domingo, 29 de junho de 2025

Guerra Medieval - Como era uma Batalha Medieval real (parte 2)

Dando continuidade ao artigo sobre as Guerras Medievais.

FERIMENTOS HORRÍVEIS E SANGRENTOS

Com tudo que já se falou a respeito de armas e suas limitações, chega a hora de falar sobre os ferimentos que essas armas produziam e do efeito duradouro que elas deixavam nas pessoas.

As armas conforme dito, não eram feitas para parecerem bonitas, elas eram produzidas com o intuito único de cortar através do corpo. Armaduras ajudavam, mas bem menos do que se pensa. Uma cota de malha poderia desviar a lâmina de uma espada ou adaga, mas era pouco útil contra um machado. Mesmo as armaduras mais notáveis, forjadas com inegável genialidade para maximizar a proteção, não eram à prova de danos. Um ataque devastador de maça ou martelo poderia amassar uma armadura de placas como uma lata.

Registros feitos por cirurgiões de campo de batalha medievais sinalizam que mais de 40% dos danos sofridos por soldados vestindo armaduras incluíam ossos fraturados, à despeito da couraça de metal que os envolviam. Uma armadura também podia se despedaçar mediante um duro castigo, deixando passar e produzindo feridas na carne de quem as vestia. 

Armas medievais não produziam cortes limpos, elas muita vezes laceravam, despedaçavam e rasgavam ao invés de simplesmente cortar. Os ferimentos eram particularmente difíceis de serem costurados e tratados, tanto mais com a pouca habilidade dos médicos de campo. 

Muitas mortes eram resultantes da perda de sangue e do choque decorrente dela. Diferente do que vemos em filmes, o corpo humano perde uma quantidade absurda de sangue de maneira rápida se a ferida não for estancada. Um homem adulto possui algo entre 4,5 e 5,5 litros de sangue no corpo, mas perder cerca de 1 litro já pode levar ao choque e inconsciência. Um ferimento maior, digamos causado pela perfuração de uma lança ou a lâmina de um machado, pode fazer o sangue se esvair rapidamente levando à morte. O maior agravante é que muitos homens tomados por um surto de adrenalina podiam sequer sentir um golpe severo, até que a visão escurecesse e eles percebessem que estavam cobertos de sangue. Durante toda confusão e agitação de uma batalha, o coração bate mais rápido fazendo com que o sangue termine escoando mais rápido pela ferida aberta.

Mas o sangue não era a única preocupação de um combatente ferido. Os danos internos podiam ser ainda mais dramáticos do que os cortes visíveis. Um golpe de maça que nem rompia a pele podia causar hemorragia interna, partir costelas ou ferir algum órgão. Não havia nada a fazer, nada a costurar ou limpar, apenas uma dor lancinante e invisível irradiando de dentro para fora. 

Durante as batalhas, soldados aprendiam onde golpear para produzir o maior dano possível, e eles não perdiam uma oportunidade de desferir tais golpes. A cabeça, o pescoço e a nuca eram áreas muito visadas e se você se pergunta se decepamento era algo possível, saiba que era mais frequente do que se imagina. Dado o grande número de ataques voltados para essas áreas sensíveis, não era incomum que cabeças rolassem dos ombros. Um golpe na cabeça também podia atordoar e confundir a vítima, deixando-a incapaz de reagir e propensa a sofrer outros ataques. Danos de concussão eram bem mais frequentes do que se pensa.

Contudo, os danos massivos não eram os únicos a ocorrer numa batalha - uma miríade de outros ferimentos podiam ocorrer (e de fato, ocorriam). Dentes frequentemente eram quebrados e voavam da boca dos soldados quando seus elmos eram golpeados. Perder dentes dessa forma era tão comum que no final da batalha, alguns soldados buscavam por dentes que pudessem substituir os que eles próprios haviam perdido. Olhos também eram muito visados em ataques e homens com globos oculares perfurados não eram uma rara ocorrência. Ademais, havia o risco de fragmentos de armas se partirem e farpas se alojarem fundo na carne dos combatentes.

Pequenos ferimentos, que hoje em dia são tratados com iodo e pontos, muitas vezes eram fechados com agulhas, grampos ou suturados com linha grosseira. Pior ainda, os ferimentos raramente eram limpos e acabavam abrindo a porta para os mais temidos dos inimigos invisíveis: as infecções.

Não é preciso dizer como o mundo medieval era pouco afeito à limpeza. De fato, a importância de limpar ferimentos só foi compreendida muitos séculos mais tarde. Arquivos de monastérios atestam que a cada soldado morto no campo de batalha, outros três morriam de infecções posteriores ao ferimento sofrido. Mesmo homens que pareciam bem, acabavam ficando doentes e morrendo dias ou semanas depois. Isso nos leva a falar de...

TRATAMENTO E SOCORRO

No Mundo Medieval, o mais próximo de um hospital de campanha eram as tendas de atendimento aos feridos. Essas tendas eram distribuídas a alguns quilômetros do campo de batalha, de modo que os feridos precisavam ser carregados até elas ou então se arrastar para ter alguma chance de socorro.

Não é exagero dizer que atender um companheiro ferido em meio a batalha era tarefa praticamente impossível. Quando inimigos estavam à vista e armas eram brandidas ao redor, ninguém, absolutamente NINGUÉM, se descuidava de sua própria proteção para cuidar de alguém que tivesse sido atingido e que poderia já estar morto. A maioria dos feridos precisava se afastar da batalha e se afastar da linha de frente para ter a chance de receber a atenção de um companheiro.

A medida mais comum dos soldados para socorrer um colega ferido era amarrar cintos, tiras de couro ou panos sobre os ferimentos aparentes. Isso visava estancar o sangramento e conceder uma chance para chegar até alguém que pudesse fazer o atendimento. Note que não estamos nos referindo especificamente a médicos. No Mundo Medieval, médicos eram raros e se dedicavam a tratar dos ferimentos de nobres que pagavam por suas habilidades. Um soldado ferido que não tivesse título ou prestígio, ou pelo menos amigos, dependia da boa vontade de algum estranho que se importasse minimamente com ele. E isso, na maioria das vezes, era algo raro. 

Ainda assim, soldados veteranos aprendiam o básico sobre anatomia e podiam desempenhar algo semelhante a primeiros socorros para auxiliar um ferido. Alguns, em especial aqueles que haviam sobrevivido, eles próprios, a ferimentos tinham uma vaga ideia do que fazer, mas raramente tinham o necessário para atuar como um enfermeiro, quem dirá um médico e menos ainda um cirurgião. Flechas eram arrancadas inteiras sem muito cuidado, pontas de lança podiam ser extraídas de feridas sangrentas com os dedos e ossos podiam ser colocados no lugar sem grandes cuidados. Uma medida muito popular era cauterizar feridas com a ponta da adaga aquecida no fogo, algo doloroso e nem sempre efetivo. É preciso mencionar que a boa vontade de um samaritano podia piorar a situação do ferido, isso quando não acelerava a morte.

A situação nas tendas de feridos não era muito melhor. Os feridos eram colocados nessas tendas para que, com sorte, recebessem ajuda de algum monge que entendesse minimamente o que estava fazendo. Nem todos tinham esse conhecimento, mas alguns faziam o possível para aliviar as aflições dos feridos. Instrumentos médicos medievais eram rudimentares (para dizer o mínimo) e não passavam por qualquer procedimento de limpeza ou esterilização. Sangue e sujeira eram limpas no avental ou raspadas com pedaços de pano, se você tivesse sorte.

A taxa de sucesso em tratamento médico nessa época era de cerca de 30%. com os procedimentos mais comuns sendo uma combinação de cauterização, costura e amputação. Esta última era realizada muitas vezes preventivamente uma vez que a infecção mortal era quase uma certeza na maioria dos casos. Dessa forma, quando um ferido chegava a uma tenda médica com o braço ou perna feridos, o tratamento podia ser arrancar o membro o mais rápido possível, para assim evitar a temida gangrena.

Tendas Médicas eram ambientes insalubres onde homens sem treinamento formal ou com pouco conhecimento da anatomia, tentavam remendar ferimentos devastadores que mesmo a medicina atual teria dificuldade em sanar. Imagine o desespero de homens com membros sendo serrados, o terror de soldados se afogando no próprio sangue e homens sendo preparados para cirurgias rudimentares. A carne lacerada era remendada de maneira desesperada. Uma ferida podia ser coberta com emplastos de barro, argila ou fezes de pombo, as feridas eram costuradas com linha de crina de cavalo ou lancetadas com agulhas em brasas. Nem é preciso dizer que não existiam anestésicos eficientes e que a dor era quase palpável nesse ambiente caótico. Com sorte um ferido desmaiava e não testemunhava o horror do tratamento a que era submetido.  

NEM TODO DANO É FÍSICO

Após sobreviver ao horror e violência de um combate medieval, os combatentes podiam descobrir que nem todos os danos eram físicos. Muitos deles até podiam sair da experiência relativamente incólumes, mas com a mente fraturada para sempre.

Mesmo durante o calor da batalha, um soldado podia ter um episódio traumático. Muitos podiam ficar catatônicos, entorpecidos ou tomados de um terror tão grande que os impedia de agir. Nesse contexto, muitos apenas tentavam fugir, largando armas e escudos. Aqueles que ficavam descreviam incidentes perturbadores: como se as suas mentes começassem a pregar peças. 

O Campo de Batalha Medieval não testava apenas a força e resiliência física, ele era uma prova para a resistência emocional e mental dos envolvidos. Coisas estranhas podiam acontecer durante uma batalha, coisas para as quais nenhum treinamento podia prepará-los. Não era covardia ou uma falha em sua bravura, estava mais para uma confusão profunda que nublava a mente do combatente. A psicologia atual entende esse fator e tenta lidar com ele para diminuir os terrores do campo de batalha, mas se hoje não é algo fácil, imagine na época medieval.

"Onde estou"?, " O que está acontecendo"? e "Quem são essas pessoas"? eram perguntas que dominavam a mente dos soldados sofrendo de trauma emocional severo. Nessas condições eles não eram capazes sequer de se mover, de se defender ou responder a ordens. O senso de direção também era afetado e eles não conseguiam entender para onde deveriam ir. Isso fazia com que homens se perdessem e chegassem ao ponto de atacar as próprias posições. A perda do senso de direção era um efeito tão comum nas batalhas medievais que unidades inteiras podiam acabar lutando entre si. Isso explica porque muitas batalhas terminavam com os envolvidos batendo em retirada antes mesmo de se encontrarem. 

Muitos soldados afetados pelo trauma não conseguiam diferenciam aliados e inimigos, todos eram como vultos se movendo ameaçadoramente. Embora os exércitos se identificassem através de cores ou símbolos, as condições dos campos de batalha logo os cobriam de poeira, lama e sangue dificultando o reconhecimento. Em meio ao pânico golpes erráticos eram desferidos contra amigos e companheiros. Na célebre Batalha de Towtown na Inglaterra, algo em torno de 10% das vítimas foram mortas pelos próprios aliados.

Um dos traumas mais frequentes registrados em batalhas é causado pela visão de sangue. Um soldado podia se ver coberto de sangue da cabeça aos pés instantes depois de começar uma batalha (seu próprio sangue, o de aliados, de amigos ou de inimigos). A mente por vezes não consegue suportar esse tipo de incidente e se fecha para não registrar tal coisa. Em outros casos o indivíduo precisa descobrir se o sangue é seu e se está ferido, o que o expõe a ataques. Muitos combatentes descrevem a sensação surreal de estar coberto de sangue e não sentir qualquer ferimento. 

Nem todo soldado é talhado para o combate. A mente por vezes não é capaz de registrar todas as variáveis presentes em uma luta dessa magnitude e acaba recorrendo a memória muscular e instinto. O soldado recorre ao treinamento e rotina de luta para sobreviver - seus corpos lutam, enquanto suas mentes se desligam.  A visão se estreita para um túnel, os sons se tornam abafados, os sentidos embotados por percepções confusas. A forma dos inimigos se torna indistinta e difícil de reconhecer, eles são apenas sombras ou obstáculos. A "mente de batalha" é uma condição descrita pelos combatentes que envolve o distanciamento do que está acontecendo - eles sentem como se vissem tudo de fora, como se fossem outras pessoas lutando e não eles. 

Os soldados que sobrevivem à uma batalha muitas vezes não conseguem lembrar exatamente o que aconteceu. Há lapsos em sua memória e eles não sabem dizer quantos foram mortos ou quantos morreram por sua ação direta ou indireta. O tempo se alonga ou se comprime, eles não são capazes de dizer a quanto tempo estão lutando. Estudos atuais indicam que o cérebro humano não é capaz de suportar o stress contínuo de um combate face a face por muito tempo. Os estímulos visuais e a carga emocional contida nessas lutas é grande demais e acaba sobrecarregando o combatente. Medo, raiva e confusão são as emoções primais que sobrevivem em meio a carnificina e elas se sobrepõem a estratégia e tática. 

Diante de tudo que eles testemunham, a reação natural para muitos é fugir. Estudos afirmam que muitos soldados medievais simplesmente desistiam do combate depois de alguns minutos e tentavam escapar. Por mais que a história glorifique os combatentes audazes e os heróis que lutam até o fim, tal coisa era extremamente rara no mundo real. Ao atingir seu limite, muitos simplesmente tentavam correr, sobretudo os soldados rasos, camponeses e indivíduos alistados para combater em guerras que não eram suas. Em batalhas em larga escala, cerca de 40% dos envolvidos fugiam depois de alguns minutos de enfrentamento. 

O FIM DA BATALHA

Pode parecer surpreendente, mas muitas batalhas terminavam antes do esperado porque os soldados abandonavam o campo às pressas. Muitas retiradas eram motivadas pela ação de um ou mais grupos que fugiam em meio ao caos, fazendo com que outros tantos se juntassem a essa corrida desabalada.

A história registra até mesmo casos em que uma batalha que estava controlada e parecia vencida por um lado, acaba virando para o outro após uma retirada inesperada. Isso acontecia por conta de um comportamento de grupo no qual os indivíduos tendem a imitar o que a maioria ao seu redor estão fazendo. O efeito era tão danoso que estrategistas medievais mantinham homens na retaguarda incumbidos de eliminar desertores e fugitivos. Qualquer um que começasse a fugir podia ser derrubado por esses homens cuja função era evitar a reação em cadeia.

Outro fato curioso é que batalhas medievais começavam e terminavam de forma extremamente rápida. Os soldados, após o primeiro contato e a escaramuça resultante se mantinham em uma espécie de dança de contato por alguns minutos e então se separavam naturalmente deixando mortos e feridos no lugar que antes ocupavam. Batalhas longas e desgastantes eram a exceção na maioria dos casos.

Ao avistar o resultado de um avanço era comum aos atacantes enviar uma segunda vanguarda para sustentar a investida. Outra possibilidade é que os defensores perseguissem quem tivesse feito a ataque, eles próprios se convertendo nos atacantes. A batalha seguia dessa maneira em ondas indo e vindo pelo campo fustigado, coberto de corpos - mortos e feridos - sangue, destroços e lama. Soldados descreviam a experiência do combate como nadar num mar revolto no qual eram atirados de um lado para o outro, com o risco frequente de afogamento.

Quando uma batalha se encerrava, o som aos poucos ia diminuindo, sendo substituído pelo gemido dos feridos e gritos de dor lancinante. Os sobreviventes retornavam para suas posições ou debandavam após o resultado do confronto encerrando os enfrentamentos. Acordos diplomáticos assinados ainda na era medieval permitiam que monges e membros de ordens religiosas fossem os primeiros a entrar no campo de batalha afim de socorrer os feridos e verificar quem ainda poderia ser ajudado. 

Em seguida, o lado vencedor tinha o direito de revistar o lugar, enviando alguns voluntários para buscar por sobreviventes e espólios. Os companheiros feridos podiam ser recolhidos, mas os inimigos encontrados eram submetidos a Misericórdia, que provavelmente não é o que você está pensando. Em uma época em que não haviam leis e regras sobre o que fazer com prisioneiros de guerra, o tratamento dado aos inimigos feridos podia variar enormemente. A Misericórdia era um método aperfeiçoado pelos exércitos medievais de eliminar os inimigos feridos de maneira rápida e aparentemente indolor. Para isso, uma lâmina semelhante a um espeto era enfiada sob a axila esquerda até perfurar o coração do ferido, matando-o imediatamente. No que tange à Idade Média, esse tratamento era considerado humano já que abreviava o sofrimento de feridos que dificilmente receberiam auxílio. 

Mas nem todos os exércitos adotavam a "misericórdia" e muitas vezes os prisioneiros estavam fadados a sofrer todo tipo de indignidade nas mãos de seus vingativos feitores. Há relatos de enforcamentos em massa, decapitação e até crucificação. Por vezes os prisioneiros podiam ser libertados, mas não antes de sofrer com alguma vingança. As tropas francesas costumavam arrancar os dedos dos arqueiros ingleses capturados usando para tanto alicates em brasa, enquanto os Venezianos se notabilizaram por vazar os olhos de seus prisioneiros para que eles jamais pudessem lutar novamente. Por essa razão, os feridos que ainda conseguiam se mover tentavam à todo custo se esconder ou pelo menos parecer mortos. Há relatos de um soldado do século XIII que se escondeu no estômago de um cavalo morto por três dias para escapar dos vencedores.

Uma notável exceção a essas regras quanto a prisioneiros dizia respeito a nobres. Poucas coisas podiam ser mais lucrativas a um exército do que capturar um nobre inimigo de alta estirpe. Isso acontecia porque na Era Medieval vigorava um sistema de resgate no qual o filho de um Barão, Conde ou mesmo um Herdeiro poderia ser devolvido mediante uma compensação. E estes resgates eram realmente vultuosos, tendo dado origem ao termo "Resgate Real". O resgate de um nobre podia gerar dinheiro o bastante para pagar os custos de uma campanha e reequipar uma tropa. Não por acaso, nobres que iam para a batalha carregavam cartas que os identificavam como indivíduos importantes que valiam mais vivos do que mortos.

Quando finalmente os campos silenciavam por completo, era a vez dos corvos e moscas dividirem os restos mortais com outro tipo de carniceiro: Saqueadores. Na Idade Média vasculhar campos de batalha era uma ocupação razoavelmente rentável que atraía homens, mulheres e crianças. Os saqueadores se concentravam em recolher armas, armaduras e qualquer pedaço de equipamento que ainda pudesse ser aproveitado. Além desses troféus óbvios, havia um mercado ávido por outras mercadorias que iam de botas, até uniformes, passando por dentes e até ossos. A economia medieval girava em torno da guerra e nenhum aspecto dela podia ser menosprezado. Verdadeiros bazares itinerantes surgiam no rescaldo de um combate com guerreiros e soldados comprando armas para se reequipar para os próximos embates. Barraquinhas de venda ou carrinhos de madeira expunham as peças que podiam ser adquiridas por algumas moedas.

Os cadáveres e restos dos combates em geral eram enterrados em valas comuns. As mesmas ordens monásticas que recuperavam feridos recebiam doações de ambos os lados para providenciar os ritos fúnebres e o sepultamento dos cadáveres. A preocupação com o destino dos cadáveres era pouco importante, de modo que covas comuns eram a escolha predileta para limpar os campos. Arqueólogos modernos encontram frequentemente valas comuns próximas de onde ocorreram batalhas importantes, estes comumente contém os restos mortais de homens que lutaram em lados opostos.

E PARA QUEM SAIU VIVO

O fim de uma Batalha Campal era um momento de retornar para os seus. Muitos soldados com pequenos ferimentos podiam se dar ao luxo de planejar seu futuro; contemplar a possibilidade de um próximo combate ou com sorte aposentadoria.

Nos filmes vemos celebração e camaradagem, gritos de vitória e hurras, mas raramente esse era o caso. 

Terminada a luta, muitos precisavam de horas ou mesmo dias para assimilar tudo pelo que passaram. Os homens geralmente necessitam de tempo para superar traumas e violência irracional e isso era verdade mesmo para os soldados medievais mais endurecidos. O esgotamento nervoso e físico era brutal. Era muito comum que os sobreviventes bebessem, e bebessem MUITO como uma forma de aplacar o horror ao qual foram expostos. A bebida forte nublava os sentidos e diminuía a sensação de alerta que tomava conta dos soldados no pós-guerra. Dormir não era algo fácil nos dias seguintes por isso o consumo de álcool ocorria até o estupor chegar. Um cronista medieval escreveu que após uma batalha os homens beberam por três dias seguidos, como se quisessem afogar em copos de cerveja o horror que testemunharam.

Não estar morto era motivo de felicidade. Eles haviam participado da mais letal Dança das Cadeiras e quando a música parou conseguiram um lugar entre os vivos. Alguns pensavam nos que não tiveram tanta sorte e era comum que se fizesse uma coleta para ajudar as famílias dos que haviam perecido. Também havia espaço para agradecer a Deus pela dádiva, a oportunidade de estar vivo. Após as batalhas missas eram oferecidas e mesmo soldados não muito afeitos a religião se viam na obrigação de agradecer a uma força superior que talvez os protegeu.

Nos campos agora desertos e quietos, capacetes e elmos eram colocados na ponta de lanças partidas marcando onde os mortos foram empilhados. Logo a natureza iria retomar para si o lugar, cobrir tudo com vegetação e o local onde tantos lutaram e morreram seria esquecido. 

E assim ocorriam guerras medievais e assim foi por muitos séculos nos atribulados séculos da Era das Trevas. A modernidade e progresso logo trariam outras formas de lutar, outras maneiras de matar e morrer. As lutas se tornariam menos face a face e a possibilidade de derrotar os inimigos de longe, dominariam a arte da guerra nos tempos vindouros.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Mão de Ferro - A vida do brutal comandante Gotz Von Berlichengen



Gotz Von Berlichengen, mais conhecido pelo apelido de "Gotz da Mão de Ferro", foi um Cavaleiro Teutônico cuja vida real soa como uma versão hiper violenta e bizarra do personagem Ash da franquia Evil Dead, mais especificamente Army of Darkness. Não apenas pela atitude, mas pelas palavras que marcaram época. Por exemplo, em 1520, Gotz e uma pequena guarnição estavam em uma cidadela sitiada por um exército inimigo muito superior. Quando o comandante inimigo ofereceu a ele rendição, Mão de Ferro teria se tornado a primeira pessoa na história a responder dizendo "eu me rendo quando você vier aqui e beijar meu traseiro". Até onde sei sabe, a historia registra que ele foi o primeiro a usar essa expressão popular até os dias atuais - "Kiss my Ass".

Na sua Alemanha natal, ele é tratado como um Robin Hood e considerado uma espécie de anti-herói até os dias atuais. Gotz teve uma carreira militar que durou 47 anos em uma época em que a maioria das pessoas raramente viviam até os 47 anos. Ele foi um Cavaleiro Germânico Teutônico no século XVI, travando batalhas e servindo em Guerras Civis em toda Europa Central. Inimigo ferrenho do Sacro Império Romano, participou de incontáveis lutas, escaramuças e confrontos. Fazendo juz ao seu apelido de "Mão de Ferro" ele esteve em várias batalhas usando uma prótese no lugar da mão esquerda arrancada numa batalha.

Seu nome, em alemão, aparentemente também era uma espécie de apelido, já que Gotz se assemelha muito a "Gutz" que significa "coragem". Verdade ou não, ele era um tipo de casca grossa que marcou época pela sua determinação, violência e habilidade marcial.



Nascido no ano de 1480 em Wurttemberg, Gotz se alistou no exercito aos quinze anos, embora ele parecesse mais velho e forte segundo todas as narrativas. Sendo de uma familia notável, Von Berlichengen fazia parte de uma longa linhagem de Cavaleiros Imperiais. Seu primeiro combate foi na Guerra dos Suevos na qual ele teve participacao notável. Aos quinze anos teria matado pelo menos oito homens em combate direto, usando machado e maça, suas armas favoritas que ele usava para esmagar o crânio dos inimigos.

Ele aprendeu com os demais guerreiros veteranos as práticas da epoca que envolviam cercar castelos, incendiar cidades e enforcar camponeses e soldados inimigos. Gotz aos 16 anos ja tinha seu próprio cavalo de guerra, um presente de um companheiro de armas que disse brincando: "se você conseguir montar essa besta, ela é sua, mas você pode muito bem morrer tentando". 

Gotz não apenas domou o enorme cavalo negro, como o tornou sua montaria favorita. Alguns diziam que tamanha era a fama dele ao cavalgar esse animal que a grama nao crescia por onde ele passava (algo que se falava também de Átila, o Huno).

Aos vinte anos, Gotz deuxou os Cavaleiros Imperiais e se tornou um comandante mercenário, um dos mais jovens de seu tempo. Seus homens o adoravam, mesmo os mais experientes, pois Gotz tinha fama de permitir saques quando suas tropas desempenhavam bem. Ele alugou sua espada para diferentes contratantes, oferecendo seus préstimos a quem pagasse mais. Ele imediatamente encontrou trabalho com o Duque da 
Bavaria, que enviou Gotz para a Batalha de Landshut em 1504. 

Em menor número, Gotz recorreu a uma estratégia que envolvia fazer ataques ousados usando sua cavalaria, contornando as linhas inimigas e pegando os oponentes de surpresa. Sua tática de guerrilha deu tão certo que ela se tornou famosa sendo estudada e imitada por generais na segunda guerra mundial usando tanques ao invés de cavalaria.



Foi nesse conflito que ele perdeu a sua mão, ferida por um estilhaço de bala de canhão. O ferimento infeccionou e ele acabou perdendo parte do braço que precisou ser amputado. 

Para muitos guerreiros, ter a mão explodida por uma bala de canhão seria o fim da carreira, mas Gotz Von Berlichen, nao era como os outros guerreiros. Fiel a sua casca grossa ele teria dito: "Eu tenho outra mão para empunhar uma espada".

O que poderia ser o fim da historia, se tornou apenas o início de sua lenda.



Em 1506, Von Berlichengen recebeu uma alta condecoração por sua brilhante resistência, na ocasião em que ele proferiu a famosa frase envolvendo "beijos e traseiros".

Como reconhecimento ele ganhou como presente uma mão prostética construida por mestres armeiros e engenheiros. A peça, verdadeira obra prima da metalurgia medieval, foi presa ao seu braço mutilado, por uma série de amarras, tornando-se um substituto perfeito. Usando um sistema de alavancas e molas, Gotz podia manipular os dedos de ferro individualmente, permitindo assim fazer quase tudo, de manipular uma espada a cavalgar, atividades essenciais a um guerreiro. A prótese era tão bem feita que ele era capaz de ações delicadas como segurar uma pena para escrever ou um garfos para comer. Melhor que isso, a mão era pesada o bastante para ser usada como arma, podendo golpear com toda força de um punho de ferro.

Com sua nova mão e coragem renovada, Gotz Von Berlichengen continuou a liderar sua tropa, expandindo sua Companhia de Mercenários em um verdadeiro exército com sete mil homens. Em 1512 ele se meteu em problemas por compartilhar com seus homens as riquezas pilhadas de um nobre alemão. A transgressão fez com que ele perdesse seu status como comandante por alguns anos. 

Não muito tempo depois ele acabou enfrentando novas acusações, dessa vez por raptar o Conde de Waldeck e cobrar resgate de sua influente família. A pratica de cobrar resgate era muito comum na época, mas Gotz havia feito prisioneiro um aliado e se recusava a libertá-lo. Irritado com o jogo da nobreza feudal, ele se envolveu numa Revolta de Camponeses ocorrida em 1525. Gotz esteve à frente da luta, enfrentando seus antigos contratantes. Ele se tornou uma espécie de herói para os plebeus, ja que era extremamente generoso com os espólios das batalhas, permitindo que até o mais humilde servo de gleba recebesse uma porcentagem dos ganhos nas pilhagem. 

Mas apesar de sua liderança, a Revolta camponesa acabou sendo esmagada, terminando em vários massacres nas mãos do Exército Imperial. Uma vez que o Imperador conhecia e respeitava Gotz, ele lhe deu chance de se explicar. De alguma forma ele conseguiu convencer o Imperador de que "os nobres e aristocratas o forçaram a pegar em armas" e ele se safou de uma execução quase certa.



Gotz Von Berlichengen, então um veterano com mais de 30 anos, voltou para suas terras disposto a desfrutar de sua riqueza. Ele se ocupou em ter vários filhos legítimos e ilegítimos que adorava instruir na arte de lutar e cavalgar. Também desfrutava dos passatempos de um típico senhor feudal. Há uma historia "divertida" dessa época que envolve uma caçada que terminou com o comandante aposentado matando um javali com um golpe de sua manopla de ferro. Mas apesar de toda diversão, a vida pacífica de fazer herdeiros e participar de caçadas não era tão excitante quando o perigo de uma campanha militar.

Dessa forma, em 1542 aos 62 anos, o guerreiro decidiu sair da aposentadoria e viajar até a Hungria para auxiliar seus vizinhos europeus a lidar com a a Invasão dos Turcos. Ele foi parte da campanha que expulsou o Exército Otomano da Hungria e que permitiu a consolidação do Reino. Na Hungria ele também se tornou uma espécie de herói nacional apesar de seu historico de massacres e gosto exagerado por execuções de prisioneiros. Alguns documentos atestam que Gotz ordenava frequentemente que as masmorras fossem limpas de prisioneiros promovendo execuções em massa. Quando um de seus imediatos disse que nao havia como alimentar os prisioneiros, ele simplesmente deu de ombros e disse: "Mortos não comem e não precisam ser vigiados".

Depois desse sucesso na frente oriental, o Exército de Gotz debandou, mas ele conseguiu manter uma tropa que novamente abraçou a causa mercenária. Ele foi contratado para liderar uma ofensiva contra os franceses na qual se saiu vitorioso em várias batalhas. 

Com uma carreira de quase 50 anos combatendo bávaros, suevos, turcos, nobres germânicos e franceses, Gotz Von Berlichengen finalmente estava pronto para se aposentar de uma vez por todas.

Ele escreveu sua autobiografia, que foi um surpreendente sucesso e se tornou uma espécie de conselheiro militar de seus filhos e netos. Eventualmente ele acabou morrendo em 1560, aos 80 anos, gozando de relativa saúde ate seus últimos dias - uma façanha notável para alguém que serviu como soldado em diversas guerras e que carregava vários ferimentos.

O dramaturgo Goethe escreveu uma peça sobre ele em 1773 que continua popular nos dias atuais, e até mesmo Mozart fez referência a famosa frase "Beije meu traseiro" em 1780. Na Segunda Guerra, um submarino foi batizado com seu nome, enquanto a 17ª unidade de Tanques recebeu o título de Unidade Gotz Von Berlichengen.

Mais recentemente, o Guerreiro se tornou referência na Cultura pop. O anime japonês Berserk é baseado em sua tumultuada vida. Um dos vilões favoritos da ambientação Dragonlance, Lord Soth, o infame Cavaleiro da Rosa Negra tambem foi inspirado em Gotz. Finalmente ele foi a base para o personagem Jaime Lanister de Game of Thrones que também tinha uma prótese no lugar da ação perdida em combate. 

Sua Mão de Ferro e armadura favorita estão em exposição no Museu de Guerra do Castelo Jagsthausen.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Guerra Medieval - Como Realmente era uma Batalha na Idade Média

O que realmente acontecia em uma batalha medieval no mundo real?

Não uma batalha de filme, mas um verdadeira: sem lutas épicas de heróis e vilões, sem câmera lenta, sem ataques coordenados. Apenas a verdade no final das contas. Aqui, nesse artigo vamos falar de como era uma batalha e de como os conflitos medievais se resolviam.

O SOM PARA AVANÇAR 

Para começar, se você fosse um soldado, você provavelmente sequer ouviria  sinal para iniciar o ataque. O código de ataque mais usado no período era emitido por uma corneta de chifre soprada por um soldado especialmente designado para essa função. Este ficava em uma posição segura, de preferência no alto para que o som de seu instrumento se propagasse. O ruído, no entanto podia ser abafado pela gritaria, confusão e nervosismo da tropa. Essa falta de organização frequentemente resultava em inícios falsos das batalhas, com determinado grupo avançando antes do momento correto, enquanto alguns saiam atrasados.

Relatos medievais demonstram que essa iniciativa desorganizada pode ter influenciado mais de um resultado em batalhas importantes. O que ocorria muitas vezes é que sinais sonoros podiam ser mal interpretados fazendo com que o avanço de tropas acabasse sendo realizado sem que todos estivessem prontos para a investida. Imagine uma coluna esperando pacientemente pelo sinal, quando uma coluna mais atrás recebe o sinal errado de avançar. O resultado era um desastre.

Por mais que os comandantes e oficiais de campo tentassem explicar os sinais adequados de ataque, muitas vezes eles acabavam sendo interpretados de forma errada pelos envolvidos, prejudicando enormemente o desfecho. De fato, muitos exércitos proibiam que soldados portassem chifres de sopro durante batalhas punindo severamente qualquer um que soprasse o instrumento atrapalhando os sinais de comando. Posteriormente algumas tropas adotaram códigos específicos, com toques diferenciados para indicar avanço, retirada, limpar o campo etc. Alguns exércitos chegaram a utilizar bandeiras e até explosivos ou fogos de artifício  colorido como forma de sinalização, mas a verdade é que em meio ao caos da batalha poucos soldados se preocupavam com ordens.

Quando um chifre de batalha soava, os soldados tinham que correr e precisavam ser rápidos nessa investida pois qualquer vacilo poderia resultar em esbarrões, encontrões e quedas. E uma queda enquanto o restante da tropa avançava era algo extremamente perigoso, podendo terminar em pisoteamento. A verdade é que os soldados eram impulsionados a correr em frente e não parar até chegar a posição do inimigo quando ocorria o choque. 

A ORDEM DA INICIATIVA

Campos de batalha medievais não eram um playground. Muito pelo contrário! As batalhas geralmente aconteciam em terreno irregular, com depressões e aclives inesperados, lamaçal escorregadio e piscinas de água estagnada, barro e excremento. Havia ainda vegetação rasteira, pedras soltas e raízes que podiam constituir um obstáculo para a investida. Perder o equilíbrio era um risco frequente, sobretudo pelo fato dos soldados carregarem um peso considerável.

As investidas em carga que vemos em filmes eram bem menos heroicas e muito mais confusas. Os combatentes avançavam em massa correndo de forma desabalada para evitar serem derrubados pelos seus próprios companheiros que vinham atrás. Tambem havia o medo de flechas que vinham voando. Quando alguém caía alvejado levava dois ou três ao chão que podiam ser facilmente pisoteados sobretudo no escuro. Exames de soldados mortos mostram que muitos ficavam afundados de bruços na lama, literalmente esmagados por botas que os pisaram até a morte. Alguns se afogavam em poças de lama com apenas 10 centímetros de profundidade. 

Conhecimento da geografia do campo de batalha podia ser uma vantagem considerável. Há relatos de um exército no século XII que avançou por um campo coberto de hera venenosa e que em meio ao ataque perdeu a formação pois os homens simplesmente ficaram pelo caminho tomados por uma coceira insuportável. Também se fala sobre as dificuldades de se lutar contra a luz do sol ou sob chuva torrencial. Todos esses elementos influíam na iniciativa da batalha e podiam prejudicar o ataque antes mesmo dos combatentes se encontrarem. 

Era comum haver uma mistura de excitação e medo que era galvanizada para impulsionar os soldados a avançar o mais rápido possível. Antes da investida ser ordenada, os homens podiam esperar por horas em linha, sob a chuva, sol inclemente, com fome, sede ou desconforto. Ficavam lado a lado com estranhos fedendo a medo, bebida e suor. Não havia como abandonar a posição para se aliviar, por isso as necessidades eram feitas ali mesmo, nas próprias armaduras. Com sorte alguém podia passar e jogar serragem ou palha na imundice. A tensão précombate chegava ao auge. Quando a ordem enfim era dada, resultava numa espécie de catarse. Poder se mover e fazer aquilo pelo que se esperou por horas era um alívio. O momento da vida ou da morte havia chegado.

Vários cronistas comentam como os ataques eram barulhentos. Os soldados gritavam sem parar. Ao avançar era comum que as tropas urrassem, xingassem e fossem para o combate berrando como loucos. Muitos podem ver isso como uma forma de intimidar o inimigo, mas a verdade é que os gritos eram uma maneira de extravasar o próprio terror. Dificilmente uma investiga era silenciosa e o que era gritado soava incompreensível em meio a cacofonia. 

O PRIMEIRO CHOQUE 

O choque em uma batalha ocorria quando um grupo avançava contra a posição inimiga e elas se tocavam. Era um estrondo ensurdecedor.

Ao contrário do que acontece em filmes, era raro os dois lados investirem ao mesmo tempo para se encontrar no meio do campo de batalha. Isso acontecia porque a posição defensiva era mais cobiçada por constituir uma vantagem considerável sobre os que faziam a investida. Isso também explica porque muitas vezes as forças permaneciam por horas perfiladas aguardando a movimentação do oponente como lutadores se encarando. 

A estratégia mais usual para os defensores era montar uma linha reta com escudos posicionados para barrar a investida. A famosa coluna de escudos. Os defensores precisavam suportar essa primeira investida e segurar a linha para evitar que ela fosse rompida. Para os atacantes, o melhor cenário era empurrar ou derrubar os defensores e para isso, eles literalmente se atiravam contra os escudos usando o peso e o impulso da corrida como vantagem. 

O som do choque era algo notável! Como um trovão. Escudos eram peças sólidas de metal ou madeira maciça, feitas para suportar o castigo de golpes sucessivos. Eles vibravam e tremiam com cada golpe absorvido. Os homens tinham que segurá-los com toda determinação, pois o choque podia ser devastador capaz de quebrar ossos ou causar torções no pulso dos defensores.

Uma linha de defesa com escudos contava geralmente com uma segunda linha de soldados com armas longas, especialmente lanceiros para repelir o ataque e espetar os inimigos antes mesmo deles se chocarem com a parede. Quando ocorria o choque a linha tentava resistir pelo maior tempo possível - por vezes as tropas treinavam dar passos coordenados para trás afim de diminuir o ímpeto dos atacante, mas nem sempre isso funcionava. Eventualmente a linha desmoronava ou era desmanchada para que a defesa tivesse chance de contra-atacar. 

LUTA FRANCA

Após o choque inicial a batalha descambava para um enfrentamento confuso cujo objetivo único era ficar de pé e golpear quem estivesse próximo - com sorte um inimigo e não um aliado.

Os mortos se acumulavam no local do primeiro choque, em meio a sangue e vômito se empilhavam tornando-se um obstáculo a ser transposto. Os combatentes então podiam se encarar pela primeira vez a poucos metros uns dos outros, face a face. Reconheciam nos seus inimigos a mesma face confusa transbordando choque e terror.

Apesar das batalhas romantizadas do cinema e literatura, é fato que a maioria dos envolvidos a essa altura do confronto só pensavam na própria sobrevivência. Um sentimento de autopreservação era acionado e eles entravam em um modo de matar para não morrer. Mas isso era apenas o início da violência.

Uma batalha medieval de verdade não era organizada, a melhor comparação pode ser uma violenta disputa de rugby na qual os dois times estão vestindo metal e portando armas brancas. Os lutadores não se enfrentavam um a um, a coisa era um verdadeiro caos de braços, armas e escudos subindo e descendo. Se um lutador enxergasse uma oportunidade ele investia naquela brecha tencionando acertar o oponente sem se importar se ele estivesse ciente ou não do ataque. Isso significa que a luta envolvia atacar o flanco, a lateral ou as costas do oponente que deixasse o caminho aberto. Um lutador podia receber ataques vindos de qualquer direção. Muitos sequer viam o que os havia atingido e morriam sem entender de onde veio o golpe fatal.

Estar em maioria era uma estratégia desejada. Se você tivesse aliados - contando que eles o reconhecessem como tal, poderiam proteger seus flancos e evitar que uma lâmina fosse enfiada na sua nuca ou que um porrete fraturasse o seu crânio. Cinco contra um era portanto uma estratégia válida. Cavaleiros ou lutadores com código de honra acabavam por abandonar a noção de luta justa. Em meio ao combate franco não havia tempo de pensar e qualquer um que se importasse minimamente em conter seus ataques, podia estar morto antes de se arrepender disso. Uma batalha medieval envolvia bater e se acertasse, bater de novo e de novo até que o oponente não estivesse se movendo.

Técnicas de esgrima ou a maneira correta de usar as ferramentas de guerra eram prontamente abandonadas em nome de um resultado prático - feio, mas letal. Não havia espaço para mover as armas. As batalhas com ataques coordenados, giros e rodopios são um absurdo. Os ataques com espadas, por exemplo, envolviam uma tentativa desesperada de espetar a ponta da arma numa área desprotegida e empurrá-la até romper a pele e causar um ferimento. Não havia espaço para a lâmina girar e cortar. De acordo com o exame de esqueletos recuperados em campos de batalha, a maioria dos ferimentos vinha de ataques feitos de baixo para cima, por isso, armas pequenas como adagas e estiletes eram muito mais úteis.

As áreas mais visadas para ataques, quando possível, eram a cabeça e o pescoço. Havia o consenso de que um ataque bem sucedido nessas áreas poderia colocar o oponente fora de combate e por isso o ideal era acertar naquela faixa. As armas podiam ser empregadas de maneira incomum conforme a necessidade. O pomo de metal das espadas na extremidade da empunhadura podia se tornar um martelo improvisado muito mais útil do que uma lâmina. Esse movimento era bastante comum e atendia pelo nome de Hack Stroke.

Ataques também podiam ser direcionados a áreas não cobertas pelas armaduras, elmos ou capacetes. Os olhos eram um alvo frequente, com armas sendo usadas para vazá-los e com sorte causar cegueira e pânico.

A Luta Franca era o momento em que os homens enfrentavam o que havia de pior e descobriam ser capazes de fazer qualquer coisa para eliminar o inimigo. Até alguns minutos antes da batalha muitos combatentes não tinham certeza de como iriam desempenhar a caótica dança de morte que constitui uma batalha medieval. Não sabiam ao certo se teriam como fazer o que lhes era proposto. Aqueles que sobreviviam, descobriam ser capazes de coisas medonhas: Enfiar dez centímetros de aço no estômago de outro homem, rachar seu crânio com um golpe de machado ou decepar sua cabeça com uma lâmina cega. A loucura do campo de combate expunha terrores inconscientes e faziam homens regredirem um degrau na escala evolutiva tornando-os feras.  

PROTEÇÃO NA BATALHA

Numa batalha medieval corpo a corpo é justo assumir que todos envolvidos tentavam encontrar algum tipo de proteção. Alguma peça de vestimenta, capacete ou proteção capaz de desviar uma lâmina ou proteger minimamente seu corpo contra um machado implacável. Do mais modesto combatente ao mais rico nobre, todos recorriam a alguma proteção que fosse condizente com seu status ou com a sua riqueza.

A Era Medieval se notabilizou pela imagem dos cavaleiros em armaduras impecáveis montadas com resistentes placas de metal. Mas estes eram uma minoria. Armaduras de metal polido ou de escamas eram caras e difíceis de construir. Mestres armeiros se esmeravam na produção metalúrgica dessas peças oferecidas em feiras ou encomendadas por nobres ao preço de um resgate. Apenas os mais ricos podiam se dar ao luxo de contar com elas. 

As armaduras mais comuns e acessíveis eram coletes que podiam ter rebites de ferro afixados, anéis ou pequenas placas. Elas eram usadas sobre casacos grossos de couro batido também guarnecidos de pedaços menores de metal que com sorte, serviam para desviar uma flecha ou lâmina. Vestiam ainda luvas e botas grossas de couro batido, caneleiras, perneiras e cotoveleiras reaproveitadas. Não podia faltar um capacete ou elmo que evitava as temidas fraturas cranianas. Os mais pobres tinham apenas as couraças de couro que eram costuradas com fragmentos de ferro, madeira ou osso para dar um pouco mais de proteção. No pescoço se usava um colar grosso de ferro - o gorjal, para evitar a degola. Na cabeça tinham um capacete simples parecido com um prato de bronze que protegia o escalpo e o nariz.  

O problema é que armaduras e elmos podiam ser ao mesmo tempo um trunfo e uma notável desvantagem quando a batalha se iniciava.

Os elmos e capacetes eram peças quase indispensáveis todos concordavam com isso, mas ao mesmo tempo eram desconfortáveis, pesados e quentes. Um capacete de metal pesava algo em torno de 4 quilos, mas um elmo fechado de cavaleiro podia chegar a ter até 15 quilos. Em apenas meia hora de exposição ao sol, a temperatura interna de um elmo fechado podia chegar a insuportáveis 38 graus. Suor escorria, os cabelos coçavam e a barba ficava empapada de suor e saliva, quando não vômito e sangue. 

Os combates medievais eram travados em vestimentas que eram basicamente saunas portáteis. Um lutador podia ficar fora de combate não por ferimentos, mas por desidratação severa. O corpo inteiro ficava coberto de suor frio que se misturava a sangue, urina e demais resíduos. O fedor era nauseante. Qualquer corte interno podia infeccionar rapidamente com a umidade e sujeira típica de um campo de batalha.

Se por algum motivo você perdesse o equilíbrio ao usar uma armadura, levantar era algo complicado. Dependendo do peso, a armadura podia funcionar como uma âncora limitando movimentos e esgotando o combatente até as raias da exaustão. A simples tarefa de se colocar de pé podia ser quase impossível.

Os golpes inimigos podiam descrever trajetórias inesperadas e vir de direções absurdas o que diminuía a eficácia das armaduras. Por mais bem construídas que fossem, elas invariavelmente possuíam alguma brecha e quando a lâmina entrasse por ela era o fim. Também havia o problema de uma armadura amassar ou quebrar, ferindo a pele e deixando pontas afiadas que causavam dolorosas perfurações internas.  

Um elmo também impedia a visão completa do campo de batalha. Quem usava esse tipo de proteção tinha a sua linha de visão limitada a dois pequenos buracos através dos quais ele só via o que estava diretamente à sua frente. A visão periférica, requisito essencial para perceber ataques furtivos e investidas nos flancos se perdia por completo.

De um modo geral, as armaduras ofereciam alguma proteção, mas esta, nem de longe era tão eficaz quanto acreditamos através do exposto em filmes e literatura. Uma armadura de correntes podia suportar um ataque ou dois de espada, mas não iria resistir a um machado. Um elmo por mais reforçado que fosse não seria páreo para um martelo ou mesmo a uma lança que trespassasse pela viseira. Uma armadura era uma forma de desviar os ataques e conceder algum grau de proteção, mas este era mínimo.

Ainda assim, é perfeitamente compreensível entender porque elas continuaram a ser usadas. Na ausência de qualquer outra coisa, elas eram psicologicamente uma forma de lidar com os aterrorizantes ferimentos que mesmo as mais simples armas eram capazes de provocar. Não que as armas fossem todas perfeitas, mas quando se fala em batalhas medievais, é muito mais fácil ferir do que prevenir um ferimento. E por falar em... 

ARMAS MEDIEVAIS

Os problemas estruturais não se limitavam às armaduras usadas pelos combatentes. As armas também podiam deixar muito a desejar.

As peças maravilhosas que se vê reluzindo nas vitrines de exposição em museus resistiram à passagem do tempo porque realmente eram bem manufaturadas por armeiros medievais, contudo elas eram a exceção. A maior parte das armas eram ferramentas grosseiras construídas com uma única função, causar dano na anatomia humana. Uma arma perfeita era aquela que poderia arrebentar um osso com o impacto, lacerar um tendão com um gume afiado ou se enterrar nas entranhas provocando hemorragia interna. Uma peça capaz de produzir esse tipo de ferimento não precisa ser bem construída ou ser bem manipulada - muitas vezes bastava que a pessoa tivesse sorte no ataque.

Pode parecer estranho, mas as armas atendiam a uma função básica, por isso, muitos exércitos não se preocupavam muito com a qualidade delas e pagavam pela construção de artefatos simples e descartáveis. Ademais, sempre era possível resgatar alguma arma depois de um combate para substituir aquelas que haviam sido danificadas. De fato, apenas nobres cavaleiros, soldados profissionais e mercenários veteranos possuíam armas de boa qualidade, todas as outras acabavam se consumindo depois de uma ou duas batalhas. Ferrugem, metal de baixa qualidade e uso indevido acabavam por destruir as armas.

Falemos de machados. Eles eram basicamente a mesma ferramenta usada universalmente para cortar madeira nas florestas. Para a atividade marcial os machados eram mais afiados para poder cortar através de escudos, armaduras e, é claro, ossos. Eles tinham uma grande vantagem: não precisavam de treinamento formal. Bastava erguer e baixar com força deixando a física fazer o resto. O efeito geralmente era devastador e um alvo atingido por um machado raramente se recobrava da experiência. Mas havia um problema! A lâmina de um machado podia acertar um alvo fosse um escudo ou as costelas de um inimigo e ficar preso ali. O exame de muitos campos de batalha mostrou que os portadores de machados por vezes, morriam tentando desalojá-los do lugar onde ficaram presos. E com a arma presa em meio ao caos, ele próprio se tornava um alvo em potencial.     

Lanças eram de longe as armas mais comuns nas batalhas medievais, primeiro por serem muito baratas e fáceis de construir, em segundo lugar, por exigir mínimo treinamento. Em batalhas medievais cerca de 70% das tropas podiam ser armadas com uma ou mais delas. As lanças medievas eram um bastão de madeira com uma ponta aguda de ferro presa na extremidade com prego, mas podiam ser ainda mais rudimentares. Uma haste de madeira afiada ja dava conta do recado. Mesmo reinos pequenos com recursos limitados podiam produzir milhares de lanças para suprir seus exércitos. O grande benefício das lanças era obviamente o alcance delas. Poder empalar alguém a quase dois metros de distância era uma vantagem considerável, sobretudo quando o oponente tinha uma arma curta ou avançava numa carga atabalhoada. O problema das lanças é que elas se tornavam inúteis em lutas corpo a corpo, podendo causar acidentes e até ferir aliados em formação lado a lado. Por esse motivo os lanceiros costumavam soltar as lanças tão logo as linhas se chocavam, apanhando facas, adagas e porretes presos aos cintos para continuar lutando.

Maças e martelos surgiram como uma necessidade quando a ponta das lanças começaram a desviar ou quebrar nas armaduras. As lâminas também se tornaram pouco úteis contra soldados protegidos por armadura pesada. A solução foi parar de cortar e começar a arrebentar. Uma maça é essencialmente uma bola pesada de ferro fundida a ponta de um porrete. Desenhada para quebrar ossos sem a necessidade de abrir as armaduras, os ferimentos internos podiam ser medonhos. As maças criaram a crença de que seriam armas ideais para religiosos e guerreiros puros por não verterem sangue diretamente - seus ferimentos internos podiam ser devastadores. Os martelos de guerra eram ainda mais identificados com o princípio básico de abrir buracos na armadura até atingir algo macio dentro delas.

A despeito do que se vê em filmes medievais, as espadas talvez fossem as armas menos comuns em campos de batalha. Para começar, elas eram realmente muito caras, podendo custar tanto quanto uma casa. Forjar uma espada carecia de um ferreiro com habilidades de artesão, anos de prática e conhecimento de metalurgia. Apenas nobres e soldados profissionais tipicamente podiam pagar por uma arma desse tipo. Além disso, espadas de qualidade duvidosa, como eram praticamente todas as fornecidas aos soldados quebravam facilmente. Análise de espadas recuperadas em campos de batalha demonstram que a maioria foi reparada múltiplas vezes ou que chegaram a quebrar em meio às batalhas. Poucas coisas podiam ser piores do que ter uma espada quebrada nas mãos, justo quando mais se precisa de uma arma. Apesar dos avanços da qualidade da metalurgia ter permitido a produção de espadas na baixa idade média, elas nunca foram tão comuns como Hollywood nos fez acreditar.

Finalmente, temos as armas improvisadas, essas sim o fundo do poço nas batalhas do período. É preciso lembrar que muitos dos lutadores medievais eram camponeses alistados para lutar ou que viam nas guerras uma oportunidade de ganhar algum dinheiro. Vigorava o costume de ir para a luta levando a sua própria arma e na ausência de algo melhor, os camponeses usavam as ferramentas que tinham em suas casas e que usavam no dia a dia. Nessa vasta categoria de implementos agrícolas temos porretes, garfos de arado, malhos e até pás com a lâmina afiada. Análise de campos de batalha atestam que mais de 20% das armas usadas nos combates podiam ser ferramentas de fazenda adaptadas ao uso militar. A despeito de serem armas rudimentares, elas podiam ter eficácia inquestionável. Um cavaleiro em armadura, o pináculo da tecnologia de guerra medieval, podia ser morto por um golpe de picareta no peito.

As armas medievais jamais foram construídas para parecer bonitas ou adequadas aos combatentes que as manipulavam. Elas eram objetos que visavam exclusivamente ferir, lacerar e matar os oponentes. Se fossem baratas e fáceis de produzir, tanto melhor pois a demanda por elas era constante já que a Idade Média foi marcada por guerras frequentes.

Continua na parte 2

quarta-feira, 4 de junho de 2025

RPG do Mês - Cthulhu Idade das Trevas - O Mythos na obscura e aterrorizante Era Medieval


A Era Medieval  desperta um estranho fascínio em todos nós. 

É curioso tentar entender porque essa era marcada pelo que muitos chamam de "A Longa Noite", desperta paixões tão grandes em nós. Estou ciente de que nem todos os historiadores hoje concordam com a noção de que o medievo europeu foi uma Era das Trevas, contudo é difícil afastar os indicadores contrários. Embora haja alguns lampejos de genialidade (na Filosofia, na Literatura, na Arquitetura), é indiscutível que guerra, doença, fome, ignorância e injustiça, mazelas tenebrosas foram alguns dos elementos que prevaleciam nessa Era das Trevas.

Apesar disso, não é raro que sejamos atraídos pelo período. Há algo na história medieval profundamente significativo. Seja a visão do heroísmo, da bravura, da perseverança ou outros elementos que devida ou indevidamente associamos aos homens e mulheres que viveram essa época tumultuada da humanidade.

Para nós, Jogadores de RPG, a Era Medieval é especialmente significativa. Nosso hobby nasceu envolto por esse período. Foi com base na Era Medieval que o mais conhecido dos RPG foi construído. Dungeons and Dragons tem como inspiração direta as sagas de cavalaria, de magia e de heroísmo, embora com um viés absolutamente fantástico.

Essa introdução é para falarmos de um outro RPG que nos oferece uma visão da Idade Média, embora se incline sobre elementos mais sérios e menos fantásticos. Em Dark Age Cthulhu temos a chance de vislumbrar um Mundo Medieval bem menos glamourizado e heroico do que em D&D, mantendo os dois pés firmes na realidade histórica brutal do período, com uma única concessão, a de incluir os Mythos de Cthulhu como parte do ambiente.

Cria-se assim um ambiente quase apocalíptico, de horrores profundos, mistérios insondáveis, segredos perigosos, devoção absoluta e fanatismo inquebrantável. Um mundo carregado de simbolismo, superstição e oportunidades narrativas.

Sejam bem vindos a Cthulhu Idade das Trevas. 


Cthulhu Idade das Trevas é um suplemento para a 7ª edição de Chamado de Cthulhu editado pela Chaosium e publicado no Brasil pela New Order. Cabe dizer que esta é a terceira encarnação deste livro. Ele começou como um suplemento alemão escrito por Stephane Gesbert com o título Cthulhu 1000 AD. Tornou-se Cthulhu Dark Ages em 2004 no formato de um RPG independente, contendo uma versão abreviada das regras de Chamado então na 6ª edição. A Chaosium publicou uma série de aventuras para ele como parte de sua linha de monografias e também o utilizou como base para o suplemento Mythic Iceland do BRP. Após o lançamento da 7ª edição, Chad Bowser e Andi Newton fizeram uma revisão, oficialmente conhecida como Cthulhu Dark Ages Second Edition, que ficou disponível em quantidade limitada. Cm a nova edição, a Chaosium lançou uma versão mais caprichada da obra de Bowser e Newton, colorida e com a diagramação de sua edição mais recente. 

Essa versão de Cthulhu Dark Ages tem 274 páginas, com material colorido e ilustrado por completo, com uma combinação de desenhos modernos e arte contemporânea que remete ao Livro de Kells e a Tapeçaria de Bayeux, talvez as duas mais importantes obras medievais. Há vários mapas no livro – da Inglaterra Anglo-Saxônica, da cidade de Totburh (base para aventuras nessa edição), um mapa das Fronteiras Ocidentais (perto da fronteira anglo-galesa, ao longo do Rio Severn – que inclui Totburh), o Mosteiro de St. Swithun, nas proximidades, e de locais das aventuras incluídas no livro. 

Enquanto o Cthulhu Dark Ages original (e Cthulhu 1000 d.C. antes dele) era um guia genérico para a Europa por volta do ano 1000 d.C., a versão mais recente, embora possa lidar com campanhas em qualquer lugar da Europa, concentra-se na Inglaterra anglo-saxônica de 950 a 1050 d.C. Lembro de ter gostado do Cthulhu Dark Ages original (a resenha inclusive pode ser achada aqui no Blog), mas de ficar um pouco perdido sobre como dar vida a ele. O período em torno do ano 1000 é bastante estranho para nós, ainda mais se considerar o realismo da ambientação. Embora os jogos tradicionais de Cthulhu sejam ambientados na década de 1920 e tenham seus próprios desafios, ainda é um mundo que conseguimos reconhecer. Já a Era Medieval é quase outra realidade. 

Essa aliás é uma das propostas do jogo. Cthulhu Idade das Trevas tenta se dissociar de toda e qualquer visão romântica da Era Medieval, apostando justamente nos elementos históricos que a descrevem como um lugar que, bem, você não gostaria de visitar (e se visitasse talvez não conseguisse sobreviver). A Era das Trevas descrita nesse Guia de Ambientação é suja, violenta, cheia de superstição e com personagens desesperados. Ao invés dos acadêmicos intelectuais e de indivíduos esclarecidos que marcam as ambientações clássicas de Cthulhu, aqui temos pessoas que temem a noite e o que ela esconde e que provavelmente resolverão suas desavenças na ponta de uma espada. 

O livro ajuda a estreitar o foco e fornece detalhes adicionais valiosos para compreender esse mundo. Isso deixa o leitor mais confortável para experimentar o jogo contando com uma rica tapeçaria histórica que serve como base para testar a ambientação.


Mas como funciona um mundo medieval no qual os horrores do Mythos de Cthulhu espreita nas trevas?

Muito bem, eu diria sem sombra de dúvida. Chamado de Cthulhu é por definição um jogo em que os personagens estão sempre em desvantagem em relação aos seus opositores, mas talvez em nenhum outro cenário isso seja tão dramático quanto aqui na Idade das Trevas. Se por um lado os personagens possuem acesso a armas, armaduras e uma fé implacável que lhes serve de cobertor, por outro eles tem que lidar com a mesma impotência diante das forças do Mythos - e com alguns agravantes. As armas que eles tem à sua disposição são incrivelmente ineficazes contra as criaturas, suas armaduras provavelmente não irão protegê-los e sua fé pode acabar sendo mais um revés do que um benefício, visto que se ela lhes for arrancada, o que resta para fornecer algum conforto?

Os personagens nessa ambientação são indivíduos que não tem a quem recorrer durante suas investigações. Muitos deles serão iletrados, e mesmo que eles consigam ler o que está em um tomo, este provavelmente estará trancado na biblioteca de um monastério. Mais perigoso ainda, enquanto nas outras ambientações você pode ser mandado para um manicômio, aqui o risco é ser queimado em uma fogueira como bruxo ou herege. Pior ainda, você pode ser preso, torturado e condenado sem a necessidade de provas já que a justiça depende mais de seu status do que dos seus crimes.

Finalmente não faltam cultos agindo às escondidas, sequestrando, sacrificando e louvando os Antigos com um fervor ainda maior do que em épocas mais esclarecidas. Aqui os cultos parecem ainda mais terríveis e muito mais determinados em seus planos malignos. Bruxas, feiticeiros e cultistas estão muito mais à vontade para agir do que em qualquer outro período histórico. Isso tudo sem mencionar que as próprias criaturas agem mais às claras, sob o véu de serem tratadas como demônios pela lógica cristã.

Em essência, essa é uma ambientação que oferece uma dramática mudança na forma como os investigadores terão de abordar os mistérios que lhes serão propostos e de como terão de resolver os casos. É quase como um jogo totalmente diferente.

O livro oferece bem vindos conselhos de como abordar essas diferenças com "Exemplos de Testes de Jogo" – discussões sobre como as coisas funcionaram em várias sessões. Achei bem interessante essas discussões, pois fornecem exemplos de como o cenário e as regras específicas se encaixam no jogo real, que tipo de coisas surpreenderam os autores etc.

A seguir, vou analisar mais a miúde cada capítulo do livro e falar um pouco sobre os temas bordados neles.

Capítulo 1: Inglaterra Anglo-Saxônica


Com a Inglaterra Anglo-Saxônica sendo o cenário padrão para Cthulhu Idade das Trevas, o capítulo de abertura nos apresenta o país em detalhes. Os vários tipos de assentamentos são descritos – incluindo os assentamentos fortificados conhecidos como Burhs – onde as moedas são cunhadas e que servem como centros de comércio. O Rei Alfredo planejou a rede de Burhs de forma que nenhum assentamento anglo-saxão estivesse a mais de um dia de marcha dos demais. Isso os torna excelentes bases para campanhas. A lista de Reis discute como o controle da Inglaterra começou com a Casa de Wessex, quando foi tomado pela Casa da Dinamarca, passando de uma dinastia para outra sucessivamente. Esse contexto histórico é bastante útil para entender o pano de fundo da ambientação base, ainda que não se aprofunde excessivamente na história - o que poderia ser um tanto chato. 

O capítulo também ensina muito sobre a estrutura social da Inglaterra Anglo-Saxônica, o papel da família, das mulheres, das crianças e do casamento na cultura. Nesse período, a escravidão ainda é praticada – com muitos se tornando escravos por não conseguirem pagar multas associada a uma pena criminal ou quitar os impostos.

A arquitetura é discutida, incluindo a prevalência de ruínas romanas na velha Província de Britania. Considerando que os personagens, além de enfrentar criaturas do Mito, enfrentarão humanos perigosos, a seção sobre crime e punição é de grande interesse. Os leitores notarão dois aspectos do código penal muito estranhos à nossa sensibilidade moderna. Um crime cometido em segredo acarreta uma punição maior do que um cometido abertamente, e a severidade da sentença depende da classe social da vítima. Além disso temos sentenças definidas por vontade divina - como se Deus separasse culpados de inocentes.

Aspectos como religião, entretenimento, guerra, alfabetização e outros são discutidos e todos são relevantes para a ambientação. Embora oficialmente a Inglaterra anglo-saxônica seja cristã, as influências pagãs dos "antigos costumes" das crenças anglo-saxônicas são discutidas, assim como o paganismo nórdico. Maneiras de vincular divindades do Mythos a crenças pagãs são oferecidas, com o aviso pertinente de não incluir o Mythos em tudo. Saúde, cura e morte têm sua própria seção – este não é um conjunto de regras do jogo, mas sim uma discussão sobre saneamento, doenças, tratamentos e práticas de morte e sepultamento.

A seção termina com um guia geográfico da Inglaterra anglo-saxônica, com opções para inserir elementos do Mythos. Tudo muito conciso e interessante para contexto do período.

Capítulo 2: A-Z da Idade das Trevas


O segundo capítulo fornece "detalhes resumidos" de vários aspectos da vida por volta do ano 1000. Isso inclui um lembrete de que a Idade das Trevas foi bem diferente da Alta Idade Média, da qual a maioria dos RPGs de fantasia se inspira. Ao contrário do capítulo anterior, esta porção é mais genérica, focada na vida das pessoas em geral. Ele aborda conceitos como batalha, castelos, o diabo, tomada de reféns, cavaleiros, alfabetização, tradições orais, magia, justiça criminal, hierarquia da igreja, vida rural, servidão, escravidão, o sobrenatural, contagem do tempo, viagens e a natureza selvagem.

Embora não haja mecânica de jogo neste capítulo, exceto por uma discussão sobre como representar a alfabetização em termos de jogo, trata-se de um capítulo bastante valioso. É repleto de detalhes para ajudar a conduzir ou jogar nessa época. Um lembrete da importância da comunidade, de como os estranhos são vistos com desconfiança, de como os castelos são geralmente de madeira e terra, com a pedra começando a ser usada nas torres normandas. Há até uma seção sobre humor, como a famosa anedota da Saga de Njal.

A exposição deste capítulo dá vida ao período de uma forma que listas de reis, condes e preços de equipamentos jamais dariam. Eu gosto de pensar nesse material como um compêndio útil para outras tantas ambientações mais realistas se passando na Idade Média. 

Capítulo 3: Investigadores da Idade das Trevas

Sem surpresas, esse capítulo aborda as mecânicas de jogo, detalhando como gerar um investigador da Idade das Trevas. O processo é basicamente o mesmo das demais ambientações, com algumas mudanças pontuais quanto a habilidades para melhor representar o período. Como nenhum investigador da Idade das Trevas terá a habilidade de dirigir um automóvel ou portar armas de fogo, então essas habilidades desaparecem sendo substituídas por outras mais adequadas. 

Algumas das mudanças mais notáveis incluem: Status – que substitui a classificação de Crédito, embora seja usado essencialmente para o mesmo propósito. Dependendo do seu estilo de jogo, há opções para ter um Status que varia de acordo com organizações/grupos. Ele mede sua importância, riqueza relativa e acesso a bens para troca (já que a troca é muito mais comum). Leitura e Escrita são coisas separadas, já que falar um idioma não se traduz em alfabetização. O Conhecimento de seu Reino natal e de Outros Reinos forma um conjunto de habilidades que permite aos personagens entender os costumes, as lendas e as tradições dos diferentes reinos.

Há uma lista de ocupações condizentes para o Período Medievo. Não são tantas opções quanto as presentes no Manual do Investigador, mas ainda assim é uma boa variedade – guerreiros, eremitas, curandeiros, menestréis, sacerdotes, eruditos, marinheiros, etc. De um modo geral, você encontrará várias opções interessantes para retratar os personagens.

As tradicionais tabelas para ideologia, pessoas significativas, locais significativos, posses preciosas e características também foram adaptadas para o período, e uma tabela para eventos de vida (que pode conceder pequenos bônus e penalidades a várias perícias e atributos) foi incluída.

Há uma seção que discute o sexo do seu personagem – incluindo uma discussão sobre mulheres excepcionais que tiveram importância histórica reconhecida. O livro tenta ser mais abrangente quanto a questões que envolvem o sexismo da época, mas a interpretação final cabe ao Guardião. Ele deve arbitrar o que é permitido ou não em sua mesa, dependendo apenas do quão realista ele prefere sua sessão.

Assim como no Manual do Investigador, há uma seção sobre organizações e sociedades que os investigadores podem fazer parte. Ela começa com a ressalva de que ordens de cavalaria, ordens religiosas de longo alcance e guildas mercantis não se tornarão predominantes até pelo menos o século XII – embora, deixando esse aviso de lado, os grupos sejam incentivados a ficar à vontade para usar tais organizações se isso facilitar suas campanhas. Duas organizações são apresentadas. A primeira são os Congregantes, grupos de monges beneditinos e irmãos leigos que investigam mosteiros – formados depois que um desses grupos encontrou horrores indizíveis em um mosteiro. A segunda é a dos Dízimos de Eawulf que busca confrontar religiosos que se voltaram para os Horrores ancestrais.

O capítulo termina com uma seção sobre equipamentos – que vão de instrumentos musicais a suprimentos básicos, provisões, armas e armaduras. As armas são basicamente o que se esperaria para a época – machados, manguais, facas, lanças, espadas, arcos, fundas e bestas. As armaduras oferecem uma proteção variável que pode ajudar os personagens a sobreviver aos combates, além de regras para o uso de escudos.

Capítulo 4 – Sistema de Jogo


Enquanto o Capítulo 3 abordou as regras para a criação de investigadores durante a Idade das Trevas, o Capítulo 4 se concentra nos elementos de jogo. Ele aborda itens que provavelmente surgiriam em sessões teste de Cthulhu Idade das Trevas, isso inclui notas sobre escambo, quebra de objetos, uso da tradição oral para transmitir o saber do Mythos, ajustes para o combate com regras opcionais como uso de escudos, montarias, etc. Há também regras para venenos, poções e doenças. A introdução de uma regra opcional contemplando ferimentos graves, torna o jogo ainda mais mortal. Outras opções abordam conceitos como quebra e desgaste de armas.

Há alguns ajustes bem vindos no que tange as regras de sanidade. Isso inclui uma discussão sobre problemas de saúde mental durante esse período – com duas doenças mentais reconhecidas – "idiotice" (algo com que você nasce) e "loucura" (algo que acontece com você). Não há conceitos como paranoia, agorafobia, etc. (embora os personagens ainda possam sofrer com elas). Dada a maior quantidade de violência na época, os personagens não precisam fazer testes de sanidade com tanta frequência para ocorrências dessa natureza, embora sejam tão vulneráveis ​​ao sobrenatural quanto os personagens modernos.

Personagens que sofrem crises de loucura têm tabelas ligeiramente alteradas para rolar. A recuperação de insanidade pode ser feita com cuidados domiciliares, em monastérios ou em peregrinação. Aqueles sem meios de recuperação podem ser expulsos e se tornar andarilhos, uma posição bastante perigosa em uma era em que a comunidade é vital para a sobrevivência.

Existem algumas regras alternativas para Testes de Sanidade: em vez de fazer testes de sanidade, os personagens fazem um teste contra sua perícia Mundo Natural ou Religião, dependendo da situação. Se obtiverem "sucesso" no teste, não serão capazes de processar a situação, como se tivessem falhado em um Teste de Sanidade. E uma mudança bem interessante e que faz sentido, considerando que os personagens tem uma forte afinidade com a sociedade a que pertencem.

Capítulo 5: Horror Investigativo na Idade das Trevas

O Capítulo 5 é um dos capítulos principais para o Guardião e foca na condução do jogo. Ele aborda tópicos como reunir o grupo, fazer ele funcionar e como dar vida ao mundo que os cerca. Também discute a eterna questão em jogos históricos: "quanta história é interessante introduzir na mesa?".

A seção sobre pistas discute a possibilidade muito real de que nenhum dos personagens tenha a habilidade necessária para ler os Tomos do Mythos, tão frequentemente encontrados em jogos da era mais moderna. Uma possibilidade é usar Tradição Oral. Um aviso comum é não fazer tudo ter elementos do Mythos. – nem toda saga precisa se referir ao Mythos, assim como nem todo livro da década de 1920 vem repleto com esse saber profano. Além disso, mesmo sem ler tomos, as pistas podem ser transmitidas de uma maneira alegórica perceptível – animais reagindo a efeitos sobrenaturais, velhos testemunhos e lendas fornecem as pistas de maneira bastante interessante.

Um conselho frequente envolve não esconder pistas importantes, ao invés disso, ao procurar uma pista, transforme uma falha em uma oportunidade para introduzir uma complicação em vez de simplesmente negar a informação. Há também orientações para evitar o hack & slash – algo interessante para conter o ímpeto de jogadores de fantasia medieval.

Capítulo 6 – O Mito de Cthulhu na Idade das Trevas

Os autores não oferecem uma visão "canônica" do que é o Mythos na Idade das Trevas, mas apresentam diversas opções. Isso inclui a opção tradicional de que o Mythos é totalmente alheio à experiência humana. Outra opção é adaptar criaturas do folclore e das lendas para mascarar as entidades e criaturas. Há também uma discussão sobre o uso de crenças religiosas – conceitos teológicos como o "O Livro dos Vigilantes", que discute os 199 anjos caídos, como o Limbo pode ter gerado Yog-Sothoth e o uso do avatar do Homem Negro, Nyarlathotep, como o Diabo em pessoa.

Vários locais do Mythos são detalhados para os Guardiões; desde ilhas perdidas a destinos na Inglaterra, passando pela Cidade Sem Nome no Grande Vazio da Arábia. Vários cultos são detalhados, algo muito útil para criar suas próprias histórias. Há também uma discussão sobre como as Divindades do Mythos poderiam ser interpretados na Idade das Trevas.

Há a seção obrigatória sobre tomos do Mythos, acompanhada por uma seção sobre poemas e livros de ocultismo que não são do Mythos, mas que ajudam a compor o rudimentar ambiente acadêmico. Há uma discussão sobre diferentes tipos de feitiçaria além da magia tradicional do Mythos – Magia Ritual e Magia Folclórica. O capítulo termina com uma lista de novos feitiços, muitos dos quais na lista de Folk Magic o que é bastante condizente com as superstições que permeavam pelo período.

Capítulo 7 – Bestiário

O Bestiário é dividido em três seções. A primeira detalha novos monstros do Mythos. A segunda aborda monstros do folclore, com Pôncio Pilatos fazendo uma aparição como um vampiro. Finalmente, há uma seção sobre animais mais mundanos. 

Há uma boa variedade de monstros, abominações e terrores únicos como os cu sith, servos dos Cães de Tindalos; a terrível Névoa sem Nome; e os selvagens skrælings, que travaram guerra contra os hiperbóreos, entre outros. Serei bastante vago sobre esse capítulo já que essas criaturas devem ser exclusivas para o Guardião.

Capítulo 8 – Totburh

Este capítulo faz um excelente trabalho detalhando a cidade fictícia de Totburh, que serve como uma espécie de base para os personagens dos jogadores. Ele evoca a aura de assentamentos rurais isolados e que constituem uma pequena luz de civilização em meio a um mar revolto de selvageria e incertezas. 

Totburgh é uma aldeia fictícia do final da Idade Média, como muitas outras que desapareceram com o passar do tempo. A maneira como ele é descrito faz com que o vilarejo ganhe vida com habitantes interessantes, lugares relevantes e ameaças que povoam os arredores e que tem muito potencial para a criação de cenários. A maioria dos habitantes locais tem ganchos opcionais para envolver o Mythos, permitindo que os Guardiões enfatizem o tipo de horror e as criaturas que mais lhes agrada. 


O vilarejo também pode ser um assentamento para os investigadores meramente visitarem. Ele é pequeno o suficiente para ser explorado numa noite, mas grande o bastante para que haja muitos mistérios a serem investigados. Um burh como Totburh é um lugar fortificado, criado para proteger uma espécie de casa da moeda. Três de seus lados são guarnecidos por muros de madeira, enquanto um quarto, próximo ao Rio Severn, é de pedra. Perto dali, há um mosteiro e uma vila viking que ameaça a região. Uma floresta próxima esconde segredos, bandidos e uma variedade de ganchos do Mythos. Também nas proximidades há um forte abandonado da Idade do Ferro e ruínas romanas cheias de lendas. 

Os NPCs possuem histórias interessantes que podem ser bem aproveitadas e que fornecem ideias para se tornarem importantes na vida dos personagens dos jogadores. Uma coisa que gostei é que o Guardião pode fazer uma campanha inteira acompanhando a passagem do tempo, com os investigadores envelhecendo, casando, tendo filhos e até netos. 

Quanto às aventuras dos capítulos 9 a 11, fico indeciso sobre quanto detalhe fornecer, visto que grande parte do prazer em aventuras vem da surpresa. Vou alertar sobre SPOILERS, dando uma visão geral bem básica sobre cada trama.

Capítulo 9: A Caçada

A Caçada foi projetada para ser uma aventura introdutória e, como tal, é bastante linear. Os investigadores participam de uma caçada a um lobo perigoso que vem aterrorizando a região durante o inverno. No entanto, à medida que o cenário avança, descobre-se que há mais do que um simples predador à solta. Embora linear, existem alguns caminhos que os investigadores podem seguir.

Como a maioria das boas aventuras introdutórias, esta apresenta uma série de conceitos importantes para os investigadores. Ela os familiariza com Totburh, seus habitantes e os arredores imediatos. Oferece várias maneiras de obter pistas – visitar um scriptorium religioso e examinar tomos são uma opção, mas é possível reunir pistas e informações apenas por meio da interação com os NPCs. O cenário oferece opções de expansão – encontros opcionais e oportunidades para aumentar a ação.

Capítulo 10: A Perdição que Veio a Wessex

Apesar da semelhança no título, este cenário não está relacionado ao conto de Lovecraft, "A Perdição que Veio a Sarnath". A trama é um pouco mais aberta do que o cenário anterior. Começa com uma cena de ação – um ataque viking a Totburh. De lá, os investigadores precisam ir ao mosteiro próximo, que pode também ter sido atacado pelos viking. O que eles encontram é um mosteiro sob a influência da magia do Mythos – os investigadores precisarão descobrir o que desencadeou isso e como desfazer esse mal. Há uma série de pistas para os investigadores encontrarem, tornando este, apesar da cena inicial, um bom exemplo de uma investigação durante a Idade das Trevas.

Capítulo 11: Eseweald

Este cenário final lida com Totburh sendo ameaçada em duas frentes – pelos vikings e pelos Cymric. Oswyn, o ancião da vila, envia seu filho para liderar uma delegação para negociar um tratado com os Cymric, mas não recebe resposta deles. Os investigadores devem determinar o que aconteceu com a delegação enquanto lidam com as relações desgastadas com a cidade vizinha de Corduon. 

Neste cenário, o Mythos é, em vez da ameaça principal, um catalisador que ameaça desencadear uma guerra na região. Gostei de como este cenário prepara a cena para eventos posteriores – as ações dos investigadores podem levar os Cymric a se aliarem aos anglo-saxões de Totburh ou a se aliarem aos vikings.

Apêndices

O livro termina com quatro apêndices. O primeiro deles é um glossário da Idade das Trevas. É um glossário abrangente, que cobre desde a aparência dos livros até relógios de água, idiomas e relíquias. Não é exatamente o tipo de coisa que Guardiões e jogadores irão consultar, mas sim um bom recurso para inspiração.

O segundo apêndice é uma linha do tempo da Idade das Trevas, abrangendo o período de 950 a 1054. Ao contrário da maior parte do livro, não se concentra na Inglaterra anglo-saxônica, embora os principais eventos ingleses, como a conquista dinamarquesa da Inglaterra em 1013, sejam abordados.

O terceiro é um Quem é Quem, discutindo uma variedade de monges importantes e listas de reis e imperadores – abrangendo regiões como o Império Bizantino, França, Inglaterra, o Sacro Império Romano Germânico, Papas e muito mais.

O apêndice final é uma bibliografia de fontes da época, tanto populares quanto acadêmicas, usadas para compor Cthulhu Idade das Trevas. Eu gostaria de mais detalhes sobre cada livro, quem os escreveu e onde poderiam ser encontrados. Ainda assim, é muito útil ter essas referências à mão. Há também uma lista de filmes para inspiração que incluem desde Monty Python em Busca do Cálice Sagrado até O Sétimo Selo e O 13º Guerreiro. Todos ótimos filmes para inspirar visualmente os cenários.

Considerações Finais


Quando terminei de ler Cthulhu Idade das Trevas surgiram muitas ideias para uma campanha se passando nessa ambientação, o que via de regra é um ótimo sinal. Apenas os melhores cenários mexem com nossa imaginação dessa maneira. O livro praticamente implora para não ser deixado na prateleira, ao invés disso, merece ser usado na mesa de jogo, nem que em uma one shot

É preciso deixar claro mais uma vez, correndo o risco de soar repetitivo, que esse não é um livro de D&D onde por acaso figura a presença de Cthulhu. Ainda é Chamado de Cthulhu, mas em um cenário diferente e muitíssimo interessante. O combate é tão mortal quanto sempre foi – talvez ainda mais sem acesso à medicina moderna. Ainda há a chance de aprender sobre o Mythos e receber feitiços, mas como sempre existe o risco de ser consumido por esse conhecimento perigoso. As investigações terão uma interpretação diferente e os jogadores terão de se virar para chegar a solução dos mistérios. Nada é garantido nesse lugar escuro, sujo e assombrado. 

Lovecraft escreveu: "A emoção mais antiga e forte da humanidade é o medo, e o tipo mais antigo e forte de medo é o medo do desconhecido". Como em qualquer jogo de Chamado de Cthulhu, os personagens enfrentarão horrores além da compreensão e da realidade de sua época. Em um jogo moderno, a compreensão científica e tecnologia se mostram incapazes de entender o Mythos. Na Idade das Trevas, é a crença religiosa e a superstição que falham nessa mesma tarefa. A compreensão do universo, tanto dos investigadores modernos quanto dos da Idade das Trevas, é incapaz de aceitar a realidade apocalíptica do Mythos. Não importa quando, não importa onde, qualquer um capaz de entender o Mythos já está perdido. 

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