sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

"Deus quer!" - A Primeira Cruzada para Conquistar a Terra Santa


Guerra em nome de Deus.

As grandes religiões do mundo uniformemente pregam a paz e piedade, contudo a História, especialmente a história da Idade Média mostra que religião e violência andavam juntas e não estavam em contradição uma com a outra.

A crença em Deus por vezes está ligada a noção de lutar em nome de Deus e de ser recompensado no Paraíso. aqueles que morrem em nome da Guerra Santa se tornam mártires e tem benefícios garantidos pelas suas crenças. A palavra Islã significa Paz e Cristo ensina que amar nossos inimigos é necessário, mas em nome dessas crenças, o mundo se lançou em um sangrento movimento conhecido como a Cruzada.

Nessa série de artigos do Mundo Tentacular, vamos cobrir um dos momentos mais importantes da História Medieval e de como acontecimentos tão distantes, aparentemente perdidos no tempo, ainda reverberam através da História e afetam os dias atuais. Falaremos também de ficção e de como as cruzadas podem ser usadas como um componente real de terror em crônicas onde resplandece o Horror Cósmico. Afinal, poucas coisas podem ser mais assustadoras do que uma guerra movida pelo fanatismo cego.

A Cristandade por volta do ano 1100 era marcada por um profundo senso de fé e pelo desejo pessoal de se atingir uma vida santificada. Foram esses sentimentos que levaram tantas pessoas a empreender uma guerra de 200 anos distribuída em sete longas campanhas de morte e conquista em nome do Príncipe da Paz. Para compreender o que foram as Cruzadas é preciso entender que a Idade Média foi uma época de grande violência e brutalidade e mesmo a religião estava impregnada por tais elementos. Demonstrar atitude diante do que muitos acreditavam ser uma agressão direta contra a fé cristã, era uma forma de encontrar o caminho da virtude. 

A Igreja também incentivou uma estranha mistura de fé e serviço militar que lançou uma multidão num furor de fanatismo e zelo. Milhares deixaram suas vidas e seguiram para o Oriente Médio, abandonaram o cotidiano e suas famílias seguindo um desejo de ver o mundo, conhecer a Terra Santa e libertá-la do jugo de inimigos da fé - os infiéis. Entre sucessos e fracassos eles mudaram o panorama da Idade Média para sempre.


Foi o Império Bizantino que indiretamente deu início às Cruzadas quando pediu ajuda à Roma para auxiliar os peregrinos que viajavam para a Terra Santa. Muitos tinham o desejo de conhecer os lugares descritos na Bíblia e trilhar as estradas onde Cristo e seus discípulos andaram. Na época, o Islamismo era uma religião em crescimento e o fortalecimento das nações muçulmanas ameaçava Bizâncio. Ao seu redor, os países que louvavam o profeta se tornavam cada vez mais poderosos. Eventualmente eles passaram a controlar as rotas de comércio e a maior parte da Terra Santa, inclusive a cidade de Jerusalém.

Começaram a surgir então rumores alarmantes sobre peregrinos sendo atacados por bandidos muçulmanos. O Patriarca de Bizâncio, Alexios I pediu auxílio ao Papa Urbano II para que ele intercedesse. O Papa viu nisso uma forma de estreitar os laços com a Igreja Católica Oriental que havia se separado em um Grande Cisma. Entretanto, os boatos eram enormemente exagerados: Muçulmanos estariam profanando a Terra Santa, peregrinos estariam sendo assassinados e mosteiros sendo destruídos. Pior ainda, os rumores davam conta de que os lugares santos estavam sendo controlados por infiéis que não respeitavam a importância do berço da cristandade. Essas narrativas se espalharam rapidamente e no ano de 1095, durante o Concílio de Clairmont, o Papa Urbano II fez um discurso emocionado que mudaria o curso da história.

Ele conclamou todas as pessoas da Cristandade a se manifestar imediatamente e fazer a sua parte no que ele chamava de Missão Divina. Era dever de todo cristão ajudar a libertar Jerusalém da presença dos infiéis e escorraçar os muçulmanos que controlavam o acesso a Terra Santa. O discurso do Papa inflamou os presentes e gritos começaram a ser ouvidos: "Deus Vult! Deus Vult!" (Deus Quer! Deus Quer!). As pessoas se comprometiam então a abraçar a Cruzada que devolveria a Terra Santa aos seus "donos de direito".

Embora o pedido do Papa tenha chegado a muitas pessoas e se espalhado por todos os cantos da Europa, à princípio houve pouca movimentação de nobres. Entretanto, em 1096, sob o comando de um monge chamado Pedro, o Eremita, uma multidão de 30 mil entusiasmados camponeses foi persuadida a abraçar a causa. Estas eram pessoas simples, ignorantes e sem qualquer perspectiva, que acreditavam estar sendo convocadas para a mais sagrada das missões. Acreditavam que Deus iria prover os recursos para sua viagem e que ao chegarem ao Mar Vermelho, as águas iriam se abrir e permitir a sua passagem. Amparados pela crença em milagres e profecias, eles deixaram campos e glebas e começaram a seguir para o leste.


No mesmo ano, mensageiros papais e religiosos de toda sorte começaram a visitar os reinos da Europa em busca de apoio para a causa religiosa. Alguns Reis e senhores de terras viram nessa aventura inusitada uma forma de expandir seus poderes e ganhar algum benefício junto da Igreja. Era bem sabido que os povos árabes eram ricos, pois tinham um comércio difundido em todo Mediterrâneo. Mercadores árabes contavam histórias sobre enormes cidades e riqueza sem igual. Além disso, a Igreja Católica disseminou a notícia de que aqueles que abraçassem a Cruz (ou seja, se tornassem cruzados) teriam liberdade total para agir conforme desejassem, pois seus pecados estariam perdoados aos olhos de Deus - visto que realizavam um trabalho divino.

Essa carta branca para agir livremente, sem temer o perigo da Danação Eterna, dava aos Cruzados que se juntassem ao movimento, o direito de roubar, pilhar e matar. Nada seria considerado pecado, já que eles estavam agindo em nome do Senhor. A oportunidade de enriquecer e saquear as cidades no caminho, era uma perspectiva boa demais para ser deixada de lado e esse foi o catalizador para a Cruzada ganhar mais e mais adeptos.  

A Primeira Cruzada foi um empreendimento tipicamente europeu. Da França, Normandia, Flandres e Lorena começaram a surgir cavalheiros dispostos a empreender a longa jornada até a Palestina. Eles ainda não tinham organização, mas já começavam a surgir as bases para o que ficaria conhecido como Ordens de Cavalaria - as Sociedades Medievais que se tornaram notórias no período. Os Cavaleiros viam a si próprios como libertadores virtuosos, agentes divinos com a força da civilização. Nem podiam imaginar que os muçulmanos, que eles chamavam de bárbaros e infiéis, eram consideravelmente mais avançados que eles, tendo inúmeras conquistas nos campos da ciência, medicina e conhecimento. O choque cultural entre esses povos foi marcado por estranheza, admiração e desconfiança. Quando os europeus retornaram de sua aventura trouxeram histórias sobre maravilhas e riquezas, sobre um mundo muito mais evoluído e avançado.  

Levaria três longos anos e incontáveis percalços até os cavaleiros chegarem a Jerusalém. A estrada seria pavimentada por guerra, pilhagem e morte. Por onde passavam, os cruzados deixavam um rastro de sangue e destruição que marcou o período com horríveis incidentes. Mas mesmo estes iriam empalidecer diante do que estava por vir. 


Enquanto isso, a Cruzada popular do monge Pedro, o Eremita chegou ao Mar Vermelho em 1099, depois de vagar pelo Leste Europeu como um bando de maltrapilhos. A tropa havia crescido, ganhando adeptos em cada reino que adentrava. Eles acreditavam poder atacar vilarejos, roubar o que precisavam e matar quem resistisse. Havia uma força superior que os absolvia, ou ao menos era o que dizia seu eloquente líder. Ao se aproximar do Mar Vermelho, acreditavam que poderiam cruzar facilmente, mas quando as águas não se abriram conforme esperado, tiveram de negociar com marinheiros e piratas. Muitos deles acabaram sendo enganados e terminaram seus dias escravizados em galés. Outros, que conseguiram cruzar para a margem oriental seguiram em frente como uma horda miserável e suja. Foram alvo fácil dos turcos seljúcidas, que haviam se estabelecido na região e que viram aquela multidão como uma força de invasão. Sua aventura terminou sem que conseguisse chegar a Jerusalém e pouco mais de 3 mil voltaram para casa.
  
A tropa mais bem preparada, composta por nobres cavaleiros e soldados profissionais convergiu de forma mais ordenada, ainda que tenham havido momentos de caos e saques. Eles atingiram os portões de Constantinopla, mas na Capital Imperial, os governantes ficaram tão chocados com a presença inesperada daquele exército que se negaram a recebê-los. Temiam com razão uma possível pilhagem se permitissem a eles entrar na sua bela cidade. Para agradá-los, cederam soldados, serviram comida e bebida à multidão e lhes indicaram o caminho que levava até Jerusalém.

Alguns meses depois, a tropa finalmente chegou ao seu destino na Cidade Santa. Os Cruzados mal podiam acreditar no que viam, assim como os habitantes da cidade que viviam em relativa paz e tranquilidade, respeitando as crenças uns dos outros. Era uma tropa considerável, formada por milhares de homens que haviam empreendido três anos de suas vidas nas árduas estradas da Idade Média. É preciso lembrar que viagens eram incrivelmente perigosas e que aquelas pessoas haviam passado por agruras durante sua jornada. Além disso, eles acreditavam estar adentrando uma nação inimiga.


O grosso do exército acampou nas colinas que cercam a cidade histórica e ficaram debatendo sobre como proceder em seguida. Depois que seu acesso foi negado os comandantes estavam divididos sobre o que fazer em seguida. Alguns temiam realizar um ataque direto a Jerusalém e danificar os lugares santos. Sua indecisão durou pouco! Um grupo de Cruzados liderados por sacerdotes realizou uma romaria em torno da cidade, gritando e rezando. Carregavam cruzes e queimavam incenso. O grupo atraiu a atenção de guardas que imaginavam se tratar de uma investida contra os muros. Uma das portas laterais se abriu e cavaleiros avançaram sobre o grupo causando um massacre. Era o pretexto necessário para a violência explodir.

Os Cruzados investiram de todos os lados, disparando flechas e pedras sobre os portões. Escadas e cordas foram lançadas para transpor as muralhas, enquanto de dentro os defensores disparavam contra a horda. As tentativas de romper as barreiras falharam já que a cidade demonstrava uma resistência ferrenha. 

Mas após cinco semanas de cerco, as defesas de Jerusalém começaram a fraquejar à medida que os recursos no interior da cidade se tornavam mais escassos. Um acordo permitiu que os Cruzados entrassem com a condição de respeitar a população local, mas de nada adiantou. Quando a tropa cristã adentrou os portões da Cidade Santa seguiu-se uma chacina vergonhosa com saques, incêndio, estupro e assassinato. Estima-se que algo em torno de 65.000 habitantes, em sua maioria mulheres e crianças de crença judia e muçulmana, tenham sido massacrados em um frenesi sanguinário. Templos e sinagogas arderam por dias, casas foram roubadas e tudo que podia ser transformado em saque mudou de mãos. 


Foi uma vitória terrível, sangrenta e desesperada, mas a Terra Santa enfim pertencia uma vez mais aos aos Cristãos.

Contudo, essa seria apenas a primeira experiência dos Cruzados no Oriente Médio e o domínio da Terra Santa mudaria de mãos várias outras vezes, como veremos na continuação dessa série.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Analisando cenários de Chamado de Cthulhu - Mister Corbitt (Mansions of Madness)


Há aventuras de Chamado de Cthulhu que se tornam clássicas por razões que vão além da vã filosofia. O que explica que um cenário simples como Mister Corbitt seja tão querido pelos fãs e jogado a tanto tempo, é difícil de explicar, mas não obstante, ele é um clássico.

A história, escrita por Michael DeWolfe, foi publicada na antologia de cenários Mansions of Madness, saindo originalmente no ano de 1990. Mister Corbitt é a primeira história de uma série de seis, e o início do que pode ser o encadeamento de uma mini campanha que trata de "casas assombradas" e/ou "lugares amaldiçoados". A proposta era muito boa, tão boa que recebeu uma reimpressão na sétima edição em 2020.

E nessa reimpressão encontramos novamente Mister Corbitt, reescrita, modernizada e recebendo uma nova arte, mapas e detalhes adicionais.

Vou ser sincero, essa aventura em especial nunca foi uma das minhas favoritas, em parte porque ela parece simples demais, mas principalmente porque o gancho que atrai os personagens para a investigação é um tanto quando forçado na minha opinião. O restante da aventura envolve a busca por provas de que o pacato vizinho de um dos PCs, o Mister Corbitt do título, pode esconder um terrível segredo e ser muito mais do que um viúvo solitário que gosta de cuidar de sua pequena horta.

Por achar o roteiro um tanto simplório eu nunca quis narrar essa aventura, e sempre a deixei de lado preferindo outras que tivessem uma proposta mais atraente. Mas recentemente eu decidi dar uma chance a Mister Corbitt, e conduzir a história no formato online. Pesou para essa decisão a melhoria na arte da história e algumas mudanças que a nova edição trouxe ao roteiro. E devo dizer, no fim das contas, o cenário correu melhor do que eu imaginava. Mister Corbitt é pura diversão na melhor tradição de Chamado de Cthulhu.


Nos próximos parágrafos eu vou falar da história em si, o que envolve revelar detalhes da trama e dar SPOILERS consideráveis. Portanto, se você pretende jogar essa história, melhor parar de ler nesse ponto para não estragar sua diversão. Se você, no entanto, pretende narrar Mister Corbitt, além de uma exposição dos elementos centrais da trama, você encontrará algumas sugestões que podem ser úteis. Como sempre, fica a critério do Guardião, usar o que quiser ou nada, a decisão final é sua.

Então, dados os devidos avisos, vamos falar de Mister Corbitt.

Mr. Corbitt é uma aventura relativamente simples, ideal para investigadores em início de carreira e até possivelmente servindo bem como a primeira investigação deles. Também é uma história que funciona maravilhosamente bem como one-shot, com o Guardião fornecendo os personagens prontos. Eu mestrei ela online, mas não acho que teria problemas em construir o ambiente para rodar ela presencial.

A história se passa na cidade de Boston, mas creio que o local pode ser alterado sem grandes problemas. Uma metrópole americana como Nova York ou Chicago funcionaria bem, mas com algum trabalho o Guardião pode situar em qualquer lugar. A data é 1920, mas novamente, com boa vontade ela pode facilmente ser adaptada para os dias atuais.  

A tema da história pode ser resumido em duas questões centrais: quem são as pessoas que vivem à nossa volta e que máscaras elas usam para ocultar quem realmente são?


Mister Corbitt envolve a suspeita que pesa sobre o vizinho de um dos PCs, um senhor de meia idade que vive na casa em frente. A primeira cena apresenta justamente o evento que dá inicio a tudo. Certa noite, um dos jogadores vê o Sr. Bernard Corbitt voltando para casa com um misterioso pacote que cai no chão revelando se tratar de um braço humano. Disfarçando, ele apanha o macabro fardo e entra na sua casa como se nada tivesse acontecido sem perceber que o investigador viu tudo.

É esse estranho incidente que motiva o investigador - e seus colegas, a colocar a rama em movimento o que levará à revelações bizarras sobre o Sr. Corbitt. A partir de então, os personagens iniciam uma vigília, observando os passos do vizinho, tentando antecipar suas ações e buscando descobrir detalhes sobre sua vida. Quem é ele? Qual o seu trabalho? O que aconteceu com sua esposa? Com quem ele está associado? Cada uma dessas questões, se respondida, resulta em pequenas pistas de que algo horrível está acontecendo naquela casa suburbana.

Nesse contexto, a história funciona bem. Ela é estranha e consegue manter o interesse dos jogadores, apesar (ou até quem sabe, por conta) do início inesperado. É claro, o Guardião terá de ter um pouco de jogo de cintura para interessar os personagens nessa investigação, afinal, não seria mais fácil simplesmente chamar a polícia e deixar a lei lidar com o caso? Bem, as coisas não são tão simples quanto parecem... o Sr. Corbitt é um pilar da comunidade, um sujeito respeitado, um vizinho acima de qualquer suspeita, que costuma oferecer os produtos de sua horta pela vizinhança. Ninguém acredita em suas atividades criminosas e menos ainda numa vida dupla. Mesmo a polícia não está disposta a acreditar em histórias fantasiosas sobre o sujeito. Portanto, provas são necessárias.

Apesar do início um tanto forçado, Mr. Corbitt se mostra um cenário bastante investigativo e repleto de interação. Os jogadores terão de fazer seu trabalho de campo, pesquisando em jornais e interrogando testemunhas na vizinhança que podem (ou não) oferecer informações valiosas. Cabe ao Guardião incentivar os jogadores a buscar as pistas, deixando a inevitável invasão da casa para o final.

Com uma história bem convincente e um vilão revelado na primeira cena, Mr. Corbitt é uma história que foge do lugar comum. As surpresas não estão na identidade do antagonista, mas na perversidade de suas ações. Há obviamente espaço para alguns clássicos de Chamado de Cthulhu: a casa assombrada que oculta um segredo medonho, o cultista devotado a uma divindade poderosa e um monstro realmente aterrorizante habitando o porão. A cena final, quando os investigadores finalmente tomarem a decisão de invadir a casa os levará a um embate bastante perigoso. Além disso, há um bocado de diversão se o grupo decidir explorar a estufa e o jardim da casa do Sr. Corbitt.


Ao narrar essa aventura eu imaginei ela como uma versão dos Mythos do filme Janela Indiscreta (Rear Window/1955) de Alfred Hitchcock. Não sei se a intenção do autor era essa, mas sem dúvida há alguns elementos que remetem a esse clássico do suspense. Eu sugiro ao Guardião assistir ao filme em busca de referências, nem que sejam visuais. No meu caso, quando mestrei esse cenário criei os investigadores usando os personagens do filme como inspiração direta.

Além disso também criei uma maneira de colocar a situação toda em dúvida e adicionar um elemento surreal na trama. Na minha versão, o personagem que vê a cena do braço caindo é justamente um investigador veterano que está se recuperando de um caso anterior. Além de ter perdido parte de sua sanidade, ele está sofrendo de um quadro que inclui alucinações, portanto ele mesmo não tem certeza do que realmente testemunhou ou se imaginou tudo. Essa dúvida foi bem interessante para frear os instintos dos investigadores de acusar Corbitt, ao menos até que eles fossem capazes de reunir as provas de sua culpa.

A parte final da história descamba para uma sequência de invasão na qual o grupo poderá encontrar algumas provas inequívocas de que algo muito ruim está acontecendo na casa. O grande risco reside no porão, o que não é nenhuma surpresa. Um confronto direto com a criatura que habita o porão irá oferecer enormes riscos, tanto para a sanidade quanto para a vida dos investigadores. Mas é um final empolgante que amarra muito bem a trama.

Eu recomendo essa aventura como uma divertida One-Shot. Ela também é excelente para introduzir novos jogadores ao universo de Chamado de Cthulhu.

PS - Ah sim, antes que alguém pergunte, aparentemente o nome Corbitt é uma mera coincidência e não tem nada a ver com o Walter Corbitt da aventura The Haunting (A Assombração). Imagino que o autor pretendia fazer uma homenagem usando o mesmo sobrenome do vilão daquela aventura clássica. Com certeza, a coincidência servirá para deixar os jogadores que jogarem ambos cenários com uma pulga atrás da orelha.

PPS - Conforme comentado, essa aventura foi narrada online e ela pode ser assistida no canal do Mundo tentacular no twitch. Eu sei, ela deveria ser um one-shot, mas está em três partes. Com bons jogadores, às vezes a coisa fica maior do que a gente desejava, mas o jogo foi divertido, como vocês podem atestar assistindo aos vídeos.

FICHA DO CENÁRIO 

MISTER CORBITT
por Michael DeWolfe

Livro Mansions of Madness

Elementos da Trama:

Investigação 3/5
Ação 2/5
Exploração 2/5
Mythos 3/5

Custo de Sanidade: Médio
Risco de Mortalidade: Médio
Estilo: Horror Lovecraftiano, Ambiente Urbano, Mistério, Suspense

Grau de Dificuldade para o Guardião: Simples
Duração Estimada: 4 a 6 horas
Número ideal de Jogadores: 4 ou 5

Tipo de Personagens: Qualquer ocupação

Local e Época: Boston, 1928



sábado, 2 de dezembro de 2023

Mãos Decepadas - A brutal prática dos Espólios de Guerra no Mundo Antigo


"Ao vencedor, os espólios".

Esse é um ditado aparentemente antigo que se refere ao fato de que os vitoriosos nas guerras e conflitos podem reclamar para si o que bem entender, afinal, eles venceram. Contudo, ao contrário do que se pensa; o adágio é bem mais recente e foi proclamado por um político norte-americano, o Senador de Nova York, William L. Marcy.  Ele cunhou o dizer no ano de 1828 ao se referir a uma campanha presidencial vencida por Andrew Jackson

Mas não importa quem disse primeiro ou em qual contexto, o sistema de "espólios" existe faz muito mais tempo, desde os primórdios da arte da guerra como uma justificativa de compensação para o vencedor. Enquanto os "espólios de guerra" em geral se referem a terras, propriedades, tesouros, armas e outras posses, eles, por vezes, podem assumir uma natureza bem mais grotesca. Não são poucos os povos e civilizações que consideravam as cabeças ou crânios dos inimigos derrotados como espólios legítimos. 

Os Astecas e Maias davam enorme importância a coleta de cabeças de inimigos conquistados que eram amarradas pelos cabelos nos cinturões dos guerreiros quando estes desfilavam vitoriosos. Os Pictos escoceses, celtas e gauleses também costumavam decapitar suas vítimas e mediam a capacidade de um guerreiro de acordo com a quantidade de crânios colecionados. Isso sem mencionar as tribos Maori do Pacífico Sul.

Mas não eram apenas as cabeças os itens desejados pelos conquistadores vitoriosos. Nas campanhas romanas no Norte da África, os legionários costumavam reclamar os órgãos genitais de seus inimigos.  Estes  eram embalsamado e vendidos no coração do Império por uma boa soma. Os Persas por sua vez eram famosos por tomar as orelhas dos inimigos as colocando em colares orgulhosamente vestidos em volta do pescoço. Dedos e narizes eram os troféus favoritos dos babilônios que os colocavam em pequenos sacos de couro usados em volta do pescoço. Os colonos americanos reclamavam os longos cabelos dos indígenas, ainda que os próprios nativos tenham sido associados à prática de arrancar o couro cabeludo no famoso ato de escalpelar. 

Quando se fala de espólios de guerra raramente essa é uma prática associada aos antigos egípcios, mas surpreendentemente foram eles os primeiros a adotá-la.


Recentemente uma escavação no noroeste do Egito desenterrou uma vasta e macabra coleção de mãos humanas. Os membros, cerca de dezessete, foram cuidadosamente embalsamadas com substâncias preservativas e guardadas em caixas de madeira, algumas delas cuidadosamente identificadas. Elas continham detalhes sobre o dono original e relatavam onde o novo dono as havia reclamado. Não por acaso, todas haviam sido obtidas em campos de batalha.

"Pela primeira vez, as mãos cortadas de 17 indivíduos foram analisadas osteologicamente. As caixas contendo as mãos haviam sido colocadas em três covas em um salão de fronte a um salão em Hyksos. O lugar, uma casa proeminente na atual Tell el-Dab‘a deve ter pertencido a alguém importante." detalha a arqueóloga Julia Gresky do Instituto Arqueológico Alemão de Berlim numa publicação na revista Scientific Reports.

As covas foram escavadas diante do pátio de entrada, num local de destaque. Os nobres que viviam em Hyksos na 15ª dinastia eram estrangeiros – alguns historiadores referiam-se a eles como invasores – que estabeleceram o seu reino no Delta do Nilo, e governaram o Baixo e Médio Egito. Eles eram conquistadores extremamente violentos que impunham sua vontade de forma brutal. Flávio Josefo, um historiador romano-judeu do século I dC, escreve que quando os hyksos foram expulsos do Egito, eles fundaram Jerusalém.

Em 2011, uma equipe de arqueólogos havia encontrado uma cova semelhante, mas essa descoberta recente mostra que a prática era bastante difundida entre a população. Manfred Bietak, diretor de projeto e campo da escavação, relatou que há indícios de que os nobres colecionavam esses troféus relacionados a suas campanhas militares. Quanto mais mãos de inimigo coletadas, maior a admiração de seus compatriotas. Relatos sugerem que as mãos, quando coletadas eram expostas, sendo pregadas pela palma no portão de entrada das casas como uma maneira de demonstrar as proezas realizadas pelo morador da propriedade.

O conteúdo das covas chama a atenção pela maneira como foram organizadas. A duas primeiras caixas continham uma mão humana cada, enquanto a terceira e maior continha os restos de 15 mãos. Todas as mãos eram direitas e é possível que as mãos guardadas em caixas exclusivas pertencessem a guerreiros famosos ou até governantes derrotados. Bietak suspeita que as mãos possam ter sido obtidas ao longo de um período de 40 anos que corresponde ao auge expansionista de Hyksos no Egito. 

"Nossa evidência é a mais antiga e a única evidência física. Cada poço representa uma cerimônia um ritual distinto."


A cerimônia a que Bietak se refere diz respeito aos "Espólios de guerra" sobre a qual os egípcios escreveram, e chamavam de "Ouro do Valor". O guerreiro triunfante teria o direito de vida e de morte sobre o conquistado e poderia exigir dele aquilo que desejasse. Um relato encontrado na parede do túmulo de Ahmosis, filho de Ibana, um egípcio que lutou numa campanha pelos hiksos, descreve a prática horrível.

“Na campanha eu lutei bravamente. Travei luta corpo a corpo, com espada e escudo. Da campanha eu trouxe a mão de um inimigo. Era um bravo oponente, de quem retirei o poder ao cortar sua mão e ofertá-la ao arauto do Rei". 

Em outras palavras, Ahmosis decepou a mão de um inimigo e a entregou ao arauto real, que em troca deu ouro ao soldado. Segundo a inscrição, o guerreiro posteriormente entregou mais três mãos e recebeu "ouro em dobro". Esta prática de cortar as mãos dos inimigos era considerada popular tanto entre os hiksos como entre os egípcios, mas só em 2011 foram encontradas provas que a apoiavam a prática. Por mais horrível que fosse a prática, os pesquisadores liderados por Julia Gresky encontraram detalhes mais terríveis quando conduziram novas análises dos restos mortais. O aspecto mais incomum das mãos decepadas foi a forma como foram colocadas nas covas.

Depois de remover quaisquer partes fixas do antebraço, as mãos eram colocadas em tábuas de madeira, pregadas nas faces palmares com os dedos bem abertos. Os dedos das mãos eram intencionalmente dispostos dessa forma, possivelmente como parte de um ritual. Os pesquisadores também determinaram que os ossos do carpo da fileira proximal, um conjunto de 8 pequenos ossos no pulso que conectam as mãos aos antebraços, foram encontrados intactos em 6 das mãos, mas nenhum fragmento de osso do antebraço foi encontrado. Isso indica que as mãos foram amputadas deliberadamente, cortando a cápsula articular e depois cortando os tendões que cruzam o pulso. 

Toda essa precisão parece indicar que quem perdeu o braço estava vivo quando isso aconteceu e quem cortou o fez com cuidado. Os restos mortais eram "macios e flexíveis", o que indica que as mãos foram tratadas quase imediatamente, antes do início do rigor mortis - provavelmente como parte de uma cerimônia ritual. As mãos pertenciam a homens e uma delas a uma mulher, o que, indica que entre os guerreiros conquistados haviam mulheres que também guerreavam. E mais, que ao menos uma delas, provou ser tão valorosa que sua mão foi considerada um prêmio à altura de um nobre de alta estirpe.


"A localização, o tratamento e possivelmente o posicionamento das mãos decepadas argumentam contra a hipótese da punição imposta pela lei como motivação para estes atos. Quando contextualizadas numa abordagem transdisciplinar das fontes arqueológicas e históricas, as evidências arqueológicas aqui apresentadas sugerem que as mãos decepadas foram oferecidas como troféus como parte de um evento público."

Tanto quanto é do conhecimento dos autores, os resultados apresentados neste artigo fornecem a primeira evidência bio-arqueológica direta da cerimónia do "ouro de honra" e contribuem significativamente para o debate sobre a reconstrução desta cerimónia. ”

As mãos nas covas são provas concretas da prática dos "Espólios de guerra" e do “Ouro de Honra” praticado pelos Hiksos da 15ª Dinastia do Egito. Depois de obter as mãos, os guerreiros recebiam ouro e os nobres aumentavam sua coleção. Esse era um claro aviso aos estrangeiros: de que o reino era vitorioso e que inimigos deveriam pensar duas vezes sobre o quanto valorizam suas mãos direitas.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

A Procissão Celestial de 1913 - O dia em que um inexplicável fenômeno astral foi visto nos céus


Os céus guardam muitos segredos.

Todos os tipos de coisas estranhas e inexplicáveis já foram observadas nos céus, fenômenos que nos deixam embasbacados sem reação, surpresos e até mesmo assombrados. Alguns mistérios são tão surpreendentes que resistem a passagem do tempo, entrando para a história como enigmas inescrutáveis que jamais foram convenientemente explicados. Um destes mistérios ocorreu no ano de 1913, envolvendo um show de luzes brilhantes que até hoje permanece sem explicação. 

Tudo começou no dia 9 de fevereiro de 1913, um pouco antes das nove da manhã. Algo muito esquisito foi visto à princípio sobre os céus do Canadá, Estados Unidos e o norte do Oceano Atlântico. Muitas pessoas acreditavam se tratar de um fenômeno meteórico de algum tipo, consistindo no avistamentos de uma verdadeira procissão de algo entre 40 e 60 globos de luz brilhante, movendo-se lentamente em uma trajetória perfeitamente organizada. Testemunhas afirmaram ainda que os objetos voadores ao passar velozmente provocaram um ruído de trovão e deixaram um risco no céu. Muitos relatos mencionavam que o movimento dos globos envolvia aceleração e desaceleração e evoluções atípicas. A estranha procissão demorou quase 29 minutos para cruzar os céus noturnos e pode ser observada em regiões remotas do Canadá em face do céu limpo. Na mesma data, testemunhas em outras partes do Continente americano também relataram o avistamento de globos similares, supostamente os mesmos objetos se deslocando em velocidades vertiginosas. 

Testemunhas nos Estados Unidos, Bermudas e Brasil também se apresentaram nos dias que se seguiram para relatar o que haviam visto. A área coberta pela misteriosa esquadrilha em seu voo, era de aproximadamente 11 mil quilômetros, talvez até mais (!!!)  Na época, muitas pessoas pensaram se tratar de um fenômeno celestial incomum e nada mais. A população das grandes cidades já estava familiarizada com eventos como chuvas de meteoros, mas a quantidade e duração dela foi surpreendente. O espetáculo de luzes foi, na ausência de outra palavra, singular. 

O evento acabou atraindo a atenção de um astrônomo que começou a buscar informações e realizar cálculos, tornando a coisa muito mais bizarra do que se poderia imaginar. 


A Procissão Celestial de 1913 poderia ter sido quase esquecida não fosse o Astrônomo canadense da Universidade de Toronto, o Professor Clarence A. Chant. Curiosamente ele não chegou a ver o fenômeno com seus próprios olhos, mas se dispôs a reunir e analisar centenas de relatos feitos por testemunhas que tiveram essa sorte. Chant concluiu que o incidente foi "algo sem paralelo na historia da observação dos céus". 

Uma das testemunhas, um certo Walter L. Haight, residente de Toronto, no Canadá, escreveu sobre o acontecimento:

"Na noite em questão, eu estava voltando de uma caminhada quando meu colega que ia junto, gritou: “Olhe! Olhe aquilo!" e imediatamente levantei a cabeça para avistar um grande globo luminoso no céu que parecia estar viajando muito devagar - tão lentamente que seu movimento despertou minha mais viva surpresa e admiração... não sabia o que podia ser aquilo. Enquanto meu olhar estava fixo no grande corpo, e justamente quando ele estava prestes a desaparecer de vista, meu companheiro gritou novamente: “Olha! Ali e ali! Tem mais deles!” e eu olhei para cima e vi um grupo inteiro de itens semelhantes cruzando os céus. Antes que eu pudesse me recuperar do espanto, um novo grupo de corpos menores surgiu... eu comparei na época, aquele desfile astral a uma formação de embarcações da marinha de guerra, onde um grande cruzador avança guarnecido por esquadrões de torpedeiros e fragatas menores."

Mas o relato de Haight, um experiente marinheiro, não seria o único sobre o incidente. Haveriam muitos, muitos outros. Alguns fizeram menção a faíscas e bolas de fogo espetaculares sendo disparadas pelos objetos, bem como um rastro deixado pela passagem dos objetos à medida que eles rasgavam a abóboda celeste. Um observador em Appin, Ontário, escreveu:

"Parecia um enorme meteoro viajando de noroeste a oeste, que, ao se aproximar, se dividiu em duas partes. A forma como se deslocava era incomum. Pareciam duas barras de material em chamas, uma seguindo a outra. Eles lançavam um fluxo constante de faíscas e, depois de passarem uma pela outra, dispararam bolas de fogo para a frente, que viajavam mais rapidamente que os corpos principais. Eles pareciam passar lentamente e ficaram à vista por cerca de cinco minutos. Imediatamente após seu desaparecimento, uma bola de fogo, que parecia uma grande estrela, passou pelo céu atrás deles. Esta bola deixou um risco que demorou quase 10 minutos para desaparecer".

A procissão também foi vista por navios em alto mar. Um desses relatos vem de W. W. Waddell, primeiro imediato do SS Newlands, que na época estava na costa de Recife, no Brasil. Ele escreveu em seu registro oficial sobre o fenômeno:

"Oito sinos, meia-noite. – Tinha acabado de passar pela ponte e estava prestes a me retirar do convés para ir para meu aposento quando meu olhar foi atraído por uma estrela cadente brilhante no céu ocidental. Esta viajava pelos céus a uma altura de cerca de vinte graus acima do horizonte. À medida que avançava, parecia lançar faíscas para todo lado como um foguete de fogos de artifício quando explode... Tive tempo de gritar para o segundo imediato, que havia me substituído na ponte, perguntando se ele tinha visto aquilo. De repente, uma chuva de estrelas do mesmo tipo apareceu na esteira da primeira, cada uma delas oscilando na mesma velocidade e mantendo distâncias regulares umas das outras, todas deixando um rastro de estrelas menores após sua passagem. O imediato e dois marinheiros também viram o estranho incidente, mas nenhum de nós conseguiu entender do que se tratava".


Relato após relatos como estes, vindos de inúmeras fontes, fizeram com que Clarence Chant buscasse informações sobre o estranho fenômeno visto sobre os céus do continente americano, de norte à sul. Um elemento comum em praticamente todos os testemunhos era de que a procissão descrevia um movimento em linha reta "em um trajeto perfeitamente horizontal com uma deliberação peculiar, como se fossem conduzidos de forma racional". Os objetos na maioria dos relatos também se moviam muito mais lentamente no céu do que os meteoros típicos, não tinham nenhum radiante ou ponto de origem claro, não mostravam sinais de descida em direção à Terra, além de manter uma formação perfeita. Para completar a estranheza, a Procissão durou um período de tempo incomumente longo e cobriu uma distância muito maior do que qualquer outra chuva de meteoros normal. 

Chant descreveria o evento em seu artigo para uma edição do Journal of the Royal Astronomical Society, com o título "Um Extraordinário Evento Meteórico". Ele escreveu na introdução de seu ensaio:

"Como todos sabemos, a maioria das estrelas cadentes são visíveis durante pouco tempo, e as mais brilhantes geralmente descem em direção à Terra, aparentemente (como observou um dos meus correspondentes) “com muita pressa para chegar ao seu destino”; entretanto no incidente em questão viu-se corpos movendo-se vagarosamente. Alguns relatam que pouco antes de desaparecer estes corpos explodiam, deixando para trás um rastro de estrelas e faíscas, marcadas em alguns casos por grandes estrondos. Outros corpos astrais menores também eram vistos, cruzando o céu em uma formação peculiar que atendia requisitos de distanciamento e velocidade incomuns para qualquer meteoro já observado. Avançavam no mesmo ritmo, em dois, três ou quatro pares, com rastros fluindo atrás de si. Todos percorriam o mesmo curso e se dirigiram ao mesmo ponto no céu sudeste. Gradualmente, os corpos foram ficando menores, até que os últimos não passavam de faíscas vermelhas, algumas das quais foram apagadas antes de chegarem ao seu destino. Vários relatam que no centro da grande procissão havia uma estrela maior em forma de globo brilhando mais que todas as outras, até que ela também desapareceu".

Para a maioria dos observadores, a característica mais marcante do fenômeno era justamente o movimento lento e majestoso dos corpos; complementado pela igualmente notável formação que mantinham. Muitos obviamente os compararam a uma esquadrilha de aviões, contudo não havia nada nem remotamente semelhante entre os veículos aéreos de 1913. Os aviadores e seus aparelhos rudimentares teriam de se modernizar muito, antes de serem capazes de voar de maneira tão ordeira. Outros, compararam a formação a grandes navios de guerra, acompanhados por navios menores de apoio. Alguns ainda pensaram que se assemelhavam a um trem de passageiros brilhantemente iluminado, viajando em seções e visto a uma distância de vários quilômetros. O vôo dos meteoros também foi comparado ao de um bando de gansos selvagens, a vários homens ou cavalos em corrida e a um cardume de peixes, assustados e disparando em uma única direção. Esses e muitos outros detalhes interessantes seriam transcritos em relatos feitos em diferentes partes.


Quanto ao número de objetos há grande controvérsia. A estimativa habitual é de 15 a 20, mas alguns dizem 60 ou 100, enquanto outros afirmaram ter visto centenas deles. Várias razões podem ser atribuídas à discrepância entre esses números. Aqueles que dão números pequenos provavelmente referem-se apenas aos corpos principais, e como algumas pessoas têm melhor visão do que outras, onde alguém veria um único corpo, outros viam vários deles. Aqueles que relatam os grandes números incluíam, sem dúvida, fragmentos dos corpos maiores.

Curiosamente, houve descrições de uma segunda chuva de meteoros apenas 5 horas após a inicial, embora a rotação natural da Terra não devesse permitir tal ocorrência. No dia seguinte também haveria um avistamento estranho em plena luz do dia, sobre o qual o Toronto Daily Star noticiou:

"Por volta das 14 horas, algumas testemunhas oculares avistaram objetos estranhos movendo-se sobre o lado leste e passando rumo ao sul. Eles não foram vistos com clareza suficiente para determinar sua natureza, mas não pareciam ser nuvens, nem pássaros, nem fumaça, e foi sugerido que, talvez, fossem aeronaves cruzando o céu sobre a cidade. Contudo estavam tão altas e se moviam de forma tão incomum que a suposição foi abandonada. Posteriormente, presumiu-se que eles poderiam ter sido meteoros movendo-se na mesma direção daqueles vistos na noite anterior."

Os objetos teriam sido vistos movendo-se primeiro de leste para o sul, depois retornando na outra direção antes de desaparecerem de vista, o que significa que seria impossível serem meteoros normais. Não se sabe se este incidente teve relação com o evento da noite anterior. 

Quando o artigo de Chant foi publicado, gerou um enorme interesse entre outros astrônomos e cientistas, muitos dos quais analisaram o assunto por conta própria e criaram várias teorias para explicar a ocorrência, incluindo que tinha sido apenas uma chuva de meteoros normal ou composta de múltiplos aglomerados de meteoritos. Ou ainda, que foi um evento natural causado por um corpo ou grupo de corpos que ficou temporariamente preso na órbita da Terra e depois se desintegrou. O próprio Chant finalmente chegou a essa conclusão: que havia sido um aglomerado de rocha espacial errante que orbitou o planeta até cair na atmosfera e se desintegrar em várias partes. Ele no entanto reservou a hipótese de que poderia ser "qualquer outra coisa" tamanha a estranheza do movimento e incomum disposição dos objetos que constituíam o incidente. 


Entretanto, alguns não estavam tão certos da explicação natural para o incidente. O famoso pesquisador do sobrenatural, o escritor Charles Fort, sugeriria em seu livro de 1923, Novas Terras, que o incidente ocorrido dez anos antes não era natural, mas possivelmente um avistamento em larga escala de veículos alienígenas desconhecidos. Alguns outros pesquisadores do fenômeno OVNI também sugeriram isso.

Fort acreditava que naves alienígenas haviam sido vistas ao longo dos séculos e que incontáveis relatos sobre a presença de tais veículos, guiados por mentes conscientes, faziam parte da história. Ele escreveu: "Luzes, objetos e formas incomuns são descritas por testemunhas ao longo de toda história humana. Desde a Estrela de Belém até os mais recentes incidentes avistados quase que diariamente, os céus parecem fervilhar com atividade incomum e que carece de uma explicação razoável além do mero convencimento de que são meteoros ou meteoritos. Há algo muito mais estranho nos céus, e até o momento, ninguém foi capaz de explicar sua natureza verdadeira".

Ele definiu o incidente de 1913 como um dos maiores, senão o maior e mais impressionantes evento do início do século - uma Procissão de Objetos voadores não identificados, avistados por milhares de testemunhas ao mesmo tempo.

No fim das contas, até os dias atuais, cientistas e ufólogos, pesquisadores e céticos se dividem sobre o que aconteceu naquele dia em especial. O incidente permanece como um grande mistério astronômico cuja explicação nos escapa. O que torna ainda mais difícil solucionar o incidente é que não foram tiradas fotografias e apenas alguns esboços do ocorrido foram feitos por testemunhas. Com isso, ficamos com nada além dos relatos de testemunhas coletados por Chant e pesquisadores subsequentes sobre o assunto deixando tudo no reino do debate e da especulação.

O que foi visto, talvez nunca saibamos ao certo... mas em todo caso, é importante continuar observando os céus em busca de respostas. 

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Cinema Tentacular - Quando Chega a Escuridão (When Evil Lurks) - Joia do Cinema Argentino de Terror


É inegável que o Cinema de Terror se beneficiou enormemente do diabo e da possessão demoníaca. Nas últimas décadas, um gênero a parte se formou ao redor do tema, influenciado enormemente pelo sucesso pioneiro do filme O Exorcista. A produção de 1973 não foi apenas um divisor de águas dos filmes de terror, recebendo um reconhecimento inédito para um filme do gênero, mas abriu espaço para dezenas - quem sabe até centenas de outros filmes com assunto similar. O inocente possuído por forças malignas, a personalidade subitamente alterada, pervertida por uma entidade invasora, tudo isso já foi explorado ad-nauseum.

A última tentativa de revisitar o tema é mais uma sequência da saga de Exorcista, com o subtítulo o Devoto. Para surpresa de absolutamente zero pessoas, foi um fracasso ao bater na mesma tecla de sempre.

Entretanto, quase que ao mesmo tempo, outro filme de possessão demoníaca roubou o foco e a atenção de críticos e público e é desse que eu prefiro falar.

Dirigido pelo argentino Demien Rugna, Quando Chega a Escuridão (no original "Cuando achega la Maldad" ou ainda When Evil Lurks em inglês) escapa da fórmula dos espíritos malignos se insinuando sobre crianças, e oferece uma noção bem distinta, apresentando uma força sobrenatural que se espalha como uma doença, contaminando com perversidade tudo o que toca. O conceito é uma mudança muitíssimo bem vinda.



Lançado pela pequena IFC Films a produção chegou a apenas algumas salas fora de seu país, mas o boca a boca começou a circular entre os fãs, atraindo um público considerável para um filme estrangeiro de pequeno orçamento. Rugna fez sua estreia no circuito internacional alguns anos atrás com o excelente Aterrorizados, que também criou burburinho entre os entusiastas do gênero. Guillermo del Toro inclusive esta produzindo uma versão americana do filme e sua sequência pelas mãos do diretor também já foi anunciada. Mas é o novo filme que está chamando a atenção, criando o que os críticos norte-americanos estão chamando de "Satanic Hispanic". E toda essa repercussão é mais do que merecida, o filme é ótimo! Tanto que muita gente está elegendo esta pequena joia do cinema argentino como o melhor filme de Terror do ano.

É para tanto? Vejamos...

A trama se inicia com sons noturnos alertando os protagonistas sobre algo muito errado acontecendo perto de casa. Tiros são ouvidos à distância e estes despertam os taciturnos irmãos Yazurlo, Pedro (Ezequiel Rodriguez) e Jimi (Demian Salomon) que vivem em uma propriedade rural lá nos cafundós da Argentina. Esperando até o amanhecer para investigar, eles fazem uma descoberta tétrica em uma floresta próxima – a parte  inferior de um cadáver, dividido ao meio. Ao redor do corpo mutilado descobrem evidências indicando que o sujeito era uma espécie de Exorcista contratado para expulsar alguma entidade hostil. Os dois ficam assustados, e começam a buscar notícias sobre possuídos na região onde vivem. Eventualmente isso os leva até um barraco habitado por Maria Elena (Isabel Quinteros) e seus dois filhos, um dos quais se encontra tomado pela entidade maligna. Uriel (interpretado por diferentes atores sob uma grande quantidade de maquiagem medonha) está confinado em seu quarto, inchado, coberto de pústulas, vazando fluidos nojentos. Ele está vivo, o suficiente para implorar: "Mate-me".


Aparentemente, a coisa já se arrasta há um ano e embora as autoridades locais tenham sido notificadas, ninguém fez nada para sanar a situação. O exorcista demorou demais para responder e quando veio não conseguiu cuidar do problema. E que problema! Os Yazurlos insistem com a polícia para agir, mas os policiais os ignoram sumariamente. Percebendo que de alguma forma terão que lidar com o problema sozinhos, os irmãos recrutam um fazendeiro vizinho, Ruiz (Luis Ziembrowski), cuja principal preocupação é com a queda no valor de sua propriedade. A ideia dele para lidar com a questão é simples: mover o possesso quase morto e desovar o "podre" (termo repetidamente usado para os possuídos) em algum lugar. À contra gosto, os irmãos topam arrastar o pobre diabo até a caminhonete e dirigir até uma área deserta e inóspita onde podem descartar a criatura. 

No início é difícil entender como funcionam as superstições locais sobre entidades diabólicas e o que elas representam, mas esse estranhamento ajuda a criar uma sensação esquisita que permeia o filme inteiro. Não se sabe se aquilo é mera superstição, folclore ou se os personagens acreditam nessas coisas. De uma forma ou de outra, há várias crenças e regras sobre como se deve lidar com um possesso, sendo que uma delas deixa claro que ele sob hipótese alguma ele deve ser morto, pois isso acaba espalhando a praga.     

Aparentemente, mover o "podre" também acaba sendo uma péssima ideia. O objetivo deles é simplesmente transferir o problema adiante. De qualquer forma, depois de terem dirigido o suficiente, os homens descobrem que sua carga desagradável se perdeu no caminho e que o problema continua. Coisas cada vez mais terríveis começam a acontecer ao seu redor e os irmãos decidem fugir o mais rápido possível para tentar escapar da mácula que liberaram na terra. Durante a fuga, os dois tentam avisar a ex-mulher de Pedro (Virginia Garofalo) e os filhos. A continuação da fuga eventualmente leva à contratação de outro exorcista, mas a essa altura, a força demoníaca pode estar em qualquer lugar habitando qualquer um, pois é capaz de reanimar cadáveres, controlar animais e manipular os vivos através de ilusões. 


As situações grotescas vão se acumulando umas sobre as outras em uma sucessão de cenas viscerais e extremamente sangrentas. E é aí que o filme se sobressai! O roteiro costura as cenas de horror de forma a encadear os sustos e tirar o espectador de sua zona de conforto. A coisa vai piorando, mais e mais até o gorefest final quando o paradeiro do possesso - e seu plano diabólico - são descobertos. 

"Quando chega a Escuridão" tem um desenvolvimento muito bem feito e em termos de escala, é bem mais ambicioso do que Aterrorizados, transferindo a ação para uma fronteira maior. Enquanto o primeiro se limitava a uma casa e bairro assombrados, aqui temos um território muito mais amplo. Outro mérito da história é que os objetivos da entidade permanecem obscuros, praticamente insondáveis aos mortais. Ele é o mal em estado puro, uma força de caos implacável que existe apenas para atormentar os vivos e fazer com que eles sejam pervertidos. Curiosamente, não se trata de algo que pode ser combatido por crenças ou rituais religiosos, mesmo o trabalho dos "exorcistas" se desprende de inclinação teológica. O engajamento se dá através de crendices e rumores - por exemplo, a regra de não usar luz elétrica pois o espírito surge nas sombras criadas por lâmpadas.

Acompanhar os personagens em sua fuga desesperada, tentando se distanciar da área de influência da entidade, é uma agonia. Onde quer que eles vão, a presença dessa sombra maldita já parece ter chegado, não poupando ninguém - nem estranhos, nem amigos, sequer parentes. Uma das virtudes do filme é ser imprevisível e se recusar a dar trégua aos protagonistas (e por tabela ao público). Apesar de se recusar a amarrar as pontas soltas ou mesmo explicar o que se passa, o roteiro não frustra as expectativas, abrindo o apetite para episódios futuros, onde essas preocupações provavelmente serão abordadas. Nesse ponto, "Quando espreita a escuridão" pode ser o ponta-pé inicial de uma nova franquia.


O elenco é afiado e sua a camisa com personagens frequentemente espinhosos e irritantes, sempre retratados de modo convincente, permitindo-nos engolir a insistência do roteiro de que quase todos ali aceitam a realidade de uma invasão demoníaca com pouco ceticismo ou protesto. A atmosfera ajuda a imprimir um ritmo que altera momentos de contemplação com outros de ação vertiginosa. Já os efeitos visuais, todos eles práticos, estão ali para auxiliar a violência e fazer com que ela pareça sempre chocante. Em termos de impacto, o filme possui duas ou três cenas de cair o queixo. Sério mesmo, uma delas me pegou de surpresa de tal forma que eu dei um pulo do sofá.

"Quando chega a escuridão" pode ser confuso e quase arbitrário em alguns momentos, mas inegavelmente é um conceito inovador. Ele introduz um elemento diferente aos filmes de possessão concedendo novidade e frescor onde antes reinava a mesmice estéril. É uma façanha que ninguém havia ousado tentar. Se vai ser o bastante para renovar o tema, é cedo para dizer, mas com certeza é uma viagem estimulante de pavor. 

Trailer:


Poster Oficial: