesas. Elizabeth vinha tendo problemas em obter novas serviçais dispostas a trabalhar em sua propriedade depois dos boatos sobre mortes e punições se espalharem. Corriam rumores que lhe valeram o apelido de Condessa de Sangue e a suspeita de que a mulher praticava o vampirismo. Também era dito que Elizabeth mordia suas vítimas e bebia o sangue ainda quente em cálices de cristal da Bohemia.

Em 1609, as duas tramaram o assassinato de uma nobre austríaca. Mas apesar das suspeitas, a morte foi considerada suicídio. No verão de 1610, uma investigação oficial se iniciou a respeito das ações de Elizabeth. Entretanto não era o vasto número de vítimas que motivavam a investigação da justiça, mas questões econômicas. A coroa tinha uma enorme dívida em dinheiro contraída através de empréstimos feitos pelo Conde Ferenc e pretendia quitar a quantia e no processo confiscar as propriedades da viúva.

Em Dezembro do mesmo ano, promotores reais foram enviados para colher histórias à cerca de Lady Bathory. Os testemunhos de nobres e camponeses eram numerosos e sempre envolviam rumores a respeito de desaparecimento, crueldade e tortura acontecendo nos porões da mansão. Mais do que isso, o sangue era um componente citado à exaustão nas confusas narrativas. 


Com efeito, Elizabeh Bathory foi capturada e poucos dias depois levada à julgamento presidido por um Agente do Rei, o Conde Thurzo. Durante os trabalhos foi apresentado como evidência um diário recolhido na alcova da Condessa onde estava registrado detalhadamente, com a caligrafia de Elizabeth o assassinato de 650 pessoas. Os cúmplices da Condessa - vários guardas, torturadores profissionais e a própria Majorova, também foram presos e condenados à morte. Elizabeth recebeu uma pena branda e foi sentenciada a prisão perpétua na masmorra de seu próprio castelo.

A sentença foi cumprida à risca: Bathroy foi aprisionada em uma cela sem janela e um muro foi erguido na porta, deixando-lhe apenas uma pequena passagem através da qual ela recebia água e comida. Elizabeth viveu em confinamento por pouco tempo e morreu em 21 de agosto de 1614. Seu corpo foi sepultado nas terras dos Bathory.

Posteriormente os registros a respeito da vida de Elizabeth Bathory foram selados por mais de um século após sua condenação e morte. Seu nome foi proibido de ser mencionado na Hungria e na Áustria. De fato, os húngaros se referiam a Condessa de Sangue usando o termo derrogatório "Csejthe" que pode ser traduzido como "Vadia".
 
A maioria dos historiadores acreditam que Lady Bathory sofria de um raro caso de distúrbio psicótico e esquizofrenia, condições graves potencializadas pelo meio violento em que vivia e que lhe permitia dar vazão aos seus impulsos homicidas impunemente. Muito se debate a respeito do número de vítimas e embora, lhe tenham sido atribuídas mais de 650 mortes, é provável que o número mais realista esteja na casa dos 30. Ainda assim, não há como precisar esse número ou atestar que ela não tenha sido vítima de uma conspiração para transformá-la em um monstro maior do que era. Inegável, no entanto é o fato dela ter sido uma pessoa caprichosa e extremamente cruel.


Apenas como nota adicional, todos sabemos que o romance Drácula, escrito pelo irlandês Bram Stoker, teve o personagem título inspirado pelo Príncipe romeno Vlad Tepes, que adentrou a história como, o Empalador. Entretanto, Raymond T. McNally, prestigiado crítico literário e estudioso da obra seminal acerca do vampirismo, escreveu quatro livros à respeito da figura histórica de Drácula. Ele acredita que Elizabeth Bathory tenha sido usado como base para o personagem fictício de Drácula tanto quanto sua contraparte masculina. 

McNally comenta que em vários trechos de sua obra, Stoker se vale de referências que se encaixam mais na biografia de Bathory do que do próprio Vlad. Por exemplo, Drácula no romance recebe o título nobiliário de Conde, que ele jamais teve. Além disso, as referências a respeito de ingestão de sangue fazem parte do conjunto de atrocidades cometidas por Elizabeth, não Vlad Dracul. Finalmente, o propósito da ingestão de sangue tanto para o personagem de Stoker quanto para a real Elizabeth Bathory era preservar a juventude eterna.

Seja lá qual for a verdade, o terror de Lady Elizabeth Bathory, a Condessa de Sangue, não se diluiu com o tempo e continua chocante e pavoroso após tantos séculos. De uma forma medonha, ela teve o que tanto desejava, obteve a imortalidade.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Santa Compaña - A macabra Procissão dos Mortos na Espanha


Muitas localidades rurais do mundo tem as suas próprias tradições que aos olhos de forasteiros parecem estranhas e até sinistras. Estas geralmente estão profundamente enraizadas nos mitos e na cultura da terra onde nasceram. Tais lendas, por vezes estão imbuídas de um forte sentimento sobrenatural e envolvem forças além de nossa compreensão, parecendo puro mito, mas tratadas com seriedade por aqueles que tomam parte na sua realização.

Nas remotas regiões rurais da Espanha existe uma crença presente no imaginário popular e talvez, entranhada no próprio solo. Ela envolve a crença de que uma procissão de espíritos sem descanso ocasionalmente vaga sem destino em busca de novas almas que possam ser adicionadas ao seu desfile.

Em regiões da Ibéria, Galícia e Astúrias, bem como em certas partes do norte de Portugal, existe uma antiga e misteriosa tradição chamada Santa Compaña, também conhecida como Estadea, Compaña, Pantalla, Avisóns, Pantaruxada, ou Genti de Muerte, que em numa livre tradução significa "Procissão de Todas as Almas" ou "Sagrada Companhia dos Mortos". As raízes dessa tradição remontam à Idade Média, originando-se em festivais pagãos e práticas da cultura Celta, que tem fortes laços com certas porções da Espanha. Existem muitas variações locais para a Santa Compaña, mas todas elas preservam um caráter estranho e bastante temido. 

Uma das características mais conhecidas da Santa Compaña envolve a "Procissão das Almas". 


Nesta, figuras trajando mantos fechados com capuzes e de pés descalço caminham lado a lado carregando sinos e velas. Os sinos são para avisar de sua passagem e para que todos saiam do caminho, as velas são para enxergar em meio a escuridão total. As figuras tradicionalmente somam oito pessoas divididas em duas colunas de quatro. Elas são espíritos incorpóreos, fantasmas que prosseguem vagando em uma eterna busca pelo seu almejado descanso. Seus muitos pecados, no entanto não permitem que eles encontrem o caminho para a salvação e eles se veem condenados a vagar para sempre. Em uma das variantes, os espíritos carregam também bengalas feitas de osso que são usadas para bater no chão anunciando sua aproximação. Um forte cheiro de velas, incenso ou de putrefação acompanha o grupo macabro. 

A Procissão é liderada por uma pessoa viva, alguém muito religioso escolhido para essa função, seja homem ou mulher que tipicamente carrega uma cruz, sacrário ou ostensório. Este é conduzido com toda reverência, erguido sempre que alguém se aproxima, como forma de demonstrar que Deus está acima de tudo e de todos. Um nevoeiro denso e cinzento tende a acompanhar essa visão aterrorizante. 

O indivíduo escolhido, segundo a lenda encontra-se em profundo transe, guiado por forças sobrenaturais que o compelem a acordar no meio da madrugada, sair de sua casa e iniciar a misteriosa procissão exatamente à meia noite em datas específicas. A Noite de Todos os Santos e a Noite de São João, são as mais representativas, embora a Procissão possa acontecer em outras datas. Terminada a tarefa funesta, a pessoa volta para casa sem lembrar do que aconteceu, e se surpreende ao descobrir suas roupas sujas com poeira ou barro da estrada.

No entanto, em alguns casos, aquele que comanda a Procissão, pode ser escolhido para ficar com ela para sempre. Este se torna um "Estimado pelos Mortos", ou seja, alguém em quem os espíritos passam a confiar como uma espécie de pastor ou guia que poderá levá-los à sua Redenção. A pessoa é acordada no meio do sono, e o susto de se ver em um lugar estranho, cercado de espíritos, tende a ser maior do que ela pode suportar. Cadáveres encontrados na beira de estradas são tratados pelos que acreditam na superstição como indivíduos transformados num "Estimado". É possível que no passado casos de sonambulismo tenham sido vistos como o transe criado pelos mortos. Da mesma forma, a crença de que existe um grave perigo em acordar um sonambulo, pode derivar dessa lenda.


As pessoas que residem nessas áreas rurais onde a lenda é conhecida, temem a Procissão pela sua aura de mau agouro. Acredita-se que uma tragédia está prestes a acontecer numa comunidade visitada pela Santa Compaña. De acordo com alguns, a Procissão está relacionada a ventanias, tempestades  e desastres naturais, como se ela fosse um tipo de arauto de tragédias. Animais, em especial cães, reagem de forma intempestiva diante da comitiva fantasmagórica, latindo e ladrando. 

O som de sinos e o cheiro de velas queimando são um aviso da aproximação, e pela tradição, as pessoas que detectam tal coisa numa estrada não devem correr. Ao invés disso, precisam fechar os olhos e fazer o sinal da cruz repetidas vezes. Elas sentem a passagem da procissão, através do som e odor característicos, mas se mantiverem os olhos fechados, estarão à salvo. Aqueles que abrem os olhos ou que tentam escapar, por outro lado, correm enorme perigo. A visão é enlouquecedora para quem a contempla, já aquele que foge, fica marcado pelos espíritos e contrai uma doença que invariavelmente leva à morte. Sua alma então estará condenada à integrar a procissão que ela deu as costas.

Em uma variante da lenda, a pessoa que lidera a Santa Compaña pode livrar um fantasma que integra a Procissão assumindo seu lugar na fila. Esse sacrifício, feito apenas por pessoas de grande devoção, constitui uma das únicas maneiras conhecidas de terminar com a Procissão e fazer com que ela deixe de vagar na escuridão.

A passagem da Santa Compaña era tão temida no passado, que as pessoas evitavam sair de madrugada. Nas datas sabidas de sua passagem, todos permaneciam acordados a noite inteira, se revezando nas orações, "desfiando rosários" pelas almas dos mortos e para que elas tivessem descanso. Outros métodos de afastar a Santa Compaña variam de vilarejo para vilarejo. Em alguns lugares o Símbolo de Salomão, era desenhado com giz sobre a porta das casas, noutras se recorria a barreiras de sal grosso, óleo consagrado ou até mesmo hóstias colocadas no umbral da porta. Outro método consagrado pela sabedoria popular envolvia colocar um gato preto na rua, o que fazia a comitiva mudar seu curso para não cruzar com o animal. Finalmente existia o símbolo da figa, que devia ser feito com a mão direita como forma de proteção.


A Santa Compaña segue através da noite até os primeiros raios de sol surgirem ou até ela chegar ao cemitério mais próximo. Lá os espíritos se dispersam depois de emitir sussurros, lamentos e gemidos de agonia. Aqueles que testemunharam a passagem e que foram amaldiçoados pela visão macabra são vistos posteriormente tomando parte da mesma. Dessa forma, uma Procissão pode crescer até se tornar uma grande concentração de almas, verdadeira multidão de espíritos.

Assim como outras lendas ao redor do mundo envolvendo assombrações, o mais provável é que tudo isso não passe de mero folclore. Entretanto, o respeito e temor pela passagem da Santa Compaña continua presente, mesmo em nossos tempos mais cínicos e materialistas. E não se surpreenda se as pessoas em regiões rurais da Espanha preferirem ficar em casa após o anoitecer.

É claro, se perguntadas, elas dirão que não se trata de superstição, mas como diz o velho ditado: "No creo en las Brujas, pero que las hay, las hay".

domingo, 18 de abril de 2021

O Monstro da Era Medieval - Os terríveis crimes de Gilles de Rais


Não resta dúvida de que a Idade Média foi uma época brutal para aqueles que nela viveram. Fome, doença, ignorância eram parte do dia a dia, mas tudo piorava ainda mais quando havia Guerra. E guerras aconteciam com incrível frequência no mundo medieval.

Outra grande verdade universal é que tempos duros geram homens igualmente duros. Para sobreviver às privações, violência e dificuldades os homens eram obrigados a se adaptar. E isso envolvia, muitas vezes, se impor diante dos demais e tomar dos mais fracos aquilo que julgavam ser seu de direito. Não por acaso, a Idade Média foi uma época de extrema injustiça.

Contudo, mesmo diante de toda essa brutalidade cotidiana, haviam alguns indivíduos que se destacavam e que se tornaram especialmente infames pelos seus atos e feitos.

Essa foi a época que assistiu ao surgimento de Gilles de Montmorency-Laval, conhecido pela história como Gilles de Rais (lê-se Gile de Ré), uma figura hoje em dia obscura, mas extremamente controversa que fomenta diferentes reações em historiadores que tentam determinar quem realmente foi ele. Para alguns Gilles de Rais foi um importante cavaleiro e comandante militar francês que se destacou na Guerra dos 100 Anos. Sua bravura e determinação o colocam como um dos grandes comandantes, responsável por muitas vitórias importantes para a França. Para outros, Gilles de Rais foi um sujeito desprezível, cruel e tirânico, características presentes em muitas figuras medievais, é bem verdade, mas com uma importante diferença: a perversidade. Ele também teria sido um maníaco responsável pela morte e tortura de centenas de crianças. Isso coloca Gilles como o precursor daquilo que nós, atualmente, conhecemos por assassino em série.

É difícil conceituar essa figura dúbia da história, quem foi, o que fez e como se comportava. Mas podemos encontrar algumas pistas nos documentos existentes que o colocam no pódio das atrocidades como um dos mais temidos homens de seu tempo. Alguém que serviu de modelo para o célebre vilão dos Contos de Fadas, o Barba Azul.


Gilles de Rais nasceu em 1405 em uma das mais ricas e importantes família da França. Quando ele nasceu, a Guerra dos 100 anos entre Inglaterra e França já estava em seu sexagésimo oitavo ano e continuaria por mais 48, com muitas mortes e destruição ainda por vir. O casamento de seu pai Guy de Rais e de sua mãe Marie de Craon havia sido arranjado pelo seu avô maternal, Jean de Craon. Jean tinha a mesma idade de Guy, e os dois eram parentes. O matrimônio foi arranjado para acertar uma dívida entre as famílias, evitando assim desavenças.

A união foi tudo menos feliz para Marie. Guy era um marido tirânico, extremamente possessivo e violento de modo que ela só sentia um pouco de segurança quando ele estava longe em alguma campanha militar. Dizem que na noite de núpcias ele teria tomado a noiva diante de seus soldados, isso porque ela se mostrou temerosa com seus avanços. O casal teve dois filhos, Gilles e um irmão mais novo, Rene que foram criados da maneira tradicional em meio a aristocracia francesa, o que significa dizer com serviçais que faziam o que eles ordenavam. Gilles se sobressaiu em todos os campos, nos estudos e na arte da guerra, mas não tinha a atitude necessária para a política e diplomacia. Ainda menino, ele gostava de cavalgar pelos campos, caçar e lutar. Por vezes, ia até um vilarejo onde o filho de algum camponês lhe servia como oponente. Em geral, ele vencia, mas se, de alguma forma, ele fosse derrotado reagia com enorme ira. Mais de um rapaz sentiu a chibata de seus guardas. Ainda criança, ele gostava de assistir punições e se deleitava com os gritos de dor daqueles que sofriam.

Em 1415 uma sucessão de tragédias se abateram sobre a Família Craon. A primeira foi a derrota da França na famosa Batalha de Agincourt, onde os ingleses em grande desvantagem tiveram uma vitória expressiva. Os prisioneiros franceses, feitos aos milhares foram simplesmente executados pelos vitoriosos. Um destes era Amaury de Craon, filho único de Jean de Craon. No mesmo ano, os pais de Gilles morreram, Marie de causas desconhecidas, Guy em uma caçada. Guy havia deixado instruções claras de como desejava que seus filhos fossem criados na sua ausência, mas estas de nada adiantaram. Jean de Craon decidiu substituir seu falecido filho pelos netos, Gilles e Rene que ficaram sob a sua tutela. É claro, isso também lhe deu controle da herança das crianças que o lançaram ao posto de segundo homem mais rico da França (atrás apenas do Rei).

Com 14 anos de idade, Gilles foi enviado para se tornar um escudeiro, servindo os cavaleiros que lutavam contra a Inglaterra. Isso era algo relativamente comum na vida de uma criança nobre que aspirava ingressar na cavalaria. Ele viu uma boa quantidade de batalhas e carnificinas acompanhando os cavaleiros na guerra. Longe de ficar chocado, Gilles estava apaixonado pela violência, um comportamento que se tornaria comum ao longo de toda sua vida.

Uma vez que era o herdeiro de uma grande fortuna, a Família Craon queria que Gilles se casasse o quanto antes para costurar uma boa aliança estratégica. Quando uma família vizinha declinou de formalizar as núpcias, Jean ordenou que Gilles raptasse a noiva, Catherine de Thouars e que a levasse para suas terras. Segundo lendas, Gilles não esperou o casamento para consumar a aliança, tendo estuprado sua refém enquanto estava a caminho de suas terras. Embora parentes da moça tenham tentado resgatá-la, ela acabou sendo obrigada a casar com seu sequestrador. Isso tornou os Craon ainda mais ricos, já que o pai de Catherine morreu na tentativa de salvá-la e sua fortuna passou para a filha (e consequentemente seu novo marido). Os dois tiveram uma criança, uma menina e uma vez estabelecido como um dos homens mais poderosos do país, Gilles deixou Rais e se estabeleceu na Corte do Delfim.


A situação política na França era curiosa. O Rei Carlos VI havia enlouquecido e em seu lugar, o filho também chamado Carlos havia assumido o trono usando o título de Delfim. Seu rival ao trono era ninguém menos do que Henrique V, Rei da Inglaterra, o que tornava a disputa entre os países ainda mais ferrenha. Gilles escolheu lutar pelo Delfim. Ele se distinguiu pela bravura ao ponto de ser descuidado, entregando-se ao combate com uma sanha incansável.

Em 1429, quando Gilles tinha 25 anos, uma jovem menina camponesa chamada Joana adentrou a corte em Chinon e disse ao Delfin que havia sido enviada por Deus. Se ele lhe desse um exército, então ela o comandaria até Orleans, que estava sofrendo um longo cerco pelas tropas inglesas, libertaria a cidade e lá o coroaria. Carlos não tinha escolha, caso Orleans fosse tomada ele estaria perdido, era preciso impedir o desastre. Suas tropas estavam desmoralizadas e os homens precisavam de algo em que acreditar, portanto ele enviou a moça, que passou a ser chamada de Joana D'Arc, com um exército de 10,000 homens para a batalha decisiva. Sua única condição era que ela ouvisse os conselhos de um dos seus homens de confiança. Esse homem não era outro senão Gilles de Rais.         

Juntos eles expulsaram os ingleses e a cidade foi entregue a Carlos conforme prometido. Joana persuadiu então o Rei a enviar um exército para retomar Rheims que também estava sob controle inglês. Novamente eles foram vitoriosos e Charles recebeu a coroa como Rei da França. Como reconhecimento à sua contribuição, Gilles de Rais foi honrado com o título de Marechal de França - o principal comandante do Exército Real. Mas apesar de toda influência conquistada, Gilles não tinha aliados na corte. A maioria dos nobres o achavam instável e tinham muito medo de suas explosões de fúria. Quando Joana foi capturada e entregue aos ingleses, Gilles fez uma campanha para que ela fosse libertada mediante o pagamento de um resgate, mas seus inimigos se negaram a contribuir. Sem apoio Joana foi executada mediante acusações de heresia, o que fez Gilles perder parte de seu apoio militar. Para piorar, em 1432, seu tutor, Jean de Craon, também morreu fazendo com que ele perdesse ainda mais aliados que preferiam negociar com seu irmão. Para seu desgosto, Rene foi alçado a chefe da família nos negócios com a Corte. 

Pouco depois da morte de Jean, Gilles deixou Paris e retornou para as terras da família. Na época, um primo contratou um jovem aprendiz para entregar uma mensagem em Rais. Quando o rapaz não apareceu, muitos assumiram que ele tivesse se perdido ou que havia sido vítima de bandidos. Na verdade, como depois ficou provado, o rapaz chegou ao seu destino, mas nunca deixou o lugar com vida. O primo achou que Gilles iria ficar satisfeito com um "brinquedo" em que pudesse descontar suas frustrações. O aprendiz, segundo boatos tinha uma impressionante semelhança com Rene. Ele foi sexualmente abusado, torturado, assassinado e teve seu corpo incinerado no porão do Castelo Machecoul que pertencia a Gilles.


Foi depois disso, segundo alguns historiadores, que os rumores a respeito da loucura assassina de Gilles de Rais começaram à vir à tona. Para alguns, no entanto, eles jamais foram segredo e já aconteciam há anos, uma paixão por sangue e tortura que o acompanhava desde a infância e que foi alimentada pelas chamas da guerra. Havia o boato de que durante a campanha em Orleans, quando ele estava ao lado de Joana D'Arc, Gilles satisfazia seus apetites sádicos com camponeses levados até ele por homens de sua inteira confiança. Os rapazes e meninas escolhidos eram jovens entre 6 e 15 anos, todos com uma determinada aparência que lhe atraía - pálidos, cabelos e olhos claros, de frágil complexão física. Em tempos de guerra, não era difícil encontrar candidatos em potencial. Bastava oferecer pão, um prato de sopa ou mesmo um lugar para dormir que as crianças os acompanhavam até o suntuoso pavilhão de campanha. E de lá, eles jamais saíam...

As mortes aconteciam de várias formas, mas a dor se mostrava uma constante. A tortura era algo que satisfazia ao Lorde e ele se deliciava em promover sofrimento e humilhação. Gilles era um pedófilo, um predador sexual que consumia enorme quantidade de estimulantes que potencializavam sua libido. Depois de abusar das suas vítimas ele próprio se encarregava de despachá-las cortando a garganta ou perfurando o coração com um golpe único. Mas segundo seus asseclas ele também se deliciava ao promover desmembramento e decapitação. Os cadáveres eram uma fonte de diversão para o monstro afeito da necrofilia.    

Embora seja difícil precisar quando ou onde os crimes tiveram início, é inquestionável que eles se intensificaram quando Gilles retornou ao seu Castelo. Os camponeses em Rais sabiam que algo horrível acontecia no Castelo Machecoul e suspeitavam do nobre, mas eles sabiam que qualquer acusação seria desconsiderada. Ao invés disso, tratavam de esconder as crianças e falavam de monstros espreitando na noite. Na verdade, eles sabiam muito bem que esses monstros eram os guardas do Lorde sempre em busca de vítimas. Os primos de Gilles também costumavam lhe enviar "presentes", na forma de jovens ajudantes de cozinha ou criadas que vinham de terras distantes sem saber da armadilha em que estavam caindo.

Estima-se que Gilles tenha matado entre 80 e 200 crianças de ambos os sexos entre 1432 e 1440. Assim como os camponeses tinham conhecimento de quem era o culpado por essa atrocidade, muitos nobres também sabiam. Rene, irmão mais novo de Gilles, com certeza conhecia a face obscura dele. Ele havia recebido informações de que uma propriedade da família em Rais havia sido vendida e que o comprador ficara chocado ao descobrir que haviam cadáveres de crianças escondidas no porão. Rene preferiu não fazer qualquer comentário, afinal de contas, eram os corpos de camponeses e ele não queria envolver a família num escândalo dessas proporções.

O que causou a queda de Gilles de Rais não foram os medonhos assassinatos cometidos contra crianças inocentes, mas os seus gastos exorbitantes e a obsessão com o ocultismo. 

Gilles levava um estilo de vida no qual gastava muito mais do que arrecadava. Ele comprava artigos de luxo, oferecia festas extravagantes e contratava artistas renomados. O ouro escorria de seus cofres rapidamente. Para piorar, ele queria financiar a criação de uma montagem teatral inspirada no Cerco de Orleans do qual havia participado. Para isso não mediu esforços ou poupou gastos. Ele se tornou patrocinador da suntuosa produção que tinha mais de 500 atores, gastando uma verdadeira fortunas e fazendo empréstimos cada vez maiores. Em dado momento, os gastos eram tão grandes que a corte de justiça da França emitiu uma lei proibindo as pessoas de fazer negócios com Gilles de Rais. Para pagar suas dívidas ele teve que vender quase tudo que tinha em Machecoul e mesmo assim ainda era caçado por credores.


Outro escândalo em que ele estava metido envolvia seu fascínio com o sobrenatural. Gilles mantinha contato com vários alegados feiticeiros que por sua vez se apresentavam a ele como intermediários para tratar com o Diabo. Ele desejava conhecer os mistérios da bruxaria e da magia negra e usar essas forças nefandas em benefício próprio. Entre os charlatães que o procuraram, um deles se destacava, um bruxo italiano chamado Prelati que afirmava ser capaz de invocar o demônio afim de firmar com ele um pacto.

Em 1439, no Castelo em Tiffauges (onde ocorreram muitos dos assassinatos), Gilles e Prelati tentaram invocar um demônio que chamavam de Barron. O feiticeiro convenceu Gilles que as Forças do Inferno poderiam interceder a seu favor e restaurar a sua fortuna se ele conseguisse realizar uma barganha vantajosa. Gilles havia adiantado à Prelati que não aceitaria vender a sua alma imortal, por isso seria necessário pagar ao demônio Barron de outra maneira. O acordo foi firmado com o sangue de inocentes oferecido num altar profano erguido no porão do Castelo Tiffauges. Assim foi feito e várias crianças foram levadas até aquele lugar profano para o sacrifício.

Mas a barganha parece não ter funcionado, já que em 1440, Gilles sequestrou o padre da igreja de St. Etienne de Mermorte que era irmão de um tesoureiro famoso para quem ele devia dinheiro. Seu objetivo era usá-lo para saudar as dívidas. Entretanto, Gilles cometeu um grave erro. Ele podia fazer praticamente qualquer coisa, uma vez que gozava da proteção real, mas sequestrar um religioso o colocava diante de um poderoso inimigo: a Igreja. 

O Bispo de Nantes Jean de Malestroit, foi encarregado de investigar o caso e desenterrar qualquer acusação que pudesse ajudar na acusação. Encontrou uma montanha de escândalos, boatos e rumores alarmantes que iam desde indiscrições menores até Satanismo. Quando as acusações se tornaram públicas, padres de Rais e camponeses que até então haviam sido intimidados, foram chamados a prestar depoimento e contar o que sabiam. O país chocado com o teor das acusações sequer podia acreditar na extensão daquele horror. O Marechal de França, mão direita do Rei, era um maníaco molestador de crianças, estuprador, torturador, assassino e demonologista.

A acusação inicial era o sequestro do padre, mas entre as testemunhas que se apresentaram estavam nobres, criados, amigos, parentes e os pais das crianças assassinadas em Machecoul. Os testemunhos foram devastadores e causaram enorme dano. Furiosos com os relatos nauseantes, uma horda de camponeses invadiu o Castelo, pilharam o que podiam e atearam fogo no resto. A França estava ultrajada e nem mesmo o serviço impecável dele ao lado de Santa Joana D'Arc servia para livrá-lo.


Gilles de Rais foi indiciado com acusações de 33 assassinatos, além de prática de sodomia, tortura, rapto, estupro e heresia, além de ser acusado de conluio com o demônio e de praticar a arte da magia negra em seu nome. Para se defender ele alegou que não reconhecia a autoridade da Igreja da França para julgá-lo, por isso o Bispo de Nantes formalmente o excomungou. Alguns dias depois, ele aceitou escrever uma confissão de culpa para ser readmitido na Igreja. A essa altura, Gilles já estava completamente transtornado e segundo alguns sua razão já havia se perdido.

Ainda assim, sua confissão foi aceita como prova instrumental de culpa. Ele admitiu todas acusações exceto a de ter invocado um demônio, feito que reputou exclusivamente ao feiticeiro Prelati. O italiano por sua vez disse que meramente agiu como um intermediário, mas que, quem promoveu a invocação havia sido Gilles de Rais através do sacrifício de 13 crianças. Ele foi então encaminhado para o torturador para que a verdade fosse obtida. Poucos dias depois, ele reconheceu todos os seus atos hediondos.

Gilles foi sentenciado a ser queimado na fogueira como herege. Em reconhecimento a seu ato de constrição, tendo reconhecido a culpa pelos seus crimes e se arrependido, ele recebeu o benefício de ser enforcado antes de arder na pira. O Bispo de Nantes, entretanto, ordenou que o corpo fosse poupado do fogo para que tivesse um enterro cristão.

Assim morreu Gilles de Rais, que um dia foi herói para a França e que posteriormente se converteu em um de seus mais notórios vilões. É chocante que os crimes que o levaram à execução envolviam Heresia, e não necessariamente os assassinatos de crianças inocentes. É perfeitamente possível que se não fossem essas acusações específicas, ele conseguisse escapar. 


É claro, hoje existem correntes afirmando que as acusações contra ele não passaram de fabricação de uma Igreja toda poderosa que tentava punir uma pessoa que foi contra ela. Apesar de que as evidências nesse sentido sejam pouco críveis. No fim das contas, Gilles o homem, se tornou Gilles o monstro. A simbologia do Demônio ao lado da Santa se tornou também uma parte do mito de Joana D'Arc. Alesteir Crowley descreveu De Rais como o equivalente de Joana, martirizado pela Igreja Católica pelas suas crenças no oculto. Cinco séculos mais tarde, as ações de outro matador, Jack, o Estripador apresentariam ao mundo um tipo de assassino tão terrível que um título seria criado para conceituá-lo - assassino em série. Com isso, um rótulo poderia ser pendurado também no pescoço de Gilles de Rais. 

Não que isso de alguma maneira nos ajude a compreender seus atos. Mas talvez assim seja melhor. Por vezes, não se aprofundar no que se passava na tumultuada mente desses monstros é melhor. 

sábado, 17 de abril de 2021

Biblioteca Lovecraftiana - Segunda Semana


Diariamente no grupo Mundo Tentacular do Facebook colocamos algum livro que tenha ligação com o Universo dos Mythos de Cthulhu com uma pequena descrição.

Com o objetivo de preservar esse material, semanalmente vamos transcrever os textos para cá. 

Espero que gostem.

MISKATONIC UNIVERSITY - Dire Secrets & Campus Life
Chaosium


Este suplemento cobre os pormenores da mais respeitável, estranha e sinistra instituição de ensino superior da Nova Inglaterra. A UNIVERSIDADE MISKATONIC (MU) localizada em Arkham tem uma longa e assustadora história desde os seus primórdios. Um repositório de conhecimento acadêmico e místico, contendo uma das maiores bibliotecas sobre o mundo oculto e os enigmáticos Mythos de Cthulhu em todo mundo.

Nesse livro de referências, o Guardião encontrará a história da MU, seus segredos, mistérios e detalhes sobre quem a controla, seus professores, alunos e coisas muito estranhas que acontecem nos seus bastidores. Além de detalhes sobre o que eles acharão na sua biblioteca e no Museu. É um bom complemento ao suplemento que se dedica à cidade de Arkham.

Ok, é legal! 

Mas admito que esse suplemento de Chamado de Cthulhu faz mais sentido para os que leram a obra de Lovecraft e vão entender várias referências soltas aqui e ali. Para quem não leu, boa parte dos detalhes vão se perder. Já no que diz respeito à utilidade pratica, bem... para quem quer usar a MU e Arkham em sua campanha encontrará coisas bacanas, mas nada essencial. Há excelentes ideias, mas o trabalho é mais correto do que empolgante.

A aventura que acompanha o livro, A Little Knowledge (Um Pequeno Conhecimento) já foi publicada antes na primeira edição do suplemento Arkham Unveilled. Ela é mediana, envolvendo um dos mais ilustres alunos do curso de Medicina, um que costumava concluir seus experimentos com ajuda de um revólver.
 
3/5 Tentáculos.

THE BOOK OF UNREMITTING HORROR
Pellgrane Press


Ok, esse livro não é Tentacular e menos ainda Lovecraftiano, mas o horror contido nessas páginas chama a atenção e por isso ele está em nossa lista. The Book of Unremitting Evil (O Livro do Mal Incessante) é um suplemento para ser usado em ambientações como Fear Itself e Exoterrorists, jogos de terror contemporâneos em que pessoas comuns e agentes treinados, enfrentam coisas medonhas e seres inomináveis. Eles usam o sistema Gunshoe, o mesmo de Rastro de Cthulhu.

Pessoal, esse livro é realmente perturbador. As ideias e os conceitos de alguns seres são algo que não se vê normalmente num livro de RPG. É violento, perverso e brutal ao ponto de deixar o leitor bem pouco à vontade.

As páginas em preto e branco com excelente arte oferecem uma série de criaturas e seres bizarros para serem usadas em cenários: a história, os hábitos, poderes e peculiaridades de cada um, além de ideias para construir cenários investigativos em torno deles. O conteúdo pode ser adaptado para outros sistemas com relativa facilidade e muitos dos monstros aqui valem à pena serem aproveitados.

Para quem está em busca de algo diferente dentro do gênero Horror e quer usar contra seus jogadores a coleção mais detestável e aterrorizante de monstruosidades jamais vista, esse livro é imperdível.

5/5 Tentáculos

MYTHOS EXPEDITIONS
Pellgrane Press


Expedições Arqueológicas e explorações em terras exóticas são um tema central para muitas aventuras lovecraftianas. Os anos 20 e 30, período em que se passam as histórias, foi marcado por descobertas e a conquista das últimas fronteiras geográficas do planeta.

É natural que esses lugares estejam presentes nas histórias de horror, servindo como pano de fundo das tramas. Elas invocam elementos clássicos como o medo diante do desconhecido, do impensável e o isolamento do ser humano.

Mythos Expeditions é um suplemento com cenários PULP para Rastro de Cthulhu que leva os investigadores a lugares diversos. Temos aventuras se passando nos desertos da Mongólia, recantos intocados da América do Sul, na misteriosa Nova Guiné, na Península de Yucatan, no coração da África, o Triângulo das Bermudas, Groenlândia, entre outros. São 10 cenários em que o desafio, além daqueles impostos pelos Mythos, envolve desbravar selvas, cruzar desertos, singrar mares e explorar territórios selvagens.
 
A qualidade das aventuras varia, algumas são boas, outras nem tanto. Uma ou duas são ótimas e imploram para serem jogadas. De um modo geral, algumas histórias poderiam ser mais detalhadas mas Mythos Expeditions continua sendo material sólido para esse estilo de cenário. Mapas muito bons, ilustrações decentes e uma boa variedade de ambientes tornam o livro um boa pedida para quem deseja Aventura e Ação em sua mesa de Cthulhu.

3,5/5 Tentáculos

THE ART OF H.P. LOVECRAFT CTHULHU MYTHOS
Fantasy Flight


Não é de hoje que artistas tentam traduzir em imagens as descrições medonhas das criaturas dos Mythos. Em geral, tende a ser uma tarefa inglória dar forma ao que esses autores chamavam de indescritíveis em suas histórias. Como criar algo além da imaginação humana? Como ilustrar o que não foi concebido para olhos humanos enxergar?

Em Art of H.P. Lovecraft Cthulhu Mythos (A Arte do Mythos de Cthulhu de H.P. Lovecraft) um grupo de talentosos artistas fazem o seu melhor para dar forma ao Horror Cósmico. E o resultado é nada menos do que incrível. Ao longo de vários capítulos, o livro faz uma apreciação das principais entidades, deuses, criaturas e lugares da mitologia cthulhiana.

Em uma belíssima edição com papel couchê e capa dura, o livro serve como um guia visual dos Mythos e faz uma celebração das criações de H.P. Lovecraft e seu círculo. Boa parte das ilustrações vieram dos produtos da Fantasy Flight Games, responsável por vários boardgames inspirados pelos Mythos - Arkham e Eldritch Horror, para citar os dois mais populares.
 
A arte é inspiradora, fonte inesgotável de ideias, referências visuais e pesadelos para abrilhantar sua mesa de RPG. Eles auxiliam os jogadores a compreender a extensão do que seus personagens estão encarando. Sem dúvida será um excelente acréscimo à sua prateleira e quem sabe até, mesa de centro.

5/5 tentáculos

ESCAPE FROM INNSMOUTH
Chaosium


Além da série "Secrets of..." (Segredos de) a Chaosium lançou uma coleção conhecida como Lovecraft Country (Terra de Lovecraft) em que oferecia uma visão in game das principais cidades lovecraftianas.
 
Cada uma delas é introduzida por um suplemento que apresentava a história, os detalhes, os habitantes e os segredos das principais cidades que servem de background para os contos mais populares de Lovecraft.

Nesse volume temos Innsmouth, uma decadente cidade portuária refém de antigos costumes e lar de sociedades secretas devotadas a terríveis entidades marinhas. O suplemento oferece um panorama geral de Innsmouth relacionando detalhes do conto "A Sombra sobre Innsmouth" com a mecânica de Chamado de Cthulhu.
 
O mais interessante, no entanto é que metade do livro se refere a uma mini campanha que permite aos jogadores participar diretamente dos eventos que antecederam a Queda de Innsmouth e o Ataque coordenado pelas forças armadas e que devastou a cidade. Dividido em várias seções, a campanha leva os jogadores, assumindo o controle de soldados, marinheiros e agentes federais, a tomar parte de cada Objetivo da Operação.
 
Bom material, boa sequência de cenários e excelentes ilustrações fazem deste um dos melhores livros de ambientação.

4/5 Tentáculos

DREAMS OF TERROR AND DEATH
Del Rey Publishing


Esse foi o segundo livro que li com contos originais escritos por H.P. Lovecraft. Hoje em dia, é fácil achar as obras traduzidas do autor, mas no começo dos anos 1990, não havia quase nada traduzido e era preciso recorrer a essas antologias estrangeiras, ao menos para encontrar os contos mais obscuros.

Esse exemplar da Editora Del Rey, Dreams of Terror and Death (Sonhos de Terror e Morte) foi meu primeiro contato com os contos em seu idioma original - o inglês. Lembro de ler as histórias com um dicionário do lado. Nele estão os principais contos envolvendo o chamado Ciclo dos Sonhos. São histórias com um toque surreal que invoca paisagens oníricas e cenários fantásticos. Terras exóticas e reinos que existem apenas além da imaginação.
 
Além disso, a seleção inclui os dois mais longos trabalhos de Lovecraft, "A Busca Onírica de Kadath" e a emblemática novela "O Caso de Charles Dexter Ward", dois de seus trabalhos mais conhecidos.

Com uma série de contos clássicos, essa antologia é uma ótima pedida para quem quer conhecer os textos originais numa edição mais econômica. Ele continua sendo editado lá fora há mais de 30 anos com essa mesma capa assombrosa. Ah sim, a introdução de Neil Gaiman é um detalhe interessante, sendo ele um "especialista no sonhar".
 
O único senão da edição é que as páginas são finas e acabam amarelando e manchando com o tempo. Mesmo assim, é uma ótima antologia que eu guardo com carinho.

4,5/5 Tentáculos

THE DREAMING STONE
Chaosium


As Dreamlands (Terras do Sonho) são uma parte importante da obra literária de H.P. Lovecraft. Através dessa realidade onírica, o autor construiu seu próprio universo fantástico, apresentando um lugar acessado apenas quando estamos dormindo. Nas Dreamlands há reinos, povos, deuses e maravilhas inimagináveis. Além é claro, perigos terror e aventura. Comparativamente, ela seria a tentativa de Lovecraft de criar seu próprio mundo de fantasia, como fizeram seus parceiros Robert E. Howard (do Mundo Hiboriano) e Clark Ashton Smith (com a Hiperbórea).

Cenários nas Dreamlands para Chamado de Cthulhu são um tanto raros, quanto mais campanhas como essa. The Dreaming Stone (algo como Pedra Sonhadora) pode ser considerada como uma mini campanha composta de cinco cenários interligados nos quais os investigadores, no caso sonhadores, mergulham na Terra dos Sonhos em busca de um rival que pode ter feito uma grande (e perigosa) descoberta.

O grupo terá de explorar lugares exóticos, enfrentará ameaças terríveis e irá viver uma grande aventura que inclui viajar em naus voadoras até a face oculta da Lua. Em sonhos, tudo é possível, afinal... Alguns trechos apostam pesado no surreal e soam quase delirantes, mas tudo bem dentro da proposta das Terras do Sonho.

Eu não cheguei a jogar ou narrar essa campanha, ela parece precisar de alguns bons ajustes antes de rodar numa mesa. É bom dizer que a noção das Dreamlands não é para todos os gostos, entretanto. Os jogadores precisam entender bem a proposta da ambientação, caso contrário ele não funciona. Para quem quer testar uma vertente diferente da mitologia lovecraftiana, esse livro pode ser uma boa pedida.
 
3/5 Tentáculos

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Essa foi a segunda semana, fiquem conosco para as próximas. 

Tem muita coisa esperando na fila.