sábado, 31 de outubro de 2020

Vivendo um Pesadelo - Preso em um buraco infestado por Ratos



"Viver um pesadelo".

A expressão é muito usada para definir algum acontecimento desagradável, aterrorizante ou traumático que ocorre com alguém. É claro, a definição do que constitui um pesadelo pode variar de pessoa para pessoa, mas esse caso real ocorrido nessa semana, com um homem em Nova York poderia ser enquadrado na categoria de pesadelo pela maioria das pessoas.

Leonard Shoulders, 33 anos, estava inocentemente indo para seu trabalho, como fazia todos os dias. Ele aguardava no ponto do ônibus, quando de repente o terror se apresentou de forma implacável. 

Sem qualquer aviso, o chão sob os seus pés começou a rachar e de um instante para outro, a calçada cedeu por inteiro abrindo uma fissura que o engoliu. Câmeras de Segurança filmaram o incidente mostrando o homem desesperadamente tentando se agarrar a borda da cratera que se formou. As pessoas ao redor olham assustadas, alguns tentam ajudar, mas não há tempo: ele acaba sucumbindo à gravidade e é literalmente engolido pela escuridão.

"Ele foi para baixo de repente", contou uma testemunha, "Ele estava parado na calçada, quando de repente afundou, como se estivesse sendo puxado. Quem estava perto nem teve tempo de reagir, ele simplesmente desapareceu".


Shoulders mergulhou nos subterrâneos escuros de Nova York, despencando de uma altura de quatro metros e meio. Na queda fraturou perna e braço, além de ter sofrido outras escoriações menores. Logo a seguir, pedaços de concreto começaram a cair e o atingiram, provocando ferimentos na face, quebrando seu nariz e arrancando dois dentes.

Não bastasse essa falta de sorte e as circunstâncias infelizes do acidente, o pesadelo de Leonard Shoulders estava apenas começando.

Sim, caro leitor, as coisas ficam ainda piores.

Enquanto tentava entender o que havia acontecido e reagir diante da súbita queda sofrida, Shoulders rolou sobre o próprio corpo, sentindo que era impossível se erguer. A surpresa bombeava adrenalina em seu corpo, tentando nublar a dor causada pelos ossos fraturados, mas mesmo assim ele não conseguia firmar o pé no chão e o braço parecia pender solto. 

Foi então que ele descobriu que não estava sozinho. 


Shoulders havia caído justamente em um covil de ratos. Milhares de ratazanas pretas, de todos os tamanhos infestavam o buraco e no momento em que ele atingiu o chão, os animais enlouqueceram com a presença de um invasor. Ratos podem ser animais extremamente tenazes quando seu território é ameaçado, sobretudo se há filhotes presentes. As ratazanas reagiram imediatamente! Elas cobriram Shoulders como uma onda viva de pequenas patas, corpos ondulantes e rabos compridos. Mordendo e arranhando, milhares de roedores atacaram com tamanha fúria que ele não conseguia reagir diante do choque.  


Algumas pessoas se aproximaram da borda para oferecer ajuda sem saber o que estava acontecendo lá embaixo. Elas se surpreenderam ao ver que o homem estava se movendo, mas que não respondia aos que perguntavam se estava bem. Uma lanterna de celular foi acesa e na luz pálida, o chão da câmara que se abriu parecia fervilhar com movimento. Os ratos - enormes ratos, haviam coberto o homem por inteiro e ele se limitava a mover os braços na desesperada tentativa de afastá-los.

"Ele não gritava", contou uma testemunha que captou um aterrorizante detalhe da cena, "Não queria abrir a boca para que os ratos não entrassem nela".

O pobre sujeito teve que suportar aquele pesadelo por cerca de meia hora até a chegada de bombeiros. Usando jatos de água eles conseguiram afastar os ratos o bastante para um homem vestido co roupa de borracha descer e apanhar Shoulders que a essa altura havia desmaiado. Ele foi levado imediatamente para o hospital onde recebeu socorro.  

A parte da calçada que ruiu foi cercada para evitar novos acidentes e o Departamento de Prédios da cidade ordenou a restauração do trecho que recebe grande movimento de transeuntes diariamente.

Um incidente semelhante ocorreu em Washington Heights, também em Nova York em 2017. Mariana Fuentes de 47 anos, caiu quando um trecho da calçada em que ela estava desabou. Ela despencou num trecho subterrâneo sofrendo ferimentos leves. Ao menos nesse caso, o local da queda estava livre de ratazanas.


Shoulders teve o azar de ter de lidar com roedores que nos últimos tempos se tornaram especialmente agressivos. De acordo com relatórios municipais, durante o lockdown da cidade por conta da Pandemia de Corona Virus, os ratos foram seriamente afetados. Com vários restaurantes fechados e movimento reduzido, os ratos perderam uma de suas fontes principais de sustento, os restos acumulados deixados na porta desses estabelecimentos. Com a escassez de alimento a população de ratos se tornou cada vez mais ousada, saindo de seus esconderijos à procura de comida. Ratos enormes, raramente vistos na superfície tem sido vistos invadindo garagens, porões e até mesmo residências. Boa parte dos roedores se tornou canibal, uma forma da natureza lidar com a súbita privação de alimentos.

Apesar de ter recebido atenção médica, o estado de Leonard Shoulders ainda inspira cuidados.

Pior do que os ferimentos sofridos, a experiência sem dúvida deixou traumas. 

"Ele acorda e grita sem parar", contou a mãe do homem, "ele tem pesadelos em que acredita ainda estar preso naquele buraco infestado por ratos e demora algum tempo até se acalmar e entender que está tudo bem agora".

Viver um pesadelo.

Talvez essa história sirva para definir do que realmente se trata.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

KULT Divindade Perdida: Resenha do RPG de Horror Contemporâneo que está chegando ao Brasil


Reeditando a resenha do fantástico KULT RPG que está em Financiamento Coletivo no Brasil através da Editora Buró. O link do Financiamento via Catarse está no final desse artigo, vale conferir.

KULT é um RPG que obteve grande popularidade nos anos 1990 e que se tornou matéria para discussão e polêmica desde o seu surgimento.

Sabe aqueles livros que publicam um disclaimer na primeira página?

Pois bem, KULT ia além e reproduzia um texto no qual afirmava que o conteúdo do jogo servia apenas ao propósito de criar uma atmosfera de terror e entretenimento. De forma muito séria ele advertia que nada daquilo deveria ser tratado como real. Ele deixava bem claro que os leitores não deveriam levar os conceitos à sério e menos ainda tentar reproduzir qualquer noção descrita no livro.

Isso porque KULT ia além das noções básicas de um jogo de Horror. Ele buscava se aprofundar em questões filosóficas, espirituais e existenciais de uma maneira até então jamais vista em outros RPG. Fora o incômodo de certos textos e o caráter visceral de algumas descrições e desenhos, KULT não poupava o leitor de elementos desconfortáveis para criar uma experiência única de horror na mesa de jogo.

O resultado?

Muita polêmica! Com acusações de que os autores suecos teriam ido longe demais em seu intuito de chocar ele passou a ser criticado. O livro era repleto de "gatilhos". Houve inclusive um caso, nunca provado de suicídio envolvendo um jogador de KULT na Suécia. Mas é claro essa polêmica atraiu a curiosidade de muita gente e contribuiu para tornar o jogo ainda mais conhecido. 

KULT teve três edições, a primeira e mais conhecida é considerada o Santo Graal dos RPG de Horror, um livro publicado no início dos anos 1990 pela Metropolis Press e que dizem alguns, chegou a ser recolhido nas lojas e censurado em algumas parte dos Estados Unidos. Não sei se essas histórias são inteiramente confiáveis, há muito exagero e boatos, mas é certo que KULT causou sensação. Tanto que a segunda edição, lançada alguns anos depois, teve o texto atenuado e diluído para se tornar menos chocante. A edição fez menos sucesso e se tornou o que alguns chamam de capa branca - a edição mais suave do livro. Foi necessário esperar mais uma década para que viesse uma nova releitura capaz de retomar o espírito original do jogo. A terceira edição é bastante fiel à primeira, reproduzindo trechos que haviam sido limados e juntando informações adicionais em um trabalho bem completo.

Mas que tipo de material podia causar tanta controvérsia?

Ao que estamos nos referindo quando falamos que esse livro era tão inflamável? Como curiosidade, eis aqui reproduzido dois trechos que sempre me chamaram a atenção no livro, sobretudo porque se refere a exemplos de personagem que podem ser escolhidos pelos jogadores:

"Quando comecei a estudar na escola, percebi que alguma coisa estava errada. Nenhuma das outras crianças na minha classe costumava acompanhar seus avós ao cemitério nas noites d elua cheia. Eles jamais viram cadáveres recentemente exumados ou membros serrados e levados para a cozinha. Nenhuma outra avó guardava um machado de cobre junto da despensa ou usava para cortar a carne. Elas nunca foram ensinadas a murmurar as palavras sagradas e mastigar a carne tenra agarrada aos ossos com seus próprios dentes. Quando comentei essas coisas, elas olharam para mim como se eu fosse um anormal. Então eu resolvi não falar mais sobre isso e assumi que famílias tem seus próprios segredos e que talvez seja melhor não falar deles em voz alta".


E esse é apenas um exemplo.

Outro? Lá vai:

"Keith e Kevin sempre foram cruéis comigo. Eles eram gêmeos e meus irmãos mais velhos, mas muito diferentes. Altos enquanto eu era baixa, morenos enquanto eu era loira. Algumas lembranças são mais dolorosas que outras, por exemplo, quando eles mataram meu cachorro Sparky e colocaram a sua cabeça na minha cama. Ou a vez em que eles me amarraram no estábulo e me bateram com o chicote. Ou ainda, quando cortaram a barriga de nossa gata que estava grávida e me forçaram a comer o que saiu dela. Eles me prenderam no porão com os restos do gato e deixaram os ratos virem. Quando eu fiquei mais velha, Kevin me forçou a fazer coisas com ele, que segundo suas palavras todas irmãs mais novas faziam. Eu fiquei muito confusa e envergonhada e pensei em me matar. Foi um alívio quando levaram Kevin e o trancafiaram em um lugar. Eu me mudei e meus tios cuidaram de mim. Eu voltei a sorrir. Semana passada fiquei sabendo que Keith ajudou Kevin a fugir daquele lugar. Eu não sei onde eles estão agora, mas tenho a sensação que é questão de tempo até descobrir".

Esse é um exemplo do mundo de KULT, onde o terror visceral está prestes a acertar um soco na boca do seu estômago a qualquer momento.

Para maiores detalhes sobre as edições anteriores, em especial a primeira, convido os leitores a ler o artigo com a resenha dela, que pode ser encontrado AQUI

Mas aqui vamos tratar da resenha da versão mais recente de KULT, a Quarta edição que tem o subtítulo Divinity Lost (Divindade Perdida). Ela foi publicada pela Helmgast AB, após um bem sucedido Financiamento Coletivo ocorrido em 2016. O livro foi produzido e distribuído pela Modiphius e depois de vários percalços finalmente chegou às mãos dos financiadores e está à disposição do público em geral.

A pergunta que não quer calar é: "KULT manteve a sua proposta original ou ele foi de alguma forma suavizado em sua mais recente encarnação"?

Vou colocar da seguinte maneira: Até onde sei, esse livro é o único RPG que discute palavras de segurança e gestos que podem ser usados pelos jogadores para sinalizar ao Narrador que estão se sentindo desconfortáveis com alguma cena.

Esse é o nível da coisa!


O livro é voltado para o público adulto e demanda obviamente um certo grau de maturidade e entendimento entre jogadores e narrador. É facilmente um jogo que pode ser desvirtuado por um narrador que não compreende a proposta dele ou por jogadores incapazes de manter certo grau de seriedade.

Mas é preciso estabelecer algo: KULT não é um jogo para o público em geral.

Suas histórias não são aventuras no sentido que estamos habituados a reconhecer na maioria dos RPG. As narrativas envolvem medo e terror gráfico, muitas vezes sanguinolento e geralmente perturbador. Ele explora aspectos bastante sombrios da humanidade. Os heróis são indivíduos com problemas sérios que tem que lidar com dilemas morais e éticos, isso sem mencionar os vilões e os seres que permeiam essa ambientação que estão entre as coisas mais desprezíveis e aterradoras já vistas.

Além disso, o próprio livro de KULT constitui um desafio aos leitores mais sensíveis. Os textos são cuidadosamente trabalhados para atingir em certos momentos um ponto de equilíbrio entre bizarrice e choque. A arte, por sua vez, reflete esse caráter visceral sendo extremamente provocativa. Há um desfile de imagens de horrores deformados, criaturas com cicatrizes cirúrgicas, enxertadas com amálgamas de carne e metal e amputadas. Além disso o livro apresenta muita nudez e sexo. Há imagens hardcore de sexo, penis eretos, sexo oral, hermafroditismo, sadismo, masoquismo e outras coisas que não se costuma ver em livros de RPG.


Conforme dito, KULT não é um jogo para todos e recomenda-se certa cautela ao apresentá-lo à novas audiências. Alguns podem se sentir ofendidos ou incomodados, e nesse caso, melhor conversar a respeito.

Vou contar uma história a respeito d e KULT. Anos atrás, resolvi fazer uma pequena campanha com três jogadores, sendo um deles a minha esposa. Ela está habituada a jogar Chamado de Cthulhu e Mundo das Trevas e adora um bom horror, tolerando bem todo tipo de coisa estranha, monstros tentaculares e a descrição dos mais medonhos rituais. Mas aquela aventura de KULT em especial, foi demais pra ela. No meio do jogo ela me chamou no canto e disse: "Pra mim não dá!".

"Como assim?", eu quis saber. E ela explicou que havia algo naquela aventura em especial - que envolvia um grupo de investigadores tentando traçar o paradeiro de uma criança desaparecida que podia ou não ser vítima de um serial killer, que a incomodava e que a deixou positivamente amedrontada. Tudo bem, aceitei de boa. Em certos momentos, isso pode acontecer em algumas mesas, mas é bem provável que aconteça nesse jogo em especial.

A despeito de todas essas recomendações, KULT - Divinity Lost é um RPG com uma ambientação e proposta extremamente interessantes. E para os que se sentem fascinados pelos matizes mais escuras do horror ou estão dispostos a explorar essas áreas, ele se mostra imperdível.

Escrever a respeito da ambientação de KULT - Diviniy Lost é complexo, visto que muito dela deveria ser mantida em segredo. As revelações nesse jogo deveriam acontecer preferencialmente de forma gradual, com os segredos sendo revelados ao longo dos cenários, sessões e campanhas. Revelar antecipadamente detalhes pode diminuir o impacto dessas revelações e funcionar como um enorme SPOILER que vai comprometer o choque pretendido.

O que posso revelar é que trata-se de um jogo sobre virtudes perdidas, mentiras e um esquema construído para enganar a humanidade e mantê-la eternamente escravizada. Participam desse esquema seres de incrível poder e influência que fazem de tudo para manter a raça humana presa em correntes que a impedem de atingir todo o seu potencial. Mesmo nossa carne e sangue não passam de uma ilusão, um invólucro para conter nosso espírito em um simulacro frágil e falho. O que está dentro é único e tem potencial para ascender rumo a um poder inimaginável.


O conceito de que vivemos em uma ilusão, cegos e incapazes de perceber o mundo real à nossa volta pode parecer familiar, e de fato é, já que os criadores da trilogia Matrix, dizem, se inspiraram em KULT para construir sua mitologia. Assim como acontece no filma, a humanidade habita uma espécie de ilusão construída para mantê-la contida e privada de suas habilidades. Um pequeno grupo de pessoas, no entanto, é capaz de ver além das aparências e começa a despertar esse potencial, desafiando os que construíram a Ilusão. Diferente de Matrix, não estamos falando de máquinas, mas de entidades pinçadas da tradição judaico-cristã: anjos, demônios, espíritos, criaturas e seres sobrenaturais de toda ordem, cuja função é trabalhar como feitores e guardas.

Quando um ser humano, começa a despertar, ele reclama parte de seus poderes de direito e essa compreensão acaba atraindo os carcereiros da Ilusão. Como uma espécie de polícia sobrenatural, eles verificam o perigo e tentam extirpar os despertos e evitar que eles usem o conhecimento para acordar outras pessoas. 

As aventuras de KULT envolvem esse tipo de revelação, às vezes de forma dramática. O despertar envolve enxergar o mundo além do preto e branco, contradizer crenças, explorar limites e ir além dos portões da consciência e percepção. Utilizando uma filosofia mística, os personagens de KULT se tornam peregrinos de terras estranhas, lançando-se em uma estrada de horror, pavimentada de dor e sofrimento. Se quiserem transcender eles precisam aprender magia, mergulhar em tradições e costumes bizarros, realizar rituais detestáveis, se desprender das limitações da carne e se envolver com coisas realmente incômodas.


Pense no filme Hellraiser (apenas o primeiro), que constitui uma das maiores inspirações para KULT. Nele, um dos protagonistas está disposto a ir até o Inferno (literalmente) para obter os segredos de um artefato que permite transcender a carne e comungar com o êxtase divino. Sua busca acaba atraindo a atenção de torturadores dispostos a destruí-lo, remontar sua carne inúmeras vezes e torturá-lo pela eternidade.

KULT segue essa mesma premissa, colocando os jogadores no papel de personagens com potencial para o despertar, mas que terão de comer o pão que o diabo amassou, para ter um vislumbre disso. E não se engane, as coisas vão ficar bem feias no decorrer das histórias.

Uma campanha de KULT se inicia com um primeiro vislumbre além da Ilusão e a partir daí, os personagens começam a explorar o esquema em busca da verdade. Em um jogo com tal proposta, os personagens não deveriam ser "pessoas normais", por isso o jogo propõe a criação de personages "com algo mais".

Os personagens são indivíduos que de alguma forma sentem a existência de algo além. Eles descobrem que a vida é mais do que trabalhar, ganhar dinheiro, comprar coisas, procriar e morrer. É justamente esse inconformismo que servirá para abrir seus olhos e expôr a mentira que permeia condição humana. Os jogadores podem escolher diferentes arquétipos que fornecem as linhas gerais para a construção dos personagens. Cada arquétipo segue uma proposta dentro da ambientação, e fornece ideias que se encaixam no panorama do jogo.

Uma verdade inconveniente a respeito das edições antigas desse RPG é que as regras eram muito fracas. Elas pareciam incomodamente raquíticas para comportar um jogo dessas dimensões o que acabava amarrando e atrapalhando a fluidez das sessões. KULT - Divinity Lost reparou esses problemas ao converter o jogo para o Sistema Apocalipse World.


Eu não sou um conhecedor desse sistema de regras, então vou fazer um breve sumário de como elas funcionam, sem me aprofundar nos pormenores. 

A essência do jogo está em algo chamado Moves (Movimentos) que são testes feitos para serem comparados em uma tabela de resultados. Cada movimento tem um gatilho (por exemplo "Investigar uma cena", "enganar um NPC" ou "reagir a um acontecimento apavorante") e uma tabela que define os resultados. Em geral uma rolagem de 15 ou mais é um sucesso. De 10 a 14 um sucesso parcial. E 9 ou menos constitui uma falha. O jogo usa dois dados de 10 lados que são somados para obtenção do total.

Durante a criação dos personagens, os jogadores distribuem pontos de modificador +2, +1 e +0 para suas estatísticas básicas de Fortitude, Reflexos e Força de Vontade. Cada personagem possui ainda modificadores de +3, +2, +1, +1, +0, -1 e -2 para distribuir em atributos secundários que definem seu Carisma, Frieza, Intuição, Percepção, Razão, Alma e Violência. Como você deve ter intuído, esses modificadores refletem os pontos fortes e fracos dos personagens. Eles serão acrescidos ou diminuídos do rolamento de dado nos testes. Cada movimento é baseado em uma combinação de Atributos que fornecem um bônus ou uma penalidade. 

Além disso, o sistema disponibiliza uma extensa lista de vantagens e desvantagens que deverão ser escolhidas pelos jogadores dependendo de seu arquétipo e que irão conceder benefícios ou complicadores adicionais no momento de tentar os Movimentos. Não existe uma lista de habilidades, todas elas decorrem diretamente dos atributos básicos e das vantagens escolhidas.


Famoso nas outras versões do jogo, Divinity Lost reedita os Dark Secrets (Segredos Negros) dos personagens, dessa vez "obrigando" que todos os personagens adotem ao menos um deles. Esses segredos são na nova ambientação uma espécie de catalizador emocional que serviu para "abrir os olhos" dos personagens para a realidade do mundo. Esses Segredos são realmente apavorantes e medonhos, coisas que vão desde ter sido vítima de experimentos, de ter tido contato com espíritos, ter realizado algum pacto demoníaco ou ainda ter cometido algum crime ou atrocidade. Os Dark Secrets ganharam uma importância crucial no jogo e são uma ferramenta para mergulhar na alma dos personagens, por vezes encontrando algo especialmente atroz ou reprovável. 

Uma das coisas mais bizarras em KULT é justamente a possibilidade de interpretar indivíduos que não apenas sofreram coisas horríveis, mas que muitas vezes cometeram atos moralmente questionáveis. Mais um motivo para que o grupo tenha maturidade em explorar essas facetas. 

Sendo absolutamente franco, eu ainda não testei o sistema para dizer se gostei ou não, o que posso dizer é que no papel ele parece bem sólido e promissor. O Apocalipse Engine tem fãs ardorosos que elogiam bastante sua fluidez e simplicidade, o tipo da regra que privilegia o jogo descritivo e rápido. Em resumo: meu tipo de regra e o estilo de jogo que me agrada.

Uma coisa interessante que mesmo um iniciante no sistema pode perceber é que os Monstros e criaturas possuem um bloco de estatísticas com números bem superiores. Isso se dá porque os horrores de KULT são coisas que os personagens não devem enfrentar. Para quem está habituado com Chamado de Cthulhu, não causa surpresa que os inimigos sejam extremamente poderosos. Aqui a coisa é realmente desigual, e a morte pode chegar rapidamente se um jogador quiser enfrentar de peito aberto uma dessas abominações.


O livro é excepcional em explicar as regras e o sistema. Tudo vem acompanhado de exemplos e descrições que ajudam não só a entender a mecânica, como absorver o estilo do jogo e suas muitas nuances. KULT a meu ver demanda um Narrador com certo traquejo e experiência na condução de aventuras. Não estou dizendo que um iniciante não possa narrar uma sessão desse jogo, mas me parece importante saber como transitar entre situações limítrofes e descrever cenas viscerais com detalhes que nem todos teriam estômago para fazer.

Uma vez que a ambientação é tão diferente, o livro propõe dicas e soluções para estruturar a sessão e escrever seu próprio cenário. É claro, muitos podem imaginar que cenários de KULT são estranhos e estes não estão errados em assumir a dificuldade em escrever essas histórias. Eu definiria o jogo como um Horror Hardcore, com doses generosas de investigação e mistério e um pouco mais do que uma pitada de sanguinolência e medo. As informações de como conduzir a narrativa, como centrar o foco nos personagens, manter o ritmo e criar excitação e expectativa são extremamente valiosas, não apenas para esse jogo, mas para qualquer outra ambientação no gênero horror.

O terço final do livro é de longe o meu preferido e que mais me impressionou. Ele trata dos Segredos e Verdades sobre a Ilusão e ergue o manto sobre os seres aterrorizantes e as bombásticas revelações da ambientação. Ali estão não apenas as estatísticas dos horrores mais medonhos que vi em muito tempo (e isso dito de um fã de Cthulhu!), mas ideias para usá-los em sua história e descrições cruas que parecem saídas da cabeça de um demente. Sério mesmo, algumas dessas descrições são combustível de pesadelos que vão fazer o motor de sua imaginação rodar em altíssima octanagem. O livro desfralda ainda as terras além da Ilusão, lugares que os personagens poderão visitar em seu caminho para a iluminação, ou para onde serão arrastados aos berros por algum carcereiro vingativo.

Finalmente temos uma vasta coleção de magias e rituais que os personagens poderão obter e desenvolver ao longo do seu desenvolvimento. Em KULT, não há algo como nível de experiência, mas isso não significa que os personagens ficarão estagnados, pelo contrário, poucos jogos evocam com tanta força a noção de que conhecimento é poder (ainda que extremamente perigoso).


Há diferentes Caminhos que permitem ascender na direção da Divindade - a saber Sonho, Paixão, Morte, Loucura e Tempo-Espaço, cada qual com seus riscos, recompensas e pormenores. Os jogadores podem usar um ou mais destes caminhos em suas buscas, mas nenhum é tranquilo ou "normal". Tudo é profundamente estranho e degenerado, então esteja preparado para assistir e permitir que seu personagem tome parte em situações realmente bizarras.

A despeito de seu teor indigesto, o texto é fluido, bem escrito e incrivelmente cativante. Você sente vontade de continuar lendo e não parar até ter concluído o trecho e então seguir para o próximo. Nada é gratuito, e as informações, embora pesadas, são nada menos do que fascinantes. Eu reconheço que leio devagar e que gosto de voltar e ler trechos novamente, mas aqui, li em uma sentada só. 

Finalmente, precisamos comentar sobre o aspecto físico de KULT - Divinity Lost e aqui cabem vários parágrafos. pois o visual do jogo é impressionante.

Falamos muito a respeito do capricho e cuidado que as editoras dispensam ao material de RPG atualmente. Existe um novo e louvável padrão de apresentação e qualidade que os Livros tem seguido - capa dura, papel de qualidade, marcador de páginas, etc. Mas por vezes é necessário elogiar um novo patamar de excelência atingido. E esse livro merece ser elogiado. 

KULT é um dos livros mais bonitos que já vi.

A qualidade gráfica é nada menos do que excepcional, com um acabamento e diagramação impressionantes. Tudo ali parece ter sido trabalhado com esmero e dedicação, contribuindo para um resultado notável. O livro oferece uma profusão de páginas escuras de um preto atordoante. Por sinal, jamais vi um livro com tantas páginas escuras. As primeiras 40 páginas do livro (que tem cerca de 350) são PRETAS, com um pequeno texto e uma arte arrebatadora em painel.

A capa é sensacional, uma das minhas favoritas, no mesmo patamar da icônica ilustração do anjo dividido por uma tesoura que ilustrava a primeira edição. Quando participei do Financiamento Coletivo havia a chance de escolher entre duas opções de capa, a primeira com a personagem em destaque vestida e a segunda (exclusiva para o FC) com os seios à mostra. Eu preferi a segunda. É um trabalho fantástico de Bastien Lecouffe Deharme, um dos principais artistas envolvidos no projeto do livro. A personagem em perspectiva parece saída de uma tela renascentista.

A arte é aliás um elemento usado como instrumento para desarmar o leitor. 

Não me entenda mal, ela é incrivelmente boa, mas dolorosamente minuciosa. Nunca se viu tantos detalhes anatômicos em estilo full-frontal in your face (total frontal na sua cara). Não me refiro apenas a nudez e sexo, aos corpos mutilados e sanguinolentos, mas a detalhes menores que chocam pelo aspecto visceral. As expressões dos personagens retratados parecem remeter a painéis medievais, extraídos de vitrais góticos ou telas à oleo. Expressões de dor e sofrimento, ocasionalmente de êxtase e prazer se multiplicam pelas páginas escurecidas. 

As cenas de paisagens e vistas urbanas são contemporâneas, retratando cidades escuras e sujas, com arranha-céus de aço e concreto desafiando céus enevoados. O ambiente de KULT é o das metrópoles populosas e frias, com arquitetura arrojada e desafiadora, mas ainda assim, prisões que o próprio homem construiu, como gaiolas douradas.

Eu sempre fui um fã de KULT, tanto da ambientação, quanto de sua proposta. Sempre achei ele estranho e fascinante na medida certa. Narrei algumas vezes e joguei ainda menos, mas cada sessão foi uma experiência diferenciada. Há uma mística a respeito desse jogo, algo que beira o proibido e que por isso talvez o torne tão atraente.

O que posso dizer, sendo um veterano do sistema (ouso me considerar como tal), é que KULT jamais esteve tão bem representado quanto nossa quarta edição.

Eu pretendo testar esse jogo em breve, não é o tipo de "fera" que ficará para sempre na estante. Bestas como essa, por vezes querem sair e precisam ver mesa de jogo. Eu só espero estar à altura de controlá-la depois. 

Já dizia o velho ditado: "jamais conjure algo que não pode controlar".

Um adendo extremamente importante a essa resenha. "KULT - Divindade Perdida" enfim está chegando ao Brasil através da Editora Buró em um Financiamento Coletivo repleto de extras (que ao tempo dessa publicação já terá atingido sua meta base). 

KULT é um grande RPG e vale a pena conhecer!

Dá uma conferida na página do Financiamento:


terça-feira, 27 de outubro de 2020

RPG do Mês: Resenha de Conan: Aventuras em Uma Era inimaginável



"Saiba, Ó Príncipe..."

Basta ouvir essas palavras que eu imediatamente imagino elas sendo proferidas pela voz gutural de Mako na introdução do filme Conan, o Bárbaro de 1982, ainda a melhor das adaptações do personagem. Logo em seguida, sobe a fantástica música de Basil Polidouris, capaz de me transportar imediatamente para um tempo de Fantasia, Selvageria e Alta Aventura.

Sim, para aqueles que não perceberam, eu sou um grande fã de Conan, o Bárbaro.

Conan foi um dos primeiros quadrinhos que eu comprei e realmente devorei do começo ao fim. As histórias do personagem, quando eu era criança nos anos 1980, eram publicadas na revista A Espada Selvagem de Conan da Editora Abril. Mensalmente a publicação em preto e branco trazia histórias incríveis de Conan, um anti-herói que vagava por um mundo exótico, a Terra Hiboriana. Lugar que era o palco de combates ferozes contra inimigos terríveis, ambos humanos e sobrenaturais, igualmente cortados pela espada do Cimério, pois se há algo que Conan nos ensinou é que "se sangra, morre". 

Mas não era apenas a ação e excitação presente em cada história: era o traço incrível dos artistas, as capas coloridas de ilustradores consagrados, as curvas das belas guerreiras e princesas, e é claro, os roteiros inspirados de Roy Thomas, sempre baseados num conto original do brilhante Robert E. Howard.

É notável que Conan, o Bárbaro continue atraindo tanto a atenção em especial pela longevidade do personagem.


Robert E. Howard nasceu em 1906 no Texas e escreveu furiosamente ao longo de toda sua produtiva e (infelizmente) curta vida - ele morreria por suas próprias mãos em 1936. O que esse sujeito intempestivo, brilhante, criativo e por vezes melancólico fez de mais importante para a literatura, foi ajudar a edificar as bases para todo um novo gênero conhecido hoje como Espada e Feitiçaria (Sword & Sorcery). Eu concordo com a analogia que alguns fazem a respeito do estilo de escrita de Robert E. Howard, sua máquina de escrever funcionava como uma verdadeira motosserra. As palavras eram gritadas, a ação transbordava, o sangue e a emoção imperavam em cada parágrafo. Howard era um poeta da violência e um bardo que dava ao calor da batalha cores e formas quentes.  

Dizem que ele encenava as lutas de seus personagens, apanhando um velho sabre de cavalaria herdado de um antepassado, e rodando pelo estúdio, saltava de um lado para outro, massacrando inimigos invisíveis com a vivacidade de seus protagonistas. E não foram poucos os heróis que surgiram através das teclas marteladas por Howard: Kull, Bran MacMorn, Solomon Kane e é claro, Conan, a maior de suas criações, surgida em 1932.

Em apenas 4 anos, Conan se tornou o personagem mais importante da carreira de Howard. Ele vagou, explorou, conquistou e devastou o Mundo Hiboriano como ladrão, soldado, mercenário, guerreiro, gladiador, pirata, saqueador e finalmente, Rei. São tantas as histórias consagradas que é difícil apontar uma única capaz de resumir a grandiosidade da obra de Howard. O autor sabia bem que havia encontrado o personagem pelo qual seria lembrado, pois seus últimos anos foram quase que inteiramente devotados a Conan. Nenhum outro personagem do gênero se tornou sinônimo de barbarismo e conquistou uma legião de fãs como ele.

De muitas maneiras, suspeito que Conan tenha sido um dos "culpados" por semear meu interesse pela Fantasia, pela Literatura e é claro, pelos RPG. Depois de devorar por anos os quadrinhos, conheci os contos originais escritos por Howard e minha admiração por sua obra apenas cresceu. Suspeito que eu não seja o único a ter passado por algo semelhante! Vários colegas de mesa, não cansam de citar o personagem como uma referência clara de sua vivência como jogador e como inspiração direta para narrar aventuras épicas. 


Que fã não adoraria (em sentido figurado, por Deus) vestir a tanga de Conan, calçar suas botas e empunhar a Espada Selvagem do Bárbaro mais furioso de todos os tempos? Que escolhas faria ao enfrentar hordas de Pictos selvagens? Como se comportaria ao entrar em uma perigosa taverna na decadente Shadizar? Como lidaria com os feitiços dos feiticeiros Estígios ou com o Povo do Círculo Negro? 

Que aventuras iria viver nesse mundo fantástico?

Bem essas perguntas podem ser respondidas através do RPG Conan: Aventuras em Uma Era Inimaginável (Conan: Adventures in a Age Undreamed, doravante apenas Conan). Lançado no início de 2018, a ambientação com o Selo da gigante Modiphius pega os jogadores pelo braço e os carrega até a decadente, vibrante e assustadora Era Hiboriana, permitindo a eles explorar os mesmos lugares que o Cimério de Bronze esteve e repetir seus passos.

É claro, essa versão de RPG envolvendo Conan não é exatamente uma novidade, já existiram várias outras usando desde o sistema de GURPs até o da antiga TSR. A mais conhecida e recente foi lançada pela Mongoose. Ela se valia de um hack do D20 nos tempos da 3,5 com uma excelente adaptação que contou com farto material de referência, suplementos e aventuras. A versão sobreviveu por alguns anos, tendo inclusive uma segunda edição das regras, mas eventualmente, foi descontinuada deixando o personagem em um novo limbo - ao menos até agora. Em se tratando de um personagem tão carismático e de um mundo com tantas nuances, seu retorno, é mais do que bem vindo.


Mas o que encontrar nessa ambientação e no sistema, o 2D20 que se tornou o engine no qual rodam os jogos publicados pela Modiphius (como por exemplo, Star Trek Adventures)?

A tarefa de escrever uma resenha a respeito desse livro é meio ingrata, já que ele é um tremendo tomo de capa dura, com mais de 400 páginas coloridas. Temos textos extensivos entrecortados por arte fabulosa, descrição minuciosa e histórico completo da ambientação, criação de personagens, regras do sistema, um bestiário com monstros e criaturas, dicas para a criação de aventuras, sistema de magia, tradições etc... enfim, não é pouca coisa. Conan é um livro completo e embora conte com vários suplementos, o material aqui contido é mais do que suficiente para uma campanha inteira.

Um dos aspectos mais interessantes de todo o trabalho envolve o respeito com o qual o criador do personagem foi tratado. Fica evidente a maneira como o livro apresenta Robert E. Howard e sua obra, oferecendo ao leitor, fã ou não, a chance de conhecê-lo e se familiarizar com os pormenores de suas sagas, personagens e criações. Para quem conhece nada, ou bem pouco a respeito dele, é um excelente esforço para contextualizar o autor, seu tempo e sua produção literária. Quem não leu nada de Conan se sente estimulado à fazê-lo, de uma maneira semelhante ao que o livro Chamado de Cthulhu faz com H.P. Lovecraft. Para quem já é fã do autor, o livro oferece uma excelente biografia, situando a importância de Howard como criador de um importante subgênero, o já mencionado "Sword and Sorcery".


Após essa introdução esclarecedora do homem, o livro traça um painel completo sobre o Universo que ele delineou para hospedar suas histórias. A Era Hiboriana é desfraldada em textos evocativos e ilustrações de cair o queixo ao longo de várias páginas. Os Reinos Civilizados e as Terras Bárbaras são apresentadas detalhadamente, com o cuidado de oferecer um panorama da cultura, política, história, religiões e principais traços de cada povo que habita esses lugares. 

Para os que não está familiarizados com esse mundo, cumpre explicar que cada Nação Hiboriana parece ser reminiscente de povos da antiguidade, com um tempero pendendo para imaginação. Assim temos uma Aquilônia que lembra a França de Carlos Magno, uma Estígia calcada no Egito Dinástico, Argos e Zíngara que lembram Grécia e Espanha respectivamente, Shem com desertos e terras pastoris similares a Arábia e assim por diante. O mapa hiboriano, uma imensa Pangea continental, parece uma colcha de retalho de diferentes povos constantemente em guerra, enfrentando nações inimigas e hordas de bárbaros invasores. As relações políticas, a diplomacia e os frequentes conflitos são pano de fundo para muitas aventuras, portanto se engana quem imagina que a Saga de Conan envolve tão somente lutas, roubos e pilhagem. Boa parte inclui também intriga, conspirações e disputas nos bastidores do poder.

A Era Hiboriana também é um tempo de Feitiçaria. Embora a ambientação seja por definição low-magic, existe espaço de sobra para terríveis magos, seres sobrenaturais e entidades agirem como uma força palpável sempre à espreita. Feitiçaria é algo extremamente temido, uma prática nefasta que aterroriza as mentes primitivas e impõe a loucura àqueles que dela se aproximam sem cuidado. Tradições mágicas como os Bruxos da Estígia, o Povo do Anel Negro, a Magia Negra Kushita e tantas outras proliferam nas aventuras de Conan, concedendo a elas, um elemento surreal de terror. Não por acaso, diversos elementos dos Mythos de Cthulhu, foram cooptados para a Era Hiboriana fazendo com que Tsathogua, Yog-Sothoth e Cthulhu sejam considerados como divindades ancestrais, mas que ainda detém poderes. Lovecraft e Howard, por sinal, foram colegas de correspondência e as ideias de um alimentavam as histórias do outro, e vice-versa.


Assim como a feitiçaria permeia essas terras, há criaturas e monstruosidades escondidas nas selvas, florestas, ruínas e desertos. Povos antigos invocaram, temeram e cultuaram esses horrores desde a aurora dos tempos. E eles ainda estão por aí, podendo ser encontrados, sobretudo por exploradores e aventureiros em busca de tesouros e conhecimento perdido. O Mundo de Conan esconde muitas abominações, sendo que a maioria destas são tão poderosas e implacáveis que mesmo heróis veteranos terão dificuldade de enfrentá-las. Fugir ou recorrer a estratégias alternativas pode fazer toda a diferença ao encarar esses horrores.    

Num mundo como esse, perigoso e repleto de violência, vigora uma luta constante entre duas forças antagônicas: Civilização e Barbarismo. Este aliás é um dos pontos centrais da obra de Howard. Segundo esse cânon, o barbarismo é o estado natural e puro do ser humano, aquele ao qual os homens levados ao extremo recorrem para superar as mais duras provações. Conan, por definição é a quintessência do Bárbaro, um guerreiro taciturno e brutal, ainda que dono de um inquebrantável Código de Conduta que o coloca em uma posição de vantagem quando lida com os demais povos mais iluminados. 

Os jogadores podem escolher ser bárbaros ou então homens civilizados de quaisquer dos dezenas de nações oferecidas. Cada uma dessas pátrias oferece um leque de vantagens, desvantagens, crenças e sua visão exclusiva do mundo que os cerca. A escolha de uma herança cultural é um dos primeiros pontos para a construção dos personagens e essa escolha irá refletir vários momentos cruciais do desenvolvimento de seu personagem.


É interessante salientar que as histórias são mais cascudas, cruas e provavelmente menos heroicas que em outras ambientações de Fantasia Medieval mais tradicionais. Os personagens dos jogadores serão espadachins de aluguel ou mercenários em busca de uma recompensa cobrada antecipadamente, antes mesmo de desembainhar suas espadas. Sua motivação principal pende para sua sobrevivência e bem estar, portanto campanhas para salvar o mundo serão bem menos frequentes. Haja vista que o Universo de Conan é moralmente ambíguo, uma curiosa ética aparece em meio a toda essa barbárie, permitindo que os personagens tenham um compasso para guiar suas ações.

Os personagens em Conan possuem três elementos primordiais: Atributos, Habilidades e Talentos

A Criação dos Personagens foi dividida em um capítulo que inclui um passo a passo com várias opções para escolher a Terra Natal, Atributos, Casta, Histórico, Arquétipo, Natureza, Educação, Histórico Militar e os Toques Finais e de Cálculo que vão dar o equilíbrio derradeiro da identidade de seu personagem. A mecânica básica inclui uma combinação de modificadores dos atributos e o acréscimo de habilidades e talentos. Para construir seu personagem há alguns elementos de sorte obtidos através de rolamentos, que podem resultar em altos e baixos. Alternativamente, o jogador pode recorrer a um sistema de alocação de pontos que tornará a ficha bem mais equilibrada. 


Os sete Atributos são Agilidade, Inteligência, Personalidade, Briga, Força de Vontade, Percepção e Coordenação. As habilidades disponíveis no jogo por vezes dizem um bocado a respeito das atividades em que os personagens estão envolvidos. Com isso em mente, as habilidades em Conan RPG incluem acrobacia, alquimia, domar animais, atletismo, comandar, aconselhar, ofício, disciplina, cura, insight, línguas, conhecimento, armas de mão, observação, aparar, persuadir, armas de distância, resistência, navegação, sociedade, feitiçaria, furtividade, sobrevivência, gatunagem e guerra.

Talentos estão ligados às habilidades e fornecem meios de utilizar as habilidades de um modo diferente e mais específico (o talento mais básico tende a permitir que se role novamente um resultado desfavorável), mas com o desenvolvimento gradual, o personagem começa a dominar pormenores da sua habilidade que se tornam bastante amplas. 

A Terra Natal do personagem fornece a sua língua mãe e um talento típico da civilização ensinado de forma geral a todos os personagens nascidos naquela pátria. Personagens começam com sete em todos os atributos, ou podem começar com uma mistura de seis, setes e oitos. Esses valores são aumentados por uma série de bonus e melhorias na graduação de +1 até +3, com a média dos atributos ficando em torno de nove, sendo que os atributos principais podem chegar a 14, o que é um valor considerável no início da carreira dos personagens.


A Casta fornece o padrão de vida inicial de seu personagem, onde ele está inserido socialmente entre os seus compatriotas. Também irá fornecer uma habilidade, um par de talentos que estão relacionados ao seu estilo de vida (como por exemplo nobre ou comerciante). A história do personagem concede um sabor a sua existência.

Os Arquétipos em Conan RPG são o mais próximo que se tem de "classes de personagem". As opções de Arquétipos incluem Arqueiro, Bárbaro, Mercenário, Guerreiro Nobre, Nômade, Pirata, Sacerdote, Estudioso, Canalha e Bruxo/Xamã. Com essa quantidade de Arquétipos é possível construir uma considerável variedade de personagens, quanto mais, se considerarmos que cada povo possui suas especificidades e características, afinal um guerreiro Aquiloniano será bastante diferente de um lanceiro tribal Kushita. Os Arquétipos fornecem importantes informações para a construção de seu personagem ditando a maior quantidade de habilidades (sete), mais um talento e seu equipamento inicial condizente com a sua atividade.

A maioria das habilidades são ditadas pelo Arquétipo, com um bônus de +2 para as mais importantes e +1 para as demais listadas. Os personagens a partir dessa base podem escolher aquelas habilidades nas quais desejam que seus personagens demonstrem maior aptidão e conhecimento. De um modo geral, essa parte envolve várias escolhas, mas se desenvolve de uma forma intuitiva e bastante intuitiva. 


A Natureza é uma espécie de personalidade que define alguns detalhes a respeito de seu personagem. Ela concede também uma mistura de bônus de atributo, uma seleção de habilidades e um talento. Já Educação permite compreender o grau de imersão de seu personagem no ramo por ele escolhido, o que pode variar bastante. O Histórico de Guerra não concede apenas flavor, mas é mecanicamente relevante fornecendo alguns modificadores em face de experiência no campo de batalha em algum momento de sua existência. Nesse contexto, "guerra" não é um conceito literal. O Histórico de seu personagem pode envolver ele ter sido feito prisioneiro por outro povo e ter aprendido algo nesse período ou ainda ter se perdido em uma ilha onde entrou em contato com nativos que compartilharam algum conhecimento.

Os Toques Finais ainda fornecem mais alguns pontos, atributos e talentos sem restrição que espelham um diferencial para seu personagem ter ingressado.

As habilidades de personagem espelham dois valores - a especialização e o foco. Um dos valores aumenta quando você obtém sucesso num teste, o outro aumenta quando você consegue um rolamento crítico. Na criação do personagem esses valores permanecem idênticos, mas no decorrer de uma campanha, eles vão aumentando.    

O Sistema de Conan Aventuras em Uma Era Inimaginável se vale do sistema básico da Modiphius o 2d20, embora este tenha sido modificado, por vezes de forma bem acentuada para funcionar dentro da proposta de um jogo baseado na Era Hiboriana. Contudo, aqueles que conhecem o sistema de outras ambientações, não terá problemas em reconhecer a essência de seu funcionamento prático.


Em linhas gerais, o 2d20 funciona da seguinte forma: Personagens possuem Atributos e Habilidades. As ações são realizadas com o rolamento de 2d20, com um número alvo que é igual a soma do Atributo e da Habilidade aplicáveis. Quanto mais altos os fatores dessa soma, melhor já que mais fácil de ser obtido o número desejado no rolamento. Nesse caso, quanto mais baixo o número rolado nos dois dados de 20, melhor! Um resultado menor ou igual ao número alvo se traduz em dois sucessos. Um rolamento natural de "20" cria complicações, mesmo que se atinja um sucesso. Um determinado número de sucessos é requerido para tarefas mais complicadas e que demandam tempo/dedicação. De modo geral, o sistema envolve essa premissa (com mais alguns pormenores) e, embora no início possa parecer um pouco complicado, na verdade, é bem fácil de ser assimilado.

A segunda mecânica importante envolve algo chamado momentum/doom (não sei como será traduzido, por isso não vou tentar presumir). O Momentum é obtido sempre que o personagem coleciona sucessos. Ele pode ser gasto imediatamente para tornar uma ação e seus efeitos mais impressionantes, ou guardados para serem usados num momento mais conveniente. O momentum pode ser empregado de várias maneiras, sendo que a mais tradicional envolve adquirir um dado extra para um determinado rolamento. Os efeitos benéficos do momentum podem ser ganhos também gerando doom, que é um recurso usado pelo Narrador para fortalecer os NPCs e inimigos quando julgar adequado.

Estabelecer um equilíbrio entre pontos de momentum e doom constitui um dos elementos mais interessantes do sistema. Abusar de momentum poderá ser trágico, mas da mesma forma, abrir mão totalmente deles pode ser uma política perigosa já que eles serão necessários para vencer alguns desafios. O sistema se vale ainda do dado de 6 lados, mas este é utilizado sobretudo em testes para determinar o dano das armas.   

Em um jogo com guerreiros e personagens portando espadas e machados, é de se esperar que o combate desempenhe um papel importante. E é claro, o combate é um dos elementos centrais. Há uma quantidade considerável de manobras, ações e movimentos que os personagens podem realizar durante um confronto. É interessante que os jogadores aprendam o que os seus personagens são capazes de fazer e quais os ataques que lhes favorecem mais em cada situação, dependendo das circunstâncias e inimigos encontrados. 


O dano sofrido por ataques pode ser tanto físico quanto mental e por sua vez estes podem ser de curta duração ou de longa duração. Enquanto é fácil compreender o Dano Físico (lembrem-se todos portam espadas e machados!), o Dano Mental merece uma explicação mais detalhada. Esse tipo de dano envolve stress, efeitos psicológicos e nocivos ao moral. Uma determinada atitude, como uma intimidação em feita, um ataque devastador ou uma ameaça podem fazer com que oponentes acabem se rendendo ou fugindo sem ter recebido um único dano físico. Da mesma maneira, é interessante que os personagens tenham uma resistência mental, caso contrário podem ficar suscetíveis a feitiços, maldições e efeitos mágicos. Há tabelas de localização de dano e crítico que sem dúvida serão a alegria dos jogadores que vibram com danos maciços e resultados que se traduzem em sanguinolência (estamos falando de um jogo de bárbaros, afinal de contas!).   

O sistema usado por Conan não é minimalista como está na moda nos últimos tempos. É preciso compreender as bases do sistema para extrair dele todas as possibilidades e tirar dos personagens todo seu potencial. Isso significa que um grupo que não trabalhe os conceitos mecânicos de seus personagens pode se ver rapidamente em maus lençóis diante de um Narrador que os domine e utilize. Contudo, isso não significa que o jogo seja excessivamente engessado pela parte mecânica, carecendo de jogadores experientes e analistas.

Um parênteses no que diz respeito a Feitiçaria. Jogadores podem desejar trilhar os caminhos tortuosos da magia e se tornarem adeptos das tradições místicas, contudo é preciso lembrar que essa é uma província geralmente explorada por inimigos e NPCs. Os protagonistas clássicos de Conan, são indivíduos que repudiam magia e raramente recorrem a ela, preferindo evitá-la sempre que possível. O jogo deixa claro que empregar magia é um risco e que pode atrair o desastre se feito repetidamente ou sem o devido cuidado. No entanto, quando eu levanto esse alerta, posso até imaginar muitos jogadores dizendo que "essa é justamente a graça", e esfregando as mãos ponderando sobre como usar essas habilidades. Fiquem à vontade!


O livro obviamente traz um bestiário com cerca de 50 páginas com inimigos para lançar contra seus jogadores. A lista inclui variações de humanos e animais selvagens que são os oponentes mais convencionais da ambientação, mas é claro, estão presentes um estoque de monstros, mortos-vivos e seres tentaculares saídos dos reinos de pesadelo. Inimigos possuem três graduações de poder e nível de ameaça: Serviçais, Embrutecidos e Nêmeses. As regras se diferem dentro de cada nível, sendo que os serviçais podem ser facilmente despachados em um combate, enquanto os Nêmeses envolvem o desenvolvimento de táticas, estratégia e de um pouco de sorte. Alguns inimigos são simplesmente poderosos demais para serem enfrentados sem um planejamento e creia-me em Conan, o combate pode ser especialmente brutal, com sangue, vísceras, membros e cabeças sendo decepadas à todo momento (UHUUUUU!!!!!!)

Com tudo isso, é preciso mencionar um último e crucial detalhe a respeito de Conan - Aventuras em uma Era Inimaginável. O livro de regras básico está entrando em Financiamento Coletivo para ser publicado no Brasil através da NEW ORDER. Inclusive a editora já tem pronto o Manual do Jogador que reúne vários detalhes e exemplos de como funciona o jogo e este está disponível para estudo.

O livro básico será idêntico a versão original, lançada dois anos atrás no exterior e que foi um sucesso de público e venda. Além disso, como todos já sabemos, Financiamento Coletivo é uma forma de garantir para os participantes uma série de títulos adicionais, material exclusivo promocional e outros benefícios atingidos quanto mais alto chegar a meta. 


Se você está indeciso a respeito desse jogo, eu tenho algumas ponderações a fazer.

Sim, existem vários sistemas e ambientações que se debruçam sobre o gênero Fantasia no mercado. De fato, não faltam jogos sobre personagens armados com espadas lutando enfrentando vilões e monstros. O mais conhecido dos RPG segue essa premissa à risca (vocês sabem de quem estou falando!). Então, alguns podem levantar a questão pertinente de que esse jogo pode ser apenas "mais do mesmo".

Bem, para responder isso, eu digo o seguinte: Conan envolve uma ambientação e uma proposta bem mais suja, violenta e sangrenta. Os personagens aqui se diferem em gênero, número e grau dos heróis de fantasia com o qual estamos habituados (vocês novamente sabem de quem estou falando). O combate é bem mais cruento e nas mãos de um bom mestre as aventuras serão óperas sanguinárias de harmonia inigualável. Conan é a respeito de matar inimigos da forma mais sinistra possível e as regras privilegiam tal coisa.

Outro ponto: as aventuras envolvem saquear tesouros, pilhar riquezas, conquistar terras e submeter inimigos ao beijo de sua lâmina. Não há espaço para amenidades, já que a Era Hiboriana não é lugar para tais coisas. A ordem natural é que o mais forte prevalece e em geral o mais fraco vira comida de abutre. Simples assim! Esqueça também a noção de bem e mal, aqui as cores cinzentas predominam e um personagem pode fazer o que bem entender já que moral é um conceito relativamente supervalorizado. Não há itens mágicos para serem acumulados, apenas o ouro a ser gasto em tavernas, acompanhantes e bebida. Essa é a vida de um Bárbaro!

Se você é adepto ou pode compreender esses conceitos, "Conan - Aventuras em uma Era Inimaginável" será seu jogo por muitas e muitas aventuras que estão por vir.

Então, não perca tempo, o link para o Financiamento está abaixo. Corre lá e dá uma olhada, vale a pena! 



sábado, 24 de outubro de 2020

Mistério Diabólico - Violência, feitiçaria e um crime macabro sem solução


A história está repleta de crimes sem solução que estão destinados a continuar assim para sempre. 

Por várias razões algumas pobres almas parecem fadadas a jamais descansar, seja pelas misteriosas, por vezes absurdas, circunstâncias que envolvem suas mortes ou pelo fato da identidade de seus assassinos jamais serem descobertas. Contudo, poucos casos são tão bizarros ou sinistros, quanto um incidente ocorrido há mais de 40 anos e que ainda desperta interesse por envolver elementos aterrorizantes de feitiçaria, satanismo, rituais sinistros e segredos inomináveis.

A história tem início com um cão. Em 19 de setembro de 1972, em Springfield, Nova Jersey, um cão retornou ao seu dono trazendo na boca algo inesperado e macabro. Para horror de seu dono, ele estava carregando os restos decompostos de uma mão humana. As autoridades foram contatadas imediatamente e começaram a empreender buscas na floresta onde o animal havia estado recentemente. Trouxeram cães farejadores que sem dúvida os levariam até o restante do cadáver, seja lá de quem fosse ele. Não demorou muito para que fosse encontrado nos arredores da Pedreira de Houdaille, um lugar afastado e isolado, desativado fazia alguns anos.

O corpo estava largado em uma área arborizada da pedreira que tinha o agourento nome de "Dente do Diabo" uma vez que as pedras espalhadas pelo terreno lembravam dentes afiados pendendo numa enorme mandíbula. O cadáver pertencia a uma jovem mulher caída de bruços no solo lamacento, a face voltada para o chão. Ela estava totalmente vestida, mas dias de exposição ao sol e chuvas haviam causado uma rápida degradação que dificultava determinar a causa da morte. Seria preciso fazer uma análise dentária para garantir a identificação, o que revelou se tratar do corpo da adolescente Jeanette DePalma de 16 anos. Ela vivia no local e seu desaparecimento havia sido registrado em 7 de agosto do mesmo ano. Na época da comunicação, a polícia conduziu extensas buscas pela garota que não resultaram em nenhuma pista de seu paradeiro. Para todos os efeitos, as autoridades imaginaram que ela havia fugido de casa, algo comum entre jovens.

A análise forense dos dentes demonstrou que ela estava morta fazia 6 semanas, o mesmo período de tempo pelo qual ela estava sumida. Contudo, ainda que o mistério do que havia acontecido com DePalma estivesse solucionado, o verdadeiro mistério estava apenas começando. Afinal, era preciso descobrir como ela havia morrido e em que circunstâncias. A partir desse ponto, a história se torna extremamente estranha.  


A análise da cena do crime onde o corpo foi achado rendeu algumas curiosas descobertas. Próximos do cadáver havia uma coleção de tocos de madeira e galhos que à primeira vista não pareciam ter nenhum significado, contudo, uma segunda análise demonstrou que eles haviam sido posicionados de modo intencional. Mais sinistro ainda, o padrão formava uma imagem ligada ao ocultismo. Uma testemunha que esteve presente na cena do crime afirmava que os galhos e tocos estavam posicionados formando um perímetro ao redor do corpo. Quase como se estivesse delimitando uma área trapezoide de onde ele não deveria ser removido. Exatamente ao lado da cabeça, algumas pedras foram posicionadas para apoiar uma cruz improvisada feita de galhos atados com um pano rasgado. A "cruz" havia caído, mas era óbvio que alguma pessoa a havia colocado de pé. A poucos metros de distância encontraram os restos de uma fogueira e o que parecia ser uma curiosa mesa de pedra e madeira que lembrava uma espécie de altar. Uma análise do tampo dessa mesa confirmou que as manchas escuras que a salpicavam eram realmente sangue. E uma análise mais criteriosa provou que era o sangue da jovem.

A essa altura a polícia começou a suspeitar que tinha em suas mãos algo muito mais sinistro do que um simples crime praticado por um matador de ocasião. A cena inteira indicava que elementos ritualísticos estavam presentes e que talvez, o responsável ou responsáveis por aquela morte, estariam envolvidos com feitiçaria, adoração satânica e sacrifício humano.

Os policiais providenciaram para que um antropólogo especializado em ocultismo fosse chamado e examinasse o local. Na época, havia muitos rumores a respeito de seitas satânicas e cultos, e o medo dessas coisas era palpável na sociedade norte-americana. De fato, alguns jornais sensacionalistas afirmavam categoricamente que cultos satânicos agiam livremente nas cidades e realizavam horríveis rituais de sangue e sacrifício. As autoridades não queriam aumentar ainda mais esse temor, portanto, decidiram manter a investigação em sigilo.

O estudioso pediu que os policiais fizessem uma busca pelos arredores e que escavassem ao redor do altar improvisado. Enquanto isso, ele se dedicou a verificar estranhos entalhes feitos nas árvores que compunham a clareira. Nos troncos haviam vários símbolos arranhados, a maioria destes semelhantes a flechas ou setas apontando para a direção da clareira em que o corpo havia sido achado. A escavação dos policiais revelou ossadas de animais enterrados perto do altar e na base de várias árvores. Encontraram ossos de gatos e pássaros, alguns deles com sinais de terem sido mutilados. A descoberta aumentou ainda mais a suspeita de que um cabal de feiticeiros havia capturado a garota e a assassinado em um ritual sangrento.               


Apesar do caráter sigiloso da investigação, não demorou muito até que a imprensa tomasse conhecimento das circunstâncias aviltantes do crime e fizessem a inevitável conexão do caso com elementos clássicos de bruxaria. Equipes de jornalistas seguiram para o local e a imprensa deu enorme destaque para o caso, rapidamente catapultado os acontecimentos para os principais programas de televisão do país. Na cidade não se falava de outra coisa e vizinhos se entreolhavam com uma expressão de suspeita, imaginando quem poderia estar envolvido com seitas diabólicas.

Feitiçaria não era exatamente algo estranho na área de Springfield, que possuía uma longa e fartamente documentada história de incidentes estranhos, muitos dos quais remontando ao período colonial. Entrevistas conduzidas com moradores revelaram que era fato conhecido que algumas pessoas na cidade tinham ligação com ocultismo, adoração ao diabo e que praticavam diferentes modalidades de feitiçaria. Uma cabala de bruxas teria se instalado lá e era sabido que seus membros se encontravam na Reserva Florestal de Watchung onde dançavam nuas ao redor de fogueiras e homenageavam entidades da natureza. Algumas pessoas comentaram que meses antes do assassinato de DePalma ter ocorrido, vários animais mortos foram achados na reserva.

As lendas locais da região incluem várias fábulas sobre bruxas e magia negra. Sendo uma área antiga remontando aos tempos da colônia, Springfield possuía sua parcela de histórias estranhas nascidas num período de enorme superstição. Ainda que as infames caças às bruxas tenham se concentrado na região da Nova Inglaterra, rumores a respeito de congregações de feiticeiras sempre estiveram presentes na história local. Considerada mais tolerante que as colônias de seus vizinhos puritanos, Nova Jersey teria atraído bruxas verdadeiras para seus limites.

Há inclusive uma antiga lenda local que menciona um incidente no qual 13 bruxas teriam sido mortas e enterradas após uma histeria motivada pelo desaparecimento de crianças no final século XVI. O local escolhido para o sepultamento das acusadas teria sido Johnston Drive, uma isolada trilha que antigamente ligava os povoados de Watchung e Scotch Plains. Não há elementos históricos comprovando esse acontecimento, que sem dúvida, dada a sua natureza, deveria ter sido documentado. Muitos historiadores consideram o incidente um boato que ao longo dos séculos se tornou real aos olhos de muitas pessoas.


Ainda assim, rumores como esse ajudaram a sedimentar a crença de que essa região de Nova Jersey, seria o berço de várias tradições de feitiçaria que remontam ao período colonial e que estas teriam ligação com as conhecidas cabalas da Nova Inglaterra que ensejaram a caça às bruxas. 

De fato, feitiçaria sempre esteve intimamente ligada ao povo dessa região em particular. Algumas testemunhas alegavam que rituais de magia negra eram conduzidos nas florestas há séculos e tinham entre seus praticantes pessoas importantes na sociedade local. Por essa razão, as autoridades faziam vista grossa para o que acontecia. Curiosamente, alguns meses antes do crime, um estranho acontecimento teria ocorrido em Springfield, quando vários roubos de livros pertencentes ao acervo da Biblioteca Municipal foram notificados. Dentre as obras que desapareceram das prateleiras estavam vários títulos ligados ao ocultismo, inclusive um raro volume da Enciclopédia do Ocultismo editada no século XVIII.

Uma vez que as investigações avançavam sob segredo de justiça, o público criava suas próprias teorias sobre o que teria acontecido com a garota. Uma das teorias mais populares é que Jeanette DePalma teria se metido com um dos grupos de feiticeiras ativo na região, mas que se arrependeu desse envolvimento e que cogitou abandonar a sociedade após sua iniciação, algo que teria sido visto como um tipo de traição. Desse modo, ela teria sido morta como punição e para prevenir que revelasse segredos ou a identidade dos demais membros da cabala. Para apoiar essa tese, alguns afirmavam que a garota teria manifestado interesse em assuntos relacionados a bruxaria, o que era confirmado por alguns de seus amigos de colégio. 

Outros, no entanto, defendiam que Jeanette simplesmente estava no momento errado no local errado, ou que teria atraído a atenção da cabala que a usou como sacrifício em um dos seus rituais. Embora a garota fosse descrita pelos pais e pelos amigos como dona de um gênio difícil, as pessoas mais próximas afirmavam que ela nunca iria se envolver com o estudo do sobrenatural. Por muitos anos a garota foi uma cristã evangélica devota, presente nos cultos e participativa em várias ações de apoio a drogados e alcóolatras. Os pais diziam que a própria Jeanette havia superado um problema com drogas e que sua recuperação se devia a sua crença no poder divino. Não faria portanto sentido que ela estivesse andando na companhia de bruxos ou satanistas, o que levou outras pessoas a ponderar se ela não estaria tentando regenerar essas pessoas e que elas teriam se voltado contra ela.


Infelizmente, uma série de contratempos, pistas falsas e até mesmo estranhos incidentes se mostraram um forte obstáculo para a descoberta da verdade. Havia muito poucos indícios para a polícia se concentrar e para piorar várias pessoas na cidade pareciam dispostas a dar sua opinião e oferecer sugestões sobre o que poderia ter acontecido. Após algumas semanas a investigação não havia avançado nenhum centímetro na direção da solução. As melhores pistas envolviam informações anônimas obtidas através de telefonemas ou cartas, mas mesmo estas não pareciam ceder informações sólidas para elucidar o caso. 

O único indivíduo a ser conduzido para interrogatório e que por algum tempo foi considerado suspeito foi um vagabundo local chamado Red Kierra. Algumas pessoas já haviam apontado o sujeito como alguém suspeito visto vagando sem destino pela pedreira e que não parecia mentalmente estável. Mas no fim, Kierra tinha um álibi para a época em que o crime havia ocorrido: ele estava preso em outra cidade por vadiagem. Estranhamente, mesmo inocentado da acusação, o vagabundo sumiu sem deixar vestígio. Alguns acreditam que ele possa ter sido vítima de algum grupo de justiceiros.

Sem nenhuma pista na qual pudessem se concentrar ou suspeitos, o caso inevitavelmente começou a esfriar. Quando o assassinato completou 30 anos, a revista Weird NJ lançou uma ampla investigação sobre o caso, tendo contratado detetives e investigadores particulares para avaliar o crime. Mas mesmo esta tentativa esbarrou em obstáculos de todo tipo. Por exemplo, descobriram que em 1990 todos os documentos oficiais e registros sobre o caso se perderam em uma inundação causada pelo Furacão Floyd. Antes porém, documentos importantes, inclusive o laudo da autópsia da vítima havia desaparecido de sua pasta. Na época, algumas pessoas levantaram suspeitas sobre o ocorrido, uma vez que vários arquivos do mesmo período e que eram mantidos no local, sobreviveram sem qualquer dano. Outro rumor bastante bizarro veio à luz quando se soube que os peritos da polícia não haviam feito nenhuma fotografia da cena do crime, um procedimento básico em qualquer investigação de homicídio. Esse rumor não foi confirmado, contudo, nenhuma foto da cena do crime jamais foi divulgada para o público.

Tentativas de entrevistar testemunhas e pessoas consultadas na época da investigação encontraram problemas similares. Décadas antes as pessoas pareciam interessadas em falar, de fato, era difícil controlar o fluxo de informações contraditórias dispensadas. Agora, as mesmas pessoas se negavam a comentar e preferiam se omitir sobre o caso, diziam não lembrar ou afirmavam ter mentido na época. O jornalista responsável pela matéria chegou a cogitar que algumas pessoas estavam temerosas de tocar no assunto, como se nesse período algo tivesse se sobressaído, criando uma sensação perceptível de temor à respeito do caso.  Praticamente todos procurados para falar a respeito demonstraram aquele mesmo desinteresse em cooperar. Aqueles que aceitaram falar a respeito do crime, se limitaram a repetir os mesmos detalhes encontrados nos jornais e pediram para que seus nomes fossem omitidos. O Departamento de Polícia de Springfield por sua vez, foi extremamente frio quanto a fornecer qualquer ajuda para os investigadores que afirmaram ter estranhado a pouca disposição dos policiais em auxiliá-los nos pedidos mais básicos.

A maior parte das novas informações coletadas veio de fontes anônimas enviadas por pessoas que supostamente viviam em Nova Jersey na época dos fatos, mas que haviam se mudado. A maior parte destas informações, no entanto, eram dúbias, vagas e absurdas servindo apenas para expandir ainda mais a aura de estranheza e mistério cercando o crime. Uma das coisas que ficaram claras é que a  maioria das pessoas ainda acreditava que a morte havia sido causada por um culto e que a polícia havia realizado uma investigação desleixada com o intuito de encobrir o nome dos envolvidos. Por isso a quantidade de pistas era tão pequena e por isso evidências haviam sido deliberadamente destruídas. Além disso, o caso parecia ter se tornado um tabu na cidade e na região como um todo.  


O que teria acontecido? Por que toda uma cidade parecia aterrorizada a respeito de falar sobre um crime com mais de 30 anos? Quem poderia ter interesse em ocultar a verdade? E mais importante de tudo, quem teria matado Jeanette DePalma? 

Os fatos bizarros a respeito do crime foram a fonte para incontáveis especulações. A maioria das pessoas acredita que há elementos claros de ocultismo permeando todo o incidente e que o responsável direto pela morte deve ter algum envolvimento com o paranormal. Não faltam teorias, algumas estapafúrdias sobre o culpado: cogita-se que pessoas importantes teriam se envolvido na morte, incuindo figuras nas finanças e na política da cidade. O acobertamento teria sido realizado para preservar o "bom nome" dessas pessoas e livrá-las da punição que deveriam receber. 

Nas últimas décadas, pessoas ligadas a Wicca e outras crenças neo-pagãs vieram à público para negar qualquer envolvimento com aspectos destrutivos ou criminosos, deixando claro que não apenas condenam qualquer tipo de violência como jamais realizariam algo semelhante a rituais de sacrifício humano.

A grande maioria das pessoas ainda acredita que adoradores do demônio podem ter sido os causadores da tragédia e que essa antiga cabala continua agindo nas sombras. Para reforçar ainda mais esse temor, muito se fala a respeito do alto índice de adolescentes e crianças desaparecidas no estado de Nova Jersey, um dos mais altos dos Estados Unidos. Os mais crentes acreditam que uma vasta conspiração de acobertamento se encarrega em desaparecer com pistas e manter as autoridades afastadas. Apenas o acaso revelou a morte de Jeanette DePalma, algo que não aconteceu em dezenas, talvez centenas de outros casos.

Seja qual for a explicação, o assassinato de Jeanette DePalma continua sem solução e tudo indica continuará dessa forma. Não existem documentos, perícias e arquivos e as informações sobre o caso se resumem a material da imprensa e os resultados obtidos pela revista Weird NJ. Os detalhes ao longo dos anos se distorceram de tal maneira que não é mais possível distinguir fatos de rumores, lenda urbana de sensacionalismo. Não há novos indícios que possam ser seguidos, nenhuma evidência, suspeitos, nada... 

Esse bizarro crime com o possível envolvimento de satanismo, feitiçaria e rituais bizarros, permanece tão difícil de ser solucionado quanto no momento em que ele veio à tona mais de 40 anos atrás. Aos poucos parece que a própria lembrança da vítima vai se apagando e se dissipando como se jamais tivesse existido. Se a verdade existe preservada em algum lugar, o tempo para ela aparecer parece estar chegando ao fim.