quinta-feira, 29 de junho de 2023

Terra de Gigantes - As antigas lendas sobre os Gigantes da Sicília


A história da Sicília, na Costa da Itália, sempre esteve ligada à lendas sobre gigantes mitológicos supostamente os primeiros habitantes da ilha. A crença local, profundamente enraizada no folclore siciliano menciona homens de enorme estatura que viviam no interior da ilha e que eram muito temidos pelos povos da península italiana. De certa forma foi o temor diante dos misteriosos gigantes que manteve a Sicília deserta por séculos. 

As lendas são recordadas de forma vibrante na procissão chamada "Passeggiata dei giganti", que significa literalmente "A Caminhada dos Gigantes". Este festival é celebrado na cidade de Messina todos os anos no dia 14 de agosto, em memória de dois gigantes conhecidos como Mata e Grifone. Duas imensas estátuas de madeira, com quase 8 metros de altura, representando Mata, uma bela mulher branca de cabelos dourados, e Grifone, um guerreiro sarraceno gigante de pele escura, são puxadas pelas ruas sobre rodas, acompanhadas por músicos e da batida incessante de tambores.

Existem opiniões divergentes sobre a origem do festival. A versão mais conhecida nos leva de volta no tempo para o ano 964 dC, quando Messina era o último baluarte no sul da Itália a resistir à ocupação árabe. Durante o cerco de Messina, o general mouro Hassan Ibn-Hammar, recebeu ordens para tomar a cidade e destruí-la, mas ele se apaixonou perdidamente por Mata, filha de um comerciante local. O comandante fez o possível para cortejar Mata, mas ela só concordou em casar com ele se o pretendente poupasse sua cidade. Ele concordou e Messina sobreviveu à guerra. Em seguida, ele mudou seu nome para Grifo e ficou conhecido como Grifone (que significa "o Grande Grifo"). Mata e Grifone tiveram muitos filhos e viveram felizes para sempre.

Por mais romântica que pareça essa história, provavelmente ela foi inventada em um período posterior para promover a harmonia comunitária e lançar uma pitada de romance sobre uma época especialmente violenta. A história da ocupação da Sicília é repleta de guerra, vinganças e chacinas, com narrativas sanguinolentas. Entretanto, é provável que Mata e Grifone sequer tenham existido e que as imagens sejam de outros personagens. 

As lendas sobre gigantes na Sicília são bastante antigas.

Muitos acreditam que os dois gigantes são na verdade representações dos verdadeiros fundadores da cidade de Messina. Eles representariam Malthea e Banxone, marido e mulher, que outrora exerciam sua tirania sobre os habitantes da Sicília. Segundo o folclore eles eram um casal de gigantes que exigiam um tributo anual dos habitantes da ilha. Caso não recebessem sua parte, ameaçavam destruir os vilarejos e matar os camponeses. Como não poderia deixar de ser, a história de Malthea e Banxone envolve uma boa dose de sangue. Em algum momento o povo oprimido da Sicília decidiu oferecer aos seus governantes colossais uma refeição cheia de veneno. Os gigantes comeram, mas logo perceberam que algo estava errado: tomados de uma dor de estômago que era superada apenas pela fúria, eles desceram sobre os vilarejos destruindo e matando todos em seu caminho. Felizmente, em algum momento o veneno fez efeito e os dois começaram a perder as forças. Foi a vez do povo então se vingar - e vingança siciliana sempre é algo feio de se ver. O casal de gigantes teriam sido apedrejados, mutilados e finalmente decapitados.  

Mas as lendas sobre gigantes na Sicília são ainda mais antigas. Desde pelo menos o século V aC, os poetas gregos acreditavam que os antigos habitantes da Sicília não eram apenas gigantes, mas um tipo específico de gigante muito mais terrível que os demais. Eles seriam membros da lendária raça de monstros de um olho só, os Ciclopes. 

Na Odisseia, Homero escreveu que os ciclopes viviam em cavernas e levavam uma vida perversa, não plantando nada mas devorando o que conseguissem agarrar com suas mãos ávidas. Eram carnívoros terríveis, adeptos do canibalismo que massacravam qualquer visitante indesejado que pisasse em sua ilha. Arremessavam pedregulhos à distância prodigiosa, esperando atingir embarcações que estivessem navegando pela costa. Um petardo que acertasse em cheio uma nau deixaria os náufragos à mercê dos monstros. 

Um dos gigantes mais famosos da antiguidade era Polifemo - não por acaso, o maior deles. O ciclope conseguiu capturar Odisseu e seus companheiros e os manteve aprisionados dentro de sua caverna, com a intenção de devorar dois deles a cada dia. Mas Odisseu conseguiu escapar após cegar o único olho de Polifemo.

A principal característica dos ciclopes; seu olho único é uma característica extremamente bizarra. Na natureza não há nenhum exemplo de animal dotado de apenas um olho. Curiosamente não há gigantes caolhos nas lendas de nenhuma outra cultura. É possível que os marinheiros fenícios, cuja mitologia influenciou os poetas gregos, tenham contado histórias sobre gigantes de um olho só. Os fenícios foram pioneiros em viagens pelo Mediterrâneo e exploraram a maioria das ilhas antes de qualquer outro povo. Como forma de desestimular outras nações a fazer o mesmo, eles inventavam inúmeras lendas sobre monstros, criaturas e seres aterrorizantes. Os rumores sobre gigantes ferozes habitando ilhas podia fazer com que mercadores rivais evitassem tais lugares.

Uma alegada nascara mortuaria de um ciclope 

Outra possibilidade é que os ciclopes podiam pintar um "terceiro olho" proeminente na testa. No imaginário antigo o terceiro olho era o símbolo de uma consciência mística das coisas além da visão comum. Há representações em que os ciclopes aparecem com um olho adicional e não como caolhos. Os deuses hindus, como Shiva, eram geralmente representados com um terceiro olho proeminente, enquanto muitos sacerdotes pintam o "tilak", uma marca alongada na testa, simbolizando o terceiro olho. Parece razoável supor que os ciclopes seguissem um costume semelhante. Ou talvez, os ciclopes realmente tivessem um terceiro olho que funcionasse bem, além dos olhos normais, o que não é impossível, já que eles eram de origem divina; filhos de Poseidon, o Deus do Mar.

Uma escultura romana datada do século primeiro aC retrata em detalhes a cena da "Cegueira de Polifemo". Na obra é possível ver a diferença do tamanho entre os heróis e o monstro. Odisseu e seus homens eram descritos como altos (o que na época significava ter 1,70 m de altura). Já o Ciclope Polifemo tinha ao menos 6 metros de altura segundo as versões romanas. Não era incomum que os monstros - Gigantes e Titãs, fossem descritas como criaturas muito altas. Os gregos e romanos associavam a estatura diretamente com a força, quanto mais alto um homem (ou criatura) mais poderosa ela seria. 

Por essa razão os gigantes eram tão temidos pelos povos da antiguidade. Um monstro com vários metros de altura era visto como uma ameaça considerável, capaz de superar muitos homens ao mesmo tempo. Historiadores gregos e romanos eram unânimes em relatar que gigantes estavam entre as criaturas mais perigosas (e temidas) no mundo antigo.

Filistas, um cronista cretense do século II aC escreveu que "não há nada mais assustador do que a ira de um gigante" visto que "uma única criatura dessa espécie poderia aniquilar um exército inteiro". Os romanos acreditavam que o Norte da Europa era o lar de tais criaturas, e que os povos nórdicos que residiam naquelas latitudes (muito altos) eram descendentes desses seres. Já os gregos acreditavam que havia gigantes no Norte da África, na Península Ibérica e é claro, nas ilhas do Mediterrâneo. E a Sicília era um dos lugares onde tais monstros podiam ser encontrados mais habitualmente. 


Polifemo sendo cegado por Odisseu

Outra razão para a Sicília atrair tantas suspeitas quanto a presença de gigantes se encontra em sua própria geografia. Existem muitas cavernas artificiais na Sicília que são tão grandes que não há uma explicação simples sobre quem as construiu ou com que finalidade. A chamada "Orelha de Dionísio" é uma caverna de calcário escavada nos arredores de Siracusa, na Sicília. Ela tem incríveis 23 metros de altura e se estende por 65 metros até terminar em um penhasco. Horizontalmente, dobra-se em forma aproximada de S, enquanto verticalmente afunila no topo como uma lágrima. A acústica dentro da caverna é muito boa, fazendo até mesmo um pequeno som ecoar várias vezes. O nome "Orelha de Dionísio" foi cunhado pelo pintor Michelangelo que visitou o lugar e o batizou em função do formato lembrando uma orelha. Qualquer pessoa que visita o lugar se pergunta por que seria feito tamanho esforço para construir uma caverna tão alta, sem nenhum propósito aparente. 

Desde a antiguidade exploradores cogitavam se aquela caverna não teria servido de abrigo para gigantes quando eles, conforme as lendas, emergiram de seus covis subterrâneos sob o Monte Etna. De fato, essa caverna era muito temida e evitada pelos primeiros habitantes que chegaram à Sicília e lá se estabeleceram do século VI dC em diante. Acreditavam que gigantes ainda espreitassem nas profundezas. Também se mencionava que o lugar estava sempre coalhado de energias místicas e que bruxos costumavam se reunir na escuridão para seus rituais.    
 
Outra caverna de dimensões gigantescas também na Sicília é a Grutta di Gurfa que foi escavada em um período muito remoto - alguns acreditam que no quinto milênio antes de Cristo. As cavernas Gurfa têm várias salas esculpidas em dois níveis: um primeiro andar e um andar superior. No centro está uma enorme sala oval que conecta tudo. Ela tem uma cúpula de 16 metros de altura e é iluminada por um óculo acima e uma janela a sudoeste através do qual penetra a luz do sol. É claramente uma caverna escavada na rocha e deve ter demandado uma notável mão de obra para ser concluída. Tais cavernas com tetos anormalmente altos e escavadas por mãos humanas teriam sido moldadas pelas mãos de gigantes como acreditavam os antigos?

Há ainda um outro elemento que relaciona a Sicília com a presença de gigantes em seu interior: a existência de lendárias ossadas humanas.

Tommaso Fazello um frade dominiano e historiador nascido na Sicília foi o primeiro a pesquisar as origens da ilha. Ele escreveu um tratado publicado em Palermo no ano de 1558 no qual descrevia meticulosamente muitos dos locais antigos da Sicília – como Akrai, Selinus, Heraclea Minoa. Nesses lugares, segundo ele, haviam cemitérios que receberam os restos de gigantes, os primeiros habitantes da Sicilia. 

O tamanho relativo de um gigante

Fazello relatava a descoberta de uma caverna aos pés do Monte Eryx, onde exploradores encontraram os restos de um gigante ao lado de um cajado do tamanho de um mastro de navio. A ossada do indivíduo em questão deveria ter pelo menos 5 metros de altura e seu enorme crânio tinha uma única órbita ocular, o que serviu para convencer as testemunhas que se tratava de um ciclope. Os ossos teriam sido levados para Messina e expostos no Palácio Ducale até 1430 quando foram roubados por saqueadores árabes. Dos restos originais sobraram apenas três dentes que foram guardados pelo magistrado da cidade de Eryx. Os dentes, quatro vezes maiores do que os dentes humanos normais, fizeram Fazello considerar que o corpo pertencia a ninguém menos do que o lendário Polifemo.

Relatos semelhantes de esqueletos gigantes encontrados na Sicília estão presentes na obra de vários outros escritores medievais. Rovello Cassio, um cronista napolitano de 1610 menciona que cavernas em Akrai possuíam nichos escavados na rocha sólida onde foram depositados cadáveres tão grandes que seus descobridores ficaram chocados. Eram, para todos os efeitos, gigantes com mais de 5 metros de altura, muitos deles com um único olho. Diferente da ossada de Eryx, estes gigantes estavam mumificados, com os corpos em excelente estado de conservação. Infelizmente as peças foram levadas para Palermo e deixadas em um ambiente que terminou por deteriorá-las de tal forma que os restos acabaram sendo destruídos.   

Mas não apenas historiadores italianos mencionavam os ossos gigantes. O explorador inglês R. S. Kirby escreveu em seu livro intitulado "Wonderful and Scientific Museum" em 1804 as seguintes notas: 

"Em 1516 Johannes Franciforte, Conde de Mazarino, tendo feito cavar uma cova, numa planície a cerca de uma milha da aldeia de que era senhor, encontrou num sepulcro, o corpo de um gigante medindo incríveis 7 metros de altura. Pouco tempo depois, em 1547, Paul Leontino, examinando o solo no sopé de uma montanha nos arredores de Palermo, em preparação para a escavação de uma mina de salitre, encontrou o corpo de um gigante de 6 metros."

Ele também dizia que em uma pequena aldeia entre Siracusa e Leôncio, um grande número de sepulcros e esqueletos gigantescos foram descobertos, e que muitos outros semelhantes foram encontrados perto da antiga aldeia de Hicara, que os sicilianos chamam de Carini, em uma imensa caverna no sopé da montanha.

A descoberta de uma ossada de gigante.

É fascinante – e um tanto inacreditável – ler sobre a descoberta de esqueletos medindo fenomenais 6 metros de comprimento. Mais incrível ainda é saber que R.S. Kirby foi um famoso cartógrafo muito respeitado pelas seus cálculos precisos e cartas náuticas. Teria um genuíno explorador inventado histórias sobre gigantes ou ele realmente viu esses ossos misteriosos?

Curiosamente Kirby não foi o único estrangeiro a apontar evidências sobre a presença de gigantes na Sicília. O naturalista, matemático e cosmólogo francês Conde de Buffon, em seu livro “História Natural: Geral e Particular" publicado em 1780 descreve o seguinte:

"Não resta dúvidas de que a Sicília no passado foi habitada por uma raça de homens que devem ser considerados como gigantes de enorme magnitude (...) eram indivíduos, a maioria do sexo masculino com mais de 5 metros de altura, alguns medindo até 8 metros. As encostas montanhosas da ilha estão pontilhadas por antigas cavernas escavadas na época desses indivíduos. Tais localidades serviram como mausoléus por gerações e lá foram sepultados incontáveis gigantes."

O Conde de Buffon também foi responsável por uma publicação no Journale Scientifico em que atestava que na Alta Calábria, região do extremo sul da Itália, separada da Sicília pelo estreito de Messina, também haviam indícios de mausoléus comportando gigantes. Em 1665, foi escavado nos jardins do Signior de Tiviolo, um esqueleto humano com 5,4 metros, sendo que o crânio tinha 86 centímetros de comprimento. 

Esses relatos estão alinhados com descobertas semelhantes de esqueletos gigantes relatadas por vários historiadores greco-romanos. Philostratus escreveu sobre um esqueleto gigante que tinha 6,4 metros e jazia em um afloramento do promontório em Sigeion. Phlegon de Tralles descreveu que dois esqueletos gigantes foram encontrados dentro de seus caixões pelos cartagineses, um dos quais com 4,4 metros e outro 5,8 metros de altura. 

O terror dos ciclopes

Será possível que todos esses escritores estivessem enganados ou simplesmente inventando coisas? Se por um lado as descrições são completas e repletas de detalhes, por outro, não há quaisquer provas físicas da existência dessas ossadas. 

Alguns arqueólogos e antropólogos modernos acreditam que os historiadores antigos provavelmente confundiram os ossos de animais extintos do Pleistoceno, como os mamutes e preguiças gigantes com os de gigantes lendários - uma hipótese interessante visto que há ossadas de elefantes e animais pré-históricos em toda ilha. Havia duas espécies de elefantes na Sicília, ambas descendentes dos gigantescos elefantes de presas retas da era do Pleistoceno, com mais de 4,5 metros de altura, que migraram para a Sicília há mais de 500.000 anos. As espécies menores de elefantes, chamadas Palaeoloxodon falconeri, mediam apenas 3 metros de altura, enquanto o espécime maiores chamados Palaeoloxodon mnaidriensis tinha uma altura média estimada de 2,80 metro. Esses espécies de elefantes foram extintos na Sicília muito antes da chegada dos primeiros homens ao local mas seus ossos estavam dispersos em todo canto.

Contudo, parece improvável que um homem da Idade Média, ainda mais um estudioso pudesse confundir a ossada de um elefante com a de um homem, mas esse pode muito bem ser o caso.  

Esqueleto de elefante achado na Sicília 

O crânio de um elefante se assemelha ao crânio de um ciclope.

Embora os restos esqueléticos de gigantes de 6 metros de altura não tenham sido recuperados na era moderna da Sicília ou do mundo greco-romano, um desses esqueletos apareceu no ano de 1934. A notícia desta descoberta foi publicada em vários jornais em todo o mundo. Um deles foi o British Courier de Manchester que afirmou:

"Palermo. 9 de agosto: A descoberta de um esqueleto que se acredita ser de um gigante pré-histórico, medindo 6,3 metros, foi relatada em Garise, na porção central da Sicília. O esqueleto foi encontrado por um fazendeiro, que notou um osso parcialmente enterrado na margem do rio na fazenda de sua propriedade. As tentativas de desalojar o esqueleto com a ajuda de outros aldeões falharam. Um trator foi necessário para erguer os restos, com o fêmur medindo 1,8 metros de comprimento. O esqueleto foi levado ao palácio de governo em Garise onde aguarda por um exame pericial. O distrito é conhecido pela riqueza de relíquias fossilizadas de uma era anterior. A última descoberta importante foi feita há três anos, quando foram encontrados os restos de um mamífero pré-histórico gigante."

Esta descoberta extremamente significativa está intimamente alinhada aos relatados de Fazellus, o Conde de Buffon e os historiadores greco-romanos. O relatório descreve o esqueleto como o de um “gigante”, o que não é surpreendente, pois a Sicília conservou suas lendas sobre gigantes até o século XX. Infelizmente, porém, não ouvimos mais nada sobre esse esqueleto em particular depois que os geólogos colocaram as mãos nele. Certamente, uma descoberta tão notável deveria ter recebido ampla cobertura da mídia, mas ela simplesmente desapareceu. O esqueleto parece ter sido levado para algum local desconhecido, e posteriormente o assunto foi sendo esquecido. Isso levanta a suspeita de que, pelo menos algumas partes dos restos mortais encontrados no passado possam também ter sido encontrados para em seguida desaparecerem sem deixar rastro. Ou pior ainda, poderiam ter acabado em coleções particulares longe do público em geral.

Com tudo isso, seria pedir demais devotar alguma credibilidade às histórias sobre Gigantes na Sicília, ou tudo não passa de simples lenda? Teria existido uma raça de gigantes vivendo na ilha? E se sim, o que teria acontecido com eles? É provável que essas lendas não sejam nada além de mero folclore, mas novamente ficamos atormentados com aquela minúscula pergunta: E se houver um fundo de verdade em algum lugar?

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Os Cinco Desaparecidos na Costa da Safira - O Misterioso Caso Bermagui


Em 8 de outubro de 1880, um grupo de cinco homens partiu em um pequeno veleiro de Bermagui, em Nova Gales do Sul, Austrália para uma viagem pela costa. A bordo estava um geólogo do Departamento de Minas de Nova Gales do Sul chamado Lamont Young, seu assistente Maximillian Schneider, o proprietário do barco Thomas Towers e dois amigos de Towers, William Lloyd e Daniel Casey. 

O objetivo da excursão era seguir ao longo do litoral norte de Bermagui, uma área isolada e pouco povoada e fazer um levantamento de minas de ouro que supostamente existiriam lá. Era uma viagem comum, como outras tantas realizadas pelo mesmo grupo no ano anterior. Contudo, esta foi uma expedição da qual nenhum dos homens retornaria, deixando um mistério desconcertante que nunca foi resolvido e que perdura até os dias atuais.

Três dias após a partida, em 11 de outubro, o veleiro foi visto parado na água com apenas uma pessoa nele. A testemunha acenou e tentou entrar em contato com a figura solitária no tombadilho, mas ela aparentemente a ignorou. Esta foi a última vez que alguém viu oficialmente um membro da tripulação. Na tarde seguinte, por volta das 16h30, um fazendeiro local chamado William Johnston cavalgava ao longo da costa de Mutton Fish Point, a cerca de 15 quilômetros de Bermagui, quando notou algo estranho na praia. Ele não conseguia distinguir bem o que era, mas podia ver que havia algo grande que refletia a luz do sol. Curioso, ele desceu do cavalo e saiu para investigar do que se tratava. Ao se aproximar, pôde ver que o objeto era um bote branco de madeira sem os remos. Mais adiante, preso nas rochas além da arrebentação com as velas amarradas encontrava-se o veleiro. 

Imaginando que alguém poderia precisar de ajuda ele foi até o barco para uma inspeção. A revista mostrou que não restava ninguém à bordo, então Johnston decidiu cavalgar para tentar encontrar alguém e relatar sobre essa estranha descoberta. Johnston foi até a casa de outro fazendeiro chamado Albert Read, com quem ele voltaria ao barco abandonado para dar uma olhada. Eles encontraram a bordo cinco sacolas cheias de roupas, uma bússola de bolso, vários sacos de batatas, um cachimbo e papéis com o timbre do Departamento de Minas e o nome Lamont Young. Decidiram avisar o diretor dos campos de ouro Henry Keightley, patrão de Young, que chegou ao local acompanhado do policial John Berry. O grupo descobriu que alguém havia feito buracos no casco do barco por dentro e que a popa estava cheia de pedras pesadas, parecendo indicar que a embarcação havia sido danificada intencionalmente. A âncora e as cordas da popa estavam ausentes, mas como tudo no barco estava seco, ele obviamente não havia inundado o bastante para afundar. A popa também estava estranhamente cheia de travesseiros, cobertores e roupas por razões desconhecidas, e uma boa quantidade de vômito foi encontrada no tombadilho. Uma bala deflagrada foi encontrada na parte de baixo e também uma misteriosa garrafa azul com um líquido, que acabou sendo identificado como óleo copaíba usado como bálsamo. Perto da praia, foram encontrados os restos de uma fogueira e de uma refeição, bem como um pouco de comida e três botões de camisa, mas além disso e do que foi encontrado no barco, não havia mais nenhuma pista. 

O veleiro desaparecido era similar ao da foto com dois mastros.

Logo se soube que se tratava do barco pertencente ao Capitão Towers e que ele havia sido alugado por Young. Soube-se também que ele transportava cinco homens, mas o que aconteceu com eles era um mistério. Ninguém tinha a menor ideia de seu paradeiro. Não havia sinal evidente de luta, nenhum sangue encontrado à bordo, e tudo era bastante desconcertante. Várias buscas foram realizadas e uma recompensa generosa foi oferecida por informações que levassem a descoberta dos homens, mas não houve quaisquer evidências do que havia acontecido com desaparecidos. 

Nesse ínterim, a história foi se tornando cada vez maior, despertando curiosidade geral. Ela foi transmitida através de todo Império Britânico, e a baía onde o barco foi encontrado ganhou o apelido adequado de Mystery Bay (Baía do Mistério), nome que mantém até hoje. 

Muitas teorias circularam na época, hipóteses levantadas por moradores das cercanias. Uma delas era que os homens haviam abandonado o barco na costa devido a alguma ameaça premente. Entretanto, não se registrou tempestade ou vendaval naqueles dias. De fato, eram condições ideais para navegação no litoral. Além disso, se esse fosse o caso, parecia improvável que a embarcação pudesse ter flutuado sem tripulação pelas muitas rochas da área onde terminou sendo encontrada quase intacta. Alguém teria de ter navegado por aquela área insalubre. Além disso, o bote na praia demonstrava que a tripulação havia desembarcado, mas não explicava para onde teriam ido em seguida.

Outra ideia é que eles teriam sido vítimas de pirataria, mas não havia evidências claras que apontassem para tal coisa. A falta de sinais de luta ou violência depunham contra essa teoria, já que os prospectores costumavam carregar armas de fogo para se proteger de criminosos interessados em suas descobertas de metais preciosos. Um revólver calibre 41, que mais tarde foi identificado como pertencente a Maximillian Schneider havia sido deixado em uma gaveta, mas outras armas haviam sumido. A teoria de pirataria encontrava um grande obstáculo já que os ladrões teriam levado objetos de valor como relógios, documentos e uma corrente de ouro que foram abandonadas na cabine. Além disso, as autoridades locais garantiram que uma operação contra pirataria ocorrida apenas duas semanas antes do desaparecimento havia debandado os criminosos locais.

Lamont Young era um jovem e promissor geólogo australiano

Alguns cogitaram que o grupo poderia ter descoberto algum veio de ouro e que em algum momento se desentendeu à respeito de informar ou não a descoberta. Prospecção era um negócio arriscado que exigia sigilo dos envolvidos. Se um deles tivesse tentado esconder tal descoberta, isso poderia justificar assassinato. Contudo a medida que o caso ganhou repercussão, cartazes com o nome e o rosto dos desaparecidos foram divulgados em toda Austrália e ninguém viu qualquer um dos envolvidos.  

Na ausência de qualquer evidência, algumas alegações e suposições bizarras começaram a pipocar.

Alguns moradores locais afirmavam que na véspera do desaparecimento estranhas luzes foram vistas nos céus, bem como um clarão monumental que iluminou a madrugada do dia 10 com uma luz descrita como "um clarão branco que vinha do céu". Algumas testemunhas também mencionaram um estranho ruído de explosão se originando no céu sem que ninguém fosse capaz de explicar do que se tratava.

Outra teoria estranha é que a embarcação poderia ter sido vítima do ataque de um Bunyip, uma criatura do folclore australiano. O Bunyip (cujo nome em dialeto aborígene significa "demônio" ou "espírito maligno") é um monstro do tamanho de um boi que habita pântanos, charcos e o vasto billabong australiano. Sendo uma criatura aquática, o Bunyip tende a atacar embarcações que invadem o seu território, afundando e matando as pessoas que tem o azar de cruzar o seu caminho. Segunda a crença, a criatura se alimenta de carne humana e constitui um enorme perigo. 

Para aqueles que mencionam o fato de não haver sinais de violência à bordo, os defensores dessa bizarra teoria afirmavam que o Bunyip possuía vários poderes sobrenaturais, sendo o mais conhecido um grito medonho que afeta as vítimas, paralisando-as e impedindo que elas se movam. Com isso, a criatura se aproxima para recolher as vítimas sem que elas tenham chance de reação. 

O Bunyip em uma representação atual.

Lendas sobre o Bunyip são muito antigas e remontam aos primeiros colonos que chegaram à Austrália e que tiveram contato com aborígenes. A região específica de Nova Gales do Sul é uma das mais ricas em histórias sobre a misteriosa criatura e a Costa de Safira um dos supostos habitats desses seres. Os aborígenes possuem várias histórias desconcertantes sobre o encontro com as criaturas. Segundo eles, os Bunyips são difíceis de serem vistos uma vez que costumam se esconder sob a água ou em cavernas submarinas.

A mídia fez uma cobertura sensacionalista do caso e passou a inventar histórias cada vez mais bizarras para tentar explicar o que teria acontecido. Houve um artigo de notícias que apareceu em uma edição de agosto de 1888 do Bega Gazette, com o seguinte conteúdo:

"Embora as autoridades policiais tenham mantido o assunto em segredo, aborígenes e colonos da região mencionaram que os desaparecidos na Costa de Bermagui, teriam sido atacados por um ou mais Bunyip. Sons apavorantes de uma criatura desconhecida foram ouvidos na madrugada do dia 9, véspera dos desaparecimentos. O ruído foi descrito como um som agudo e estranho varando a madrugada. O som de tiros e de gritos também teriam sido ouvidos por aborígenes. Autoridades encontraram misteriosos rastros, supostamente deixados pela elusiva criatura na praia próximo de um acampamento improvisado usado pelos desaparecidos. A polícia de Nova Gales do sul contratou guias aborígenes para auxiliar na busca pelas vítimas, mas até o momento nem mesmo os experientes mateiros tiveram sucesso em achar seu covil. A procura continua". 

Outra notícia falsa publicada foi uma reportagem do jornal Melbourne Argus que afirmava que uma jaqueta manchada de sangue pertencente a Young havia sido encontrada na praia. A pista seria o primeiro indício de violência relacionado ao caso, mas tudo não passou de simples boato. 

Outra pista estranha surgiu alguns meses depois, quando um homem chamado William Tait afirmou ter sido visitado pelo fantasma de Young, que lhe contou ter sido assassinado e que seu corpo foi lançado na água. O fantasma teria dado a localização precisa de seus restos; perto de um toco preto 50 metros acima da marca d'água em meio a pedras. A polícia, desesperada para que alguma coisa acontecesse, deu de ombros e verificou de qualquer maneira, mas não encontrou nenhum toco, nenhuma pedra e nenhum corpo. O tal fantasma supostamente foi visto por pelo menos mais meia dúzia de pessoas que reconheceram por fotos se tratar de Lamont Young. 

O litoral da Costa de Safira possui várias praias rochosas em sua extensão.

Infelizmente, o paradeiro da tripulação desaparecida em Mystery Bay jamais foi determinado. 

Há aqueles que acreditam em um trágico acidente, em crime, abdução alienígena e no envolvimento de uma criatura bizarra, mas nada capaz de apontar para qualquer direção foi levantado. O caso persiste como um dos maiores mistérios da história da Austrália, tendo ganhado fama ao longo dos anos com o título de "Mistério Bermagui", sendo debatido e investigado por detetives amadores até hoje. 

O que aconteceu com os cinco homens desaparecidos e o que todos esses rumores bizarros significam? Poderia haver algo sobrenatural ou inesperado nesse incidente? Ninguém realmente sabe, e ele continua sendo um caso incrivelmente misterioso que muito provavelmente jamais encontrará uma solução satisfatória.

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Corpo Seco - Adaptando monstros do Folclore brasileiro aos Mythos de Cthulhu


A crença popular diz que não há há pecado que não possa ser perdoado. Mas o que acontece quando o indivíduo é tomado por tamanha obstinação e teimosia que não deseja perdão e não enxerga suas faltas como pecados mortais.

Segundo o mesmo conjunto de crenças enraizadas no imaginário popular, uma pessoa que comete pecados horríveis em vida e que morre sem deles se arrepender pode ser amaldiçoada pela eternidade. Surge assim uma coisa que não está morta, mas que também não está inteiramente viva, uma entidade de maldade total que se arrasta pelos cantos escuros, charcos alagados e bosques fechados em busca de vítimas para aplacar suas vontades profanas. Eles são chamados de Corpo Seco, pois o nome se encaixa perfeitamente na forma amoral que esses mortos vivos assumem.

São criaturas movidas por fortes emoções conservados após a morte. O ódio é o sentimento predominante que alimenta essas criaturas detestáveis; ele queima como uma fogueira voraz consumindo suas almas atormentadas. O Corpo Seco é sempre rancoroso, furioso e violento em suas interações com os vivos. Por esse motivo, não é possível barganhar ou negociar com eles - tudo o que querem, tudo o que desejam, é sufocar os vivos.

A lenda é conhecida nos estados de Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, São Paulo e no nordeste do Brasil, mas com algumas diferenças. Há lugares em que a transgressão cometida pelo Corpo Seco está ligada a um pecado de natureza religiosa, como por exemplo não honrar uma promessa feita a um Santo de devoção. Em outros casos, o candidato a Corpo Seco assume essa condição após trair amigos, a esposa ou os próprios filhos, abandonando-os ou deixando-os propositalmente em más condições. Aquele que abandona uma criança para morrer de fome ou que ignora as privações de sua esposa pode voltar como tal monstruosidade.


Seja lá qual motivo enseja a criação do Corpo Seco, ele continua nutrindo seu rancor ao longo de sua existência nefasta. Isso acontece por que o Corpo Seco tem a si mesmo como um injustiçado: ele não acha que é merecedor de sua punição e como resposta a essa "injustiça" ataca quem estiver ao seu alcance, como se estes, e não ele próprio, fossem os catalizadores de sua tragédia.

Diz ainda a lenda, muito difundida pelo interior do Brasil que o Corpo Seco não é aceito nem por Deus e nem pelo Diabo. Incapaz de ascender ao Paraíso e negado de descer às profundezas do Inferno ele permanece na Terra. Um ser maldito por definição, nem mesmo o próprio solo que recebe os vermes deseja servir de leito para o Corpo Seco. A terra o expele como se sentisse nojo de seu toque abjeto. Como resultado, o Corpo Seco não encontra descanso e meramente vaga sem destino por onde seus passos vacilantes o carregarem.

Ele é ativo somente à noite, visto que aproveita a escuridão para ocultar sua presença. Raramente é visto em cidades ou vilarejos uma vez que a sua aparência é impossível de ser disfarçada. Durante as horas do dia, busca guarita em poços, nas ruínas de casebres ou sob uma árvore onde fica caído como se fosse um cadáver. Esse aliás é um dos seus truques, fingir ser um cadáver abandonado para que alguém se aproxime o suficiente e permita que ele agarre o incauto. O Corpo Seco é matreiro e pode se valer dessa estratégia usando um anel, um colar ou qualquer objeto de valor para atrair uma vítima para perto. O Corpo Seco pode permanecer imóvel por dias esperando que alguém passe pelo local onde ele escolhe se deitar. Ele é extremamente paciente e nada lhe trás mais prazer do que imaginar alguém caindo em sua armadilha.


O Corpo Seco não busca por uma vítima específica visto que odeia qualquer pessoa ou ser vivo. Geralmente são incapazes de falar, mas há indivíduos que conseguem repetir uma única palavra ou sentença com uma voz vazia e sepulcral. O Corpo Seco não se alimenta de suas vítimas, seu ímpeto por matar é um ato de egoísmo perverso. Depois de assassinar alguém ele simplesmente segue adiante, sem qualquer satisfação ou compleição.

Essa é uma monstruosidade do além-vida e como tal encarna as características típicas dos Mortos-Vivos. Ele não se difere de um cadáver estropiado, com a pele e músculos esticados sobre os ossos amarelados. Ao se mover, as juntas estalam e rangem e ele dá passos vacilantes como se lhe faltasse convicção. Não há qualquer resquício de sangue em seu corpo, as veias estão secas e mesmo ferido, nada irá verter do cadáver esturricado. Há um estranho brilho nas órbitas vazias onde estiveram seus olhos, um brilho de pura maldade. Ao contrário da crendice, eles não são putrefatos e não emitem o fedor característico da campa sepulcral. Tampouco atraem nuvens de insetos. Ao longo de sua existência deplorável o Corpo Seco vai perdendo as roupas até que restem apenas alguns trapos. Cabelos e unhas, no entanto, continuam crescendo e se tornam compridos, bem como os dentes que se arreganham num esgar medonho à medida que os lábios rescendem.

O Corpo Seco se vale de furtividade e surpresa para atacar. Enquanto espera por uma vítima, por vezes ao longo de dias, ele planeja como irá perseguir um alvo que por ventura escapa de sua investida inicial. Não sendo especialmente ágil ou rápido, o monstro tenta aterrorizar a vítima fazendo com que ela seja incapaz de fugir. O cadáver ambulante usa então suas garras afiadas ou as presas para matar, rasgando a garganta da vítimas. Em alguns lugares ele é chamado de "Unhudo" por conta das garras que crescem sem parar.

Destruir um Corpo Seco não é tarefa simples, visto que são resistentes a armas comuns e não registram ferimentos. Um bala disparada simplesmente os atravessa e uma facada abre um buraco em sua pele sem grandes resultados. O fogo é obviamente a arma mais eficiente contra essas abominações que gritam em desespero enquanto as chamas os consomem.


Como um Monstro do Mythos:

É possível que o Corpo Seco seja o resultado de algum experimento místico horrivelmente mau sucedido.

Essas criaturas são malditas e portanto podem ter sido criadas deliberadamente através de poderosos feitiços (similares aos que criam zumbis). Também existe a possibilidade de que os Corpos Secos sejam o resultado de um feitiço de Ressurreição executado com alguma falha. O Necronomicon, contém o perigoso feitiço que devolve a vida aos mortos e que permite aos esquecidos caminhar novamente como se vivos estivessem. Contudo o tomo maligno alerta que para resultados satisfatórios as proporções dos assim chamados Sais Primordiais sejam respeitadas. Qualquer erro nessa dosagem, seja na mistura dos ingredientes ou no preparo dos elementos alquímicos pode resultar em um espécime imperfeito. É de se imaginar que os Corpos Secos possam ser exatamente esse resultado falho.

Outra hipótese é que o Corpo Seco seja um tipo de Morto-Vivo criado pelo exaurimento da energia vital de uma pessoa por alguma entidade do Mythos. Não são poucas as abominações do Mythos que se alimentam de seres vivos e que deles tiram sustento. Atlach-Nacha, Tsathogua e Glaaki são Grandes Antigos que se alimentam da energia de seres humanos. Uma vez sofrendo esse tipo de obliteração, quem sabe o tipo de energia malévola que permeia os restos e que pode animá-los uma vez mais.

Finalmente, o nauseante Culto de Mordiggian, uma divindade pálida ligada a Morte, possui sanções que recaem sobre seguidores que falham em seus deveres ou renegam seu patrono. A escravidão como morto-vivo é uma das punições mais temidas entre os devotos. É possível que a lenda do indivíduo que falha em cumprir suas promessas tenha sido adaptada à partir de algum cultista que não foi capaz de cumprir seus votos sagrados para com essa entidade.

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Mesa Tentacular - A Necrópole no Diversão Offline 2023


Ainda tratando do Diversão Off-Line 2023, rolou no evento minha tradicional Mesa Tentacular de Chamado de Cthulhu.

Desde a primeira edição, eu mantenho a tradição de levar ao evento ao menos uma mesa de demonstração do meu RPG favorito.

A Editora New Order, responsável por Chamado de Cthulhu em terras brasileiras como sempre, forneceu o espaço em seu stand para que eu pudesse arrancar um pouco de horror, sangue e sanidade dos interessados.

E foi uma mesa pra lá de animada e disputada!

É gratificante ter na mesa jogadores de primeira viagem, que conhecem pouco (ou quase nada!) das regras e ambientação, mas que querem mergulhar no universo dos Mythos com a peculiar curiosidade dos incautos. O que posso dizer? Além de vieram ao lugar certo!

Foi ótimo, e se dessa experiência inicial resultar interesse pelo jogo, tanto melhor! Mais um para o culto que cresce a cada dia, em algum lugar lá nas profundezasd o Grande Cthulhu agita os seus tentáculos ansioso.

O cenário que escolhi para a ocasião foi A Necrópole, uma aventura curta que se encaixa muito bem no gênero PULP. Ela envolve os membros de uma pequena Expedição no Egito em pleno ano de 1920. O grupo interessado em obter fama, glória e riqueza está colecionando fracassos consecutivos, incapaz de localizar uma tumba no Vale dos Reis. Perto de declarar o fim de sua escavação, um guia se aproxima com uma proposta que parece boa demais para ser verdade: "acompanhá-lo até o deserto, onde seu mestre tem uma irrecusável proposta a fazer".

E esse é o trampolim que dá início a uma exploração na tumba esquecida em que possivelmente repousam os restos de um dos mais obscuros Faraós do Egito, o lendário Nephren-Ka. O que o grupo encontrará lá dentro, além de perigo e horror, marcará a vida de todos - ao menos daqueles que conseguirem escapar da Necrópole com vida.

Esse cenário foi adaptado do material original contido no suplemento Portais para o Terror (cuja resenha pode ser lida no link https://mundotentacular.blogspot.com/2020/05/gateways-to-terror.html).

Originalmente trata-se de uma aventura simples e "direta ao ponto" para ser resolvida em pouco mais de uma hora de jogo. Dei uma temperada na história, inclui uma introdução diferente em que os investigadores são atraídos para o deserto onde recebem uma oferta de um arqueólogo local. Também inclui alguns detalhes adicionais quanto a Tumba, entre os quais algumas salas adicionais e a identidade de seu dono. Finalmente, como se tratava d eum cenário one-shot, nada mais justo que aumentar o nível da dificuldade e incluir alguns perigos a mais.

O resultado? Diversão rápida, aventuresca e mortal!

Aqui estão algumas fotos de como foi o jogo.

Ah sim, eu aproveitei a ocasião para me vestir de acordo, sei que o modelo não é lá essas coisas, mas eu fiquei orgulhoso do traje de explorador que improvisei. Sem mais delongas...


 

Uma vez que o "Traje de Exploração" (que é muito diferente de "fantasia") foi criado em menos de uma semana, acho que funcionou bem demais. Ainda mais se considerar que foi tudo improvisado. A calça era uma dessas calças bags dos anos 90, o lenço a parte de baixo de um pijama velho e a camisa uma que eu não usava fazia anos.


E é claro, eu tive que sentar no trono da New Order para a foto protocolar.


Sem mencionar que ainda deu tempo de caçar, abater e empalhar um espécime de Homem do Cordel Encantado (Homo cordelicus encantatus).


A gente consegue cada troféu nesses encontros de RPG...

Mas, as fotos da mesa.

MATERIAL E PROPS:


O material da aventura, com alguns props, as fichas de personagens e imagens para ilustrar a exploração nas profundezas da Tumba de Nephren-Ka.



Como sempre, um diário mostra o caminho em Chamado de Cthulhu

FOTOS DA MESA:


Pessoal se divertindo durante a exploração da tumba.



E a tradicional fotografia final com o placar da sessão. Quem está na frente ajoelhado, é que morreu, desapareceu ou enlouqueceu. Ao meu lado é quem saiu vivo e relativamente bem.

Bom foi isso...

Mais uma tarde de diversão, rolando dados na dileta companhia dos Mythos de Cthulhu.

Nos vemos no Diversão off Line 2024.

sábado, 17 de junho de 2023

Diversão Off-Line 2023 - Como foi esse ano o evento de RPG/Boardgames


Na semana que passou (10 e 11 de junho) tivemos o tão aguardado Diversão Off-Line (DoffL) São Paulo 2023.

O Evento Geek é uma verdadeira celebração da Cultura Nerd, cedendo um espaço já tradicional para os amantes de RPG e Boardgames. Já na sua Oitava Edição, o evento já pode dizer que tem uma casa para chamar de sua em São Paulo. O excelente Espaço do Pró-Magno é um imenso centro de Convenções na capital paulista com acesso fácil e instalações de primeira. Um verdadeiro achado!

Esse ano o DoffL mirou alto e acertou em cheio! O Evento estava maior, mais confortável e não por acaso, atraiu muito mais gente do que qualquer outra edição. Foram dois dias de muita jogatina, descontração, bate-papo e celebração entre os fãs de RPG e Boards.




Com o espaço ampliado tomando todo primeiro andar do centro de convenções, foi bem mais tranquilo andar pelo evento sem tropeçar em outras pessoas. A inevitável peregrinação pelos stands e pelas mesas de jogo foi bem mais tranquila do que ano passado. Graças ao espaço adicional não teve atropelo. Outro ponto muito favorável é que a entrada foi muito mais fácil e ligeira! A organização deu um show de presteza e garantiu que as filas andassem e todo mundo estivesse rápido dentro do evento. Não houve tempo a perder!

Uma vez no interior havia três "ruas" delimitadas pela inteligente disposição de stands dos expositores. Eu gostei muito da maneira que eles foram distribuídos, os maiores na parte central e no fundo, com stands menores nas extremidades. Os espaços de jogo ficavam dentro dos stands com fartura de mesas e cadeiras para quem quisesse participar. Cada empresa que alugou o espaço tratou de sua decoração para promover produtos e todas se esmeraram em atrair o público. Ainda me incomoda que os preços em alguns expositores seja rigorosamente o mesmo que em lojas ou na internet, mas talvez isso esteja mudando. Encontrei material com desconto em alguns lugares e pude levar para casa alguns belos troféus.

Outro ponto alto foi a presença de Convidados Internacionais, o que sempre é uma ótima pedida para os fãs. Conhecer autores e game-designers, topar com eles, fazer aquela tietagem básica e obter autógrafos é uma atração à parte. Esse ano tivemos Tom Vasel, responsável pelo Podcast The Dice Tower, a lenda do design de boardgames, Rainer Knizia, criador de mais de 700 títulos e o autor de RPG Kenneth Hite, que escreveu Rastro de Cthulhu, Night´s Black Agents e a quinta edição de Vampire, entre outros títulos importantes.




É muito interessante assistir as palestras desses criadores e descobrir o quão acessíveis e simpáticos com os fãs eles podem ser. Em geral não sou um grande fã de palestras, pois elas tomam um bom tempo do evento, mas dessa vez valeu a pena acompanhar os painéis que foram oferecidos. Eu conversei brevemente com Knizia e Vasel e bati um papo bem mais longo com o Hite que é um dos meus autores favoritos. Além de pegar o autógrafo dele em alguns livros, deu tempo de falar sobre o material dele, futuros projetos e sobre como encontrar espaço no mercado.

No que diz respeito a Boardgames, não faltou oportunidade de examinar, jogar e conhecer as últimas novidades. As principais empresas nacionais de Boards marcaram presença e ofereceram um espaço amigável para quem quisesse fazer um test-drive do que havia de mais interessante. É impressionante constatar como esse hobbie cresceu e se desenvolveu nos últimos anos, reclamando um espaço cada vez maior do evento. O próprio Knizia elogiou a quantidade e a empolgação dos adeptos, afirmando que o evento foi muito maior do que ele imaginava.

Havia um espaço reservado para quem está se aventurando na produção de material usando impressora 3D e que trabalha com a pintura de miniaturas. Outro grupo quer está crescendo à olhos vistos. Aliás, ali perto tinha um cenário de Warhammer 40 K que foi responsável por um número elevado de queixos caindo e olhos saltando durante o evento.




Achei bastante interessante também o surgimento de todo um mercado de acessórios para Boardgames que podem ser adquiridos para "turbinar" o material convencional de jogo. Esse é um filão que está sendo muito bem explorado e que estou acompanhando o crescimento com interesse. Você pode adquirir esses kits que renovam a experiência de jogo. Digno de nota também é o espaço fornecido para desenvolvedores independentes que desejam apresentar as suas criações e se engajar no mundo do design de jogos. Essa é uma oportunidade de ouro para quem está começando, algo que não tem preço!

No que diz respeito a RPG, o evento reuniu as maiores editoras nacionais e forneceu não apenas material de venda, mas um espaço onde os fãs podiam encontrar amigos e colegas de longa data e trocar ideias. E isso é bom demais! Como fã de RPG, é sempre bom encontrar autores, editores, podcasters, bloggers e toda a galera responsável por manter a comunidade viva e ativa.

Eu passei a maior parte do evento conversando com colegas que normalmente encontro apenas online, e essa cara a cara é excelente para a troca de informações. Não apenas para saber o que estão jogando, mas também no que estão trabalhando e dedicando seu tempo de jogo. E vou te dizer, quando rpgista se encontra tem assunto para mais uns 10 dias de evento!




Eu consegui jogar uma mesa de RPG que estava sendo apresentado e assisti duas outras que estavam muito bacanas, parabéns aos mestres envolvidos. Também narrei a minha tradicional aventura de Chamado de Cthulhu, que será o foco de uma próxima postagem aqui no blog. A chance de mestrar para um público diferente e pessoas que você conhece ali, na hora (e que muitas vezes que não conhecem o sistema ou ambientação) é um ótimo teste para verificar se nossas habilidades narrativas ainda estão afiadas. Adoro essa chance e fico feliz que ainda tenhamos mesas de demonstração nos eventos.

Esse ano a mala voltou cheia, aproveitei umas belas promoções nos stands e comprei alguns livros que já estava de olho fazia um tempo e que por diferentes motivos ainda não tinha na prateleira. Aliás, fazia tempo que não adicionava tanta coisa na coleção. Vou ter muito o que ler nos próximos meses! Uma das únicas coisas de que sinto falta nesses eventos é que não tem mais a feirinha de usados, aquilo era uma delícia! Fica a dica para uma futura edição. A gente encontrava verdadeiras preciosidades garimpando nas caixas.

Ironicamente, o único ponto negativo do Diversão Off-Line é que quando o evento termina fica uma sensação amarga de ir embora e se despedir de todo mundo. Isso sem falar na longa espera pelo próximo, no ano que vem. Mas a experiência de ter participado é maravilhosa e como sempre, reitero que, aqueles que nunca foram a um evento desse porte, que tentem vir no próximo. Eu sei, nem sempre é fácil arranjar tempo e conciliar com as obrigações, sem mencionar o lado financeiro da coisa, mas no fim vocês não irão se arrepender!

Que venham as próximas edições do Diversão Off-Line.

Nós que aqui estamos por vós, aguardamos!

quarta-feira, 14 de junho de 2023

A Casa, o Ator, o Culto e o Terror - Uma incrível história de Casa Assombrada e Fantasmas


Alguns lugares neste mundo parecem ser uma fonte inesgotável para o Paranormal.

São verdadeiros mananciais de Atividade Sobrenatural, gerando rumores duradores que através do tempo crescem como uma verdadeira bola de neve. Um destes lugares insalubres é o foco de nossa pequena exploração aos recessos profundos do Terror.

O ano era 1932 e o bem sucedido ator teatral Ian Davison estava farto dos palcos e holofotes. Ele era uma celebridade em Londres, conhecido e laureado como um dos maiores artistas de seu tempo e um dos maiores dramaturgos vivos. Entretanto, o estresse do trabalho estava ficando demais para ele. Davison estava cansado da carreira, dos contratos e da sua agitada vida social... em resumo, ele queria se distanciar de tudo e de todos. Para tanto, começou a contemplar a possibilidade de ter uma bela e tranquila casa isolada no campo. Acima de qualquer outra coisa, ele desejava ficar longe da cidade grande e das pressões constantes do teatro. Estabelecer uma sintonia com a natureza era algo com que ele sempre sonhou, para tanto, buscou uma propriedade na verdejante paisagem de Kent, onde planejava se aposentar. Ele conseguiu encontrar um lugar, mas suas esperanças de uma casa dos sonhos estavam prestes a se transformar em um pesadelo cercado por fenômenos sobrenaturais estranhos e incidentes aterrorizantes.

A propriedade que Davison adquiriu e onde decidiu se estabelecer era chamada Branden Hall.

O lugar, no entanto, demandava muitas obras e manutenção. A Mansão havia sido erguida há mais de 400 anos e ficava numa área isolada e selvagem coberta de mato. Ninguém habitava ali há décadas e o cenário era de completo abandono. Os amigos de Davison acharam que ele havia enlouquecido, contudo ele garantia que a Casa oferecia tudo aquilo que ele desejava e que torná-la habitável era parte da terapia que ele almejava. A estrutura também sinalizava com um grande desafio. Haviam tábuas podres, paredes desgastadas e um telhado com enormes goteiras. Não havia instalações elétricas ou de água e tudo ali era antigo e impróprio para a habitação humana. Os salões estavam cobertos de lixo e detritos, enquanto os quartos eram o lar de enormes ratos e insetos.

Ainda assim, Davison conseguia ver além daquela aparência decrépita de ruína. Na sua visão, Branden Hall ainda mostrava sinais fugazes de seu passado opulento e luxuoso, quando a mansão havia recebido a nata da sociedade de Kent em festas que entraram para a história local. Nos salões iluminados por lampiões haviam acontecido recitais, soirées e bailes. Nos jardins iluminados por tochas desfilaram indivíduos ilustres e carruagens despejaram visitantes maravilhados com os arredores. Branden Hall era famosa pelas suas belezas e o artista desejava trazer tudo aquilo de volta à tona - com pompa e circunstância.


Mas não seria tarefa simples; demandaria muito trabalho e gastos elevados. Felizmente, o ator tinha recursos suficientes e tempo para operar a transformação que almejava. Davison contratou empreiteiros e estes realizaram as obras preliminares que permitiram que ele se mudasse para o lugar que pretendia consertar, mas logo ele descobriria que ervas daninhas e ratos eram a menor de suas preocupações.

Quase imediatamente após se estabelecer, Davison experimentou várias esquisitices e anomalias bizarras que à princípio ele tentou relativizar. Um dos primeiros acontecimentos inexplicáveis foram as insistentes batidas nas paredes e janelas enquanto ele tentava dormir. Ele vasculhava a sala e olhava pelas janelas, mas nunca conseguia encontrar nenhuma explicação para aquelas batidas secas que ressoavam no meio da madrugada. Seu empreiteiro chefe explicou que podia ser o assentamento da velha casa ou apenas o vento e que eventualmente isso iria cessar. Entretanto, ao invés de diminuir os ruídos misteriosos apenas ganharam em intensidade, progredindo para sons de arranhar, estrondos e o que soava como passos fortes nas escadas, embora não houvesse mais ninguém na casa.

Em certa ocasião, Davison relatou o som do que parecia ser alguém correndo no pátio, seguido de um estrondo tão forte que a casa estremeceu. Pensando que o telhado havia desabado, ele foi ver o que havia acontecido, mas não encontrou nenhum sinal de dano ou qualquer coisa errada. Ele também passou a ouvir coisas mais ameaçadoras à noite: o som de respiração pesada ou ofegante, rosnados selvagens e até gritos, e muitas vezes tinha a impressão inabalável de estar sendo observado. Pior ainda era a sensação de que sua energia estava sendo drenada de seu corpo. Como se algo ali em Branden Hall estivesse se alimentando de suas forças, deixando-o em um estado cada vez mais de fadiga letárgica.

Davison tentava afastar conceitos absurdos sobre assombrações como meras superstições, mas logo ficou claro que ele não era o único incomodado pelos incidentes bizarros na Propriedade. Visitantes, empregados e hóspedes também relatavam ouvir os ruídos e experimentavam fenômenos estranhos. Alguns afirmaram ter pesadelos incrivelmente assustadores após dormir nas dependências, a maioria deles envolvendo estrangulamento e assassinato. Havia uma sala em particular que se dizia estar especialmente imbuída de algum tipo de energia paranormal sinistra. Este aposento, embora não parecesse diferente dos demais, sofreria flutuações extremas de temperatura, às vezes indo de um frio congelante a um calor escaldante em minutos, não importando a estação, e ninguém conseguia ficar na sala muito tempo. Um visitante que lá esteve, acabou perdendo os sentidos, tendo de ser levado para fora. Mais tarde ele contou que sentiu uma força invisível, como se mãos estivessem agarrando sua garganta e apertando com força.

Amigos próximos de Davison também diziam que um dos quartos era especialmente estranho. Nele, o sono não vinha facilmente, pois dizia-se que sopros espectrais, sussurros e odores nauseantes brotavam do nada. Também haviam supostas mãos gélidas que tocavam e empurravam qualquer um tolo o suficiente para tentar dormir naquele aposento. isso sem mencionar os relatos de mordidas que deixavam marcas horríveis na pele. Este quarto viria a ser conhecida como o "depósito", porque era apenas para isso que ele serviria, para o armazenamento de objetos, tão inadequado era para uma habitação real. E mesmo as caixas colocadas ali dentro teimavam em cair e de despedaçar.


Outras salas também tinham uma violenta atividade paranormal. Uma grande sala no andar térreo apresentava misteriosas marcas de pés descalços no assoalho empoeirado e de garras na madeira ou nos móveis que tombavam por conta própria. Esta sala também tinha o hábito de fazer as pessoas desmaiarem sem motivo aparente. O irmão de Davison, que havia vindo passar alguns dias em sua companhia sofreu um desses desmaios espontâneos e teve de ser levado às pressas para um hospital. Ele não se recordava do que havia ocasionado o desmaio, mas sentia que mãos espectrais apertavam seu pescoço. Um médico atônito apontou para marcas semelhantes a dedos na garganta do sujeito que se negou a voltar a Branden Hall e suplicou ao irmão que deixasse aquele lugar maldito o quanto antes.

Os fenômenos continuaram por algum tempo, mas as coisas estavam prestes a progredir para algo ainda mais assustador com o surgimento de aparições. Uma delas era de uma mulher de aparência desamparada em um vestido cinza, que vagava e parecia estar procurando por algo. Aparentemente alheia ao fato de que estava sendo observada, ela desapareceria no ar se alguém tentasse interagir com ela. Essa aparição em particular parecia deixar o ar espesso com desânimo ao seu redor, a ponto de aqueles que a viam serem tomados por uma tristeza repentina e irracional. O fantasma da Mulher Cinzenta (como ficou conhecida) não era, contudo, o único a espreitar pelos corredores sombrios. Havia também um homenzinho feio e atarracado que andava de um lado para o outro e parecia preocupado com alguma coisa e se irritava com facilidade. O sujeito por vezes interagia com os habitantes e perguntava quem eram eles e o que faziam acordados. Qualquer resposta que fosse dada recebia em contrapartida uma série de xingamentos e grosserias. Embora esses espíritos não fossem particularmente malignos, o mesmo não poderia ser dito de outro que dividia aquela velha mansão com eles.

O espectro mais assustador pertencia a um homem corpulento com "lábios grossos e sorridentes" sobre dentes amarelados e irregulares, descrito por Davison como "o homem de aparência mais desagradável sobre o qual pousei os olhos". A entidade usava um traje de cetim verde brilhante, marrom e vermelho, e normalmente aparecia na grande sala do andar de baixo. 

Sempre era anunciado pela aparição de um gato preto fantasmagórico, e quando esse gato aparecia, era um sinal claro de que o homem de aparência maníaca não estava muito longe. A entidade costumava flutuar pela sala e desaparecia na lareira deixando uma trilha de gosma limosa de aspecto e cheiro nauseantes. Também costumava fazer a temperatura da sala cair a níveis insuportáveis, compelindo os presentes a tremerem de frio. Ao contrário da mulher de cinza, essa monstruosidade ameaçadora interagia com testemunhas, como em uma ocasião em que Davison perguntou se ele era um "demônio do inferno". A resposta foi uma gargalhada sibilante e maligna, seguida de uma abrupta queda na temperatura que quase fez o artista desfalecer.

O "Homem Desagradável" como veio a ficar conhecido supostamente era o espectro de Lorde Marcus Cosgrove, um dos primeiros residentes de Branden Hall em meados do século XVI. Ele tinha fama de ser um sujeito intragável tanto em aspecto quanto em personalidade, notório por importunar as moças de um vilarejo próximo e de trazer para sua casa donzelas que eram raptadas e defloradas. Sua fama era tamanha que alguns o tinham como um verdadeiro ogro. Chegavam a cogitar que Cosgrove havia assassinado um bom número de vítimas inocentes e que se livrara de seus cadáveres ordenando que fossem emparedadas no salão. 


Os rumores nunca foram confirmados e as buscas de Davison por ossos misturados ao reboco das paredes não se traduziu em qualquer descoberta significativa. Ainda assim, as lendas davam conta de que Cosgrove pode ter sido um maníaco que supostamente terminou seus dias assassinado por um noivo em busca de vingança. Para tornar tudo ainda mais assustador, o espectro parecia reservar comentários especialmente repulsivos a testemunha do sexo feminino. Certa vez ele teria ameaçado esganar uma parente de Davison e "arrancar a vida de seu corpinho frágil", tudo isso com um sorriso maligno nos lábios. 

Além desse fantasma abjeto haviam outras figuras sombrias menos definíveis à espreita na extensa propriedade rural. Nos campos se ouvia o som de cães e de um misterioso Guarda-Caça conhecido como Robert Muncee que cavalgava um animal negro com olhos de fogo. Um jardineiro misterioso e com uma longa barba grisalha também vagava pelos jardins, deixando um rastro na relva queimada após a sua passagem. 

Tudo aquilo era perturbador demais e Davison decidiu trazer um renomado Investigador Psíquico chamado Ronald Kaulbeck para verificar o que se passava. O primeiro cômodo que Kaulbeck investigou foi o nefasto aposento no térreo, que o impressionou com a sensação pura e esmagadora de malevolência e "pavor em estado bruto" permeando o espaço e vazando dele. O investigador decidiu passar a noite lá, e como havia acontecido com aqueles que haviam tentado antes, ele foi atacado por mãos invisíveis que agarraram sua garganta e puxaram seu cabelo. Quando ele pediu ajuda, três outros vieram correndo, mas a entidade continuou a estrangulá-lo, mesmo quando os homens tentaram ajudá-lo. Ele foi quase morto antes que as mãos fantasmas abandonassem seu aperto para deixá-lo ali se contorcendo ofegante.

Kaulbeck recrutaria alguns outros médiuns para ajudá-lo, e eles chegariam à conclusão de que os espíritos que infestavam a casa faziam parte de um Culto Satânico devoto da Magia Negra que havia usado a casa para vários rituais ocultos. Os investigadores paranormais foram capazes de conjurar a informação de que Marcus Cosgrove não era o único maníaco a ter residido ali. A mansão, de fato, parecia atrair as piores pessoas.

Um destes infames residentes supostamente foi um ocultista famoso chamado George Tarver, que teria sido mestre de um cabala de bruxos e feiticeiras. Tarver ganhou notoriedade no século XVII por alegar controlar demônios e ser capaz de realizar alta feitiçaria. As pessoas não o levavam muito à sério, achando que ele era simplesmente um lunático, mas outros alegam que sua fama de bruxo tinha fundamento e que muitos em Kent o temiam. Havia o boato persistente de que Tarver havia oferecido seu próprio filho como sacrifício num ritual diabólico, o que deixou sua amante louca, após o que, ele a estrangulou até a morte. Essa amante seria a tal mulher cinzenta que buscava o filho oferecido para as forças das trevas. O homem atarracado foi identificado como um serviçal chamado Hunter, um dos seguidores de Tarver até que protestou contra a morte da amante e foi assassinado por estrangulamento também. 


Os investigadores acreditavam que esses espíritos, em particular o de Tarver, estavam zangados e inquietos porque Davison havia invadido seu covil e realizado reformas. Eles recomendaram fortemente que ele desistisse de viver em Branden Hall, mas surpreendentemente, em vez de sair, Davison continuou com seu trabalho de renovação, desafiador diante dos ataques sobrenaturais. 

Os fantasmas aparentemente não gostaram nada disso.

Uma tarde, Davison se retirou para o quarto quando a porta de um dos aposentos se abriu violentamente e revelou a presença de uma figura que até então não havia se manifestado. Era um homem alto e esguio, com cabelos longos grisalhos caindo sobre os ombros e olhos perversos faiscando. Ele não teve dúvida de que estava diante do espectro maligno de George Tarver que decidiu finalmente surgir para afugentá-lo. 

Davison queria correr, mas já estava farto de ser ameaçado pelos espíritos, então disse desafiadoramente à entidade: "Saia dessa casa! Esse lugar agora me pertence! Minha vontade é mais forte que a sua! Não importa o que te prende aqui! Tens de sair! Saia!". O fantasma rosnou e avançou contra ele tentando agarrar sua garganta para esganá-la, mas Davison conseguiu se esquivar, sentindo a presença gélida da assombração.

Na manhã seguinte ele reuniu o mesmo grupo de médiuns, reforçado por mais dois importantes espiritualistas muito recomendados para proceder em uma tentativa de exorcizar a presença maligna que dominava a Propriedade. Eles acreditavam que Tarver havia mantido todos os demais espíritos que estavam presos na casa escravizados e que extraía deles a energia para continuar atormentando o local. O plano seria, portanto, cortar essa influência, libertar os outros fantasmas e só então se voltar contra a aparição mais poderosa.

Segundo os relatos de Davison, o grupo começou a esconjurar os fantasmas do serviçal e do jardineiro, que já eram conhecidos deles. Estes deram pouco trabalho se comparados ao de Cosgrove e de Robert Muncee que ainda galopava seu alazão negro com olhos queimando pelos jardins da casa. Um a um, entretanto, eles foram senso expulsos por uma combinação de esconjuros e ordens que Ian Davison definiu como perfeitamente teatrais e impressionantes. Após dois dias consecutivos desta batalha psíquica, o grupo se voltou para o maior desafio que tinham pela frente, o maligno satanista George Tarver.


Segundo o relato de Davison, seguiu-se uma "batalha de vontades" em que os Investigadores Paranormais tentavam compelir o espírito a desistir da luta. Ao longo de um final de semana inteira, a disputa prosseguiu, com façanhas impressionantes de atividade paranormal, com estrondos, objetos sendo atirados e quebrados e variações drásticas de temperatura. Alguns dos envolvidos se sentiram tão esgotados física e emocionalmente que tiveram de ser substituídos para que pudesse recobrar suas forças antes de entrar novamente na contenda. Ao fim de quase 72 horas ininterruptas, que Ronald Kaulbeck descreveu como uma das mais assustadoras disputas místicas jamais ocorridas, o espírito atormentador acabou por ceder. Ele se manifestou uma última vez e então começou a se desfazer até desaparecer por completo. Imediatamente a forte sensação opressiva que reinava na casa se desanuviou e os presentes sentiram que aquela presença maligna havia enfim sido derrotada.

Nos dias que se seguiram, Davison alegou ter visto o fantasma da Mulher Cinzenta em pelo menos duas ocasiões, mas este não parecia mais atormentado. Parecia, outrossim, agradecido e a última vez que a aparição da mulher foi vista, ela simplesmente se desfazer. 

Depois desse embate, as aparições nunca mais seriam vistas na casa e os fenômenos paranormais cessaram de um todo. Davison continuaria suas reformas e, embora levasse vários anos, ele acabaria transformando Branden Hall em uma propriedade luxuosa e deslumbrante cercada por terras agrícolas, vastos jardins de flores e pomares extensos. De fato, tornou-se conhecida como uma das propriedades agrícolas mais rentáveis e grandiosas da região. Nada mal para uma mistura assustadora e decrépita de ervas daninhas outrora usadas por um culto satânico. 

A narrativa se mantém até os dias atuais como um dos mais incríveis embates entre espiritualistas e as  forças das trevas. Um acontecimento que foi registrado por Kaulbeck em um livro intitulado "A Assombração de Branden Hall - O relato do mais notável embate paranormal da Inglaterra", lançado em 1940.

No final das contas, o que teria ocorrido naquela propriedade isolada nas florestas de Kent? Branden Hall teria sido realmente assombrada pelas forças das trevas, ou tudo não passou de uma bem construída história de fantasmas? Apenas aqueles que estiveram lá, e participaram do evento, podem dizer com propriedade. Para nós, é uma questão de crer ou não. De acreditar ou desacreditar da existência de coisas que não estamos inteiramente preparados para aceitar.