domingo, 3 de setembro de 2017

Fábula Aterrorizante - O Horror oculto em Chapeuzinho Vermelho


Contos de Fada fazem a alegria de crianças em todo mundo, abrindo as portas para reinos de imaginação e de sonhos, onde tudo é possível. 

Mas nem sempre foi assim.

As primeiras versões de algumas das mais conhecidas fábulas infantis não tinham nada de encantadoras ou alegres, muito pelo contrário, elas eram horrendas, violentas e grotescas. Serviam acima de tudo como parábolas sobre moralidade e comportamento. Nelas as crianças que não agiam conforme o esperado, sofriam, eram repreendidas ou simplesmente morriam de forma aterrorizante deixando uma lição de moral.

Um dos contos de Fadas mais famosos de todos os tempos, "Chapeuzinho Vermelho" pode parecer inocente para a maioria, mas quando a fábula surgiu, ela era muito diferente. Haviam conotações ocultas que tornavam a história da menina que leva doces para sua avozinha algo bastante sinistro. 

A origem de "Chapeuzinho Vermelho" (Little Red Riding Hood) pode ser traçada até muito antes do século XVII, quando surgiu sua primeira versão escrita. Antes ela já figurava no folclore e tradições orais de vários países da Europa. Algumas destas versões eram bastante diferentes, embora diversos elementos fossem comuns e pudessem ser reconhecidos. A fábula era contada por camponeses franceses no século XI, documentada pelo historiador Egbert de Liege em 1550. Na Itália, ela era popular entre camponeses desde o século XIV, sendo que existiam várias versões, incluindo "La finta nonna" (A Falsa Vovozinha) uma das mais difundidas. Chapeuzinho foi reescrita várias vezes, inclusive por Ítalo Calvino que a acrescentou em seu compêndio de folclore. Versões da mesma fábula também podiam ser encontradas na Suécia, Noruega, Alemanha, Países Baixos e Espanha.


Essas primeiras variações da fábula se diferem das versões atuais em vários aspectos. O antagonista principal nem sempre é o "Lobo Mau", o monstro algumas vezes é retratado como um ogro, vampiro ou troll. Em algumas versões, a criatura é um lobisomem, o que tornou a história extremamente relevante nos julgamentos de criminosos suspeitos de licantropia durante a Idade Média. O famoso Julgamento de Peter Stumpp, na Alemanha, se valeu da fábula para enquadrar o acusado.

[Sobre esse caso chocante, leia AQUI ]

A história em algumas versões era realmente bizarra.

O lobo deixava o corpo da velhinha para a criança se alimentar, dizendo que se tratava de carne de cordeiro. Faminta pela sua jornada, a criança comia avidamente e canibalizava a própria avó. Em outra versão, o lobo confronta a velha e a obriga a remover suas roupas ou jogá-las na lareira. A velha fica aterrorizada por ser forçada a se desnudar diante da fera, mas o lobo diz: "Não se preocupe, não é essa a fome que eu pretendo saciar!". Finalmente quando a mulher está despida, ele a devora. Em uma versão especialmente aterrorizante, a história termina quando a menina deita com o lobo na cama e este a mata. Numa outra, chapeuzinho percebe o disfarce do lobo que assumiu a identidade da avó, e se desculpa, retornando para a floresta, alegando que havia esquecido a cesta que carregava. O lobo no entanto, amarra um barbante no pé da criança e a persegue pela floresta em uma caçada implacável. Em boa parte das histórias não existe sequer a figura do caçador. A menina fica por conta própria, precisando enfrentar o medo e a ameaça do lobo recorrendo apenas a sua inteligência. Na Espanha, a menina dá lugar a uma adolescente que tenta escapar de investidas claramente sexuais por parte do lobo. Na Polônia, a menina dá lugar a um rapaz. O capuz vermelho está quase sempre presente, mas em algumas versões a protagonista usa uma capa feita de folhas verdes.  

Em uma versão francesa, Chapeuzinho escapa graças à ajuda de uma lavadeira que aconselha a menina a pular em um rio e se manter de baixo d'água. Quando o capuz vem à tona, o lobo acha que a criança se afogou e vai embora. Na Ucrânia, o lobo é empurrado no fogo pelo espírito da avó que ressurge como um fantasma para salvar a menina no último momento. No final dessa história, a menina é severamente repreendida pelo fantasma da avó que culpa a neta por ter sido tola e ter causado sua morte. A menina adota a identidade da avó e passa a morar na casa que pertenceu a esta como compensação.

Especialistas em folclore conduziram uma pesquisa em 2009 na qual identificaram 58 versões diferentes de Chapeuzinho Vermelho.


A versão impressa mais antiga tem o título "Le Petit Chaperon Rouge" e teve sua origem em meados de 1670. Ela fazia parte de uma coleção de fábulas a respeito de moral e comportamento infantil. Nessa versão Chapeuzinho Vermelho pegava um atalho apesar da mãe alertá-la para nunca fazê-lo. Por conta disso, o lobo encontrava a menina e matava sua avó. O conto deixava implícito que a culpa pela tragédia era unica e exclusivamente da criança que não obedecia as instruções da mãe.

Em 1697, Charles Perrault escreveu uma das versões mais conhecidas da fábula que foi responsável por popularizá-la em toda Europa. Esta é possivelmente uma das versões mais violentas e sinistras de Chapeuzinho Vermelho. A menina conforme a descrição de Perrault é "atraente e bem criada", quase uma adolescente, nascida em uma aldeia no interior da França. Na história, o lobo engana a menina e a convence a revelar a localização da casa de sua avó. O lobo age de forma simpática, engana e seduz sem jamais parecer malvado. A seguir, ele corre até a casa, evitando um grupo de lenhadores que haviam advertido a menina do perigo de falar com estranhos. Chegando na casa, o lobo devora a velha de maneira sangrenta. "As mordidas arrancam pedaços e dilaceram seu corpo".

Ele então veste os trajes da avó e prepara sua armadilha. A menina chega e embora desconfie de que algo está errado, acaba cedendo ao pedido do lobo disfarçado para que suba na cama. O lobo então a ataca com a mesma violência e a devora viva. A história se encerra dessa maneira, com o lobo emergindo como o vencedor e todas as demais personagens caindo como vítimas. 

Não existe final feliz, Perrault explica a moral da história no último parágrafo para que não reste nenhuma dúvida de seu significado:

"Com essa fábula aprendemos que crianças, especialmente moças jovens, bonitas e bem nascidas, correm perigo ao falar com estranhos. Lobos, afinal de contas, podem espreitar em qualquer estrada. Nós dizemos "lobos", mas nem todos lobos são iguais, alguns são simpáticos e agradáveis - não são selvagens ou furiosos, mas domados. Eles seguem as jovens pelas estradas e ruas, se preciso, até suas casas. Por sinal, é bom saber que esses lobos gentis e simpáticos, são de longe os mais perigosos!".  



Esta versão presumivelmente a original da fábula escrita na França se tornou popular na corte do Rei Louis XIV. O Rei costumava entreter seus convidados em festas extravagantes e estes sem dúvida conseguiam entender perfeitamente o sentido da história. O termo "lobo" começou então a ser associado a homens interessados em assediar e perseguir moças mais jovens.

No século XIX os irmãos Jacob  e Wilhelm Grimm - conhecidos como Irmãos Grimm, adaptaram a história e introduziram elementos inovadores na trama. A primeira parte da trama adaptada é bastante semelhante a história de Perrault, entretanto eles modificaram o final: a menina mata o lobo depois de reconhecer se tratar de uma fera disfarçada. Ela consegue empurrar o lobo na direção de uma lareira acesa e este morre queimado. A avó, no entanto, não sobrevive.

Em uma segunda revisão, os irmãos escreveram nova mudança, a menina e a avó são devoradas pelo lobo, mas na última hora um caçador atrás da pele da fera o mata. Ao abrir a barriga do lobo encontra avó e neta em seu interior ainda vivas. A lição de moral é transmitida, mas sem o trauma da morte ou tragédia.

Em 1857, Chapeuzinho Vermelho já havia se tornado a história de maior sucesso dos Irmãos Grimm e eles decidiram fazer uma terceira versão que amenizava ainda mais o final. Nela, incluíram a menina reconhecendo o disfarce do lobo e fugindo sem ser devorada. Ela corre para o caçador e este mata a fera e remove a avó de sua barriga. Essa talvez seja a versão mais próxima da história que ouvimos quando criança. Nela, ninguém morre, a não ser o "pobre" lobo mau. É curioso que os Irmãos Grimm, conhecidos por escrever histórias de conteúdo macabro tenham decidido atenuar justamente essa narrativa e adotar um final feliz.


Além do alerta contra falar com estranhos e trilhar caminhos desconhecidos, a fábula de Chapeuzinho Vermelho sempre esteve aberta a interpretações de caráter sexual. A história pode ser encarada como uma alegoria a respeito do ritual de passagem da infância para a puberdade. A menina deixa de ser criança e transforma-se em adulta no momento em que sai da barriga do lobo. O capuz usado por ela, vermelho, claramente alude à primeira menstruação. Sigmund Freud também usou o conto como uma alegoria de amadurecimento e renascimento.

É curioso que a origem de alguns dos mais famosos contos de fada encontre-se ligada muito mais ao horror do que a fantasia. Estas pequenas histórias não surgiram como uma forma inocente de entretenimento infantil, mas como chocantes revelações visando ensinar aos pequenos como o mundo real poderia ser assustador e perigoso. 

*     *     *

Para quem achou interessante, indico o filme "A Companhia dos Lobos" (The Company of Wolves/ 1984) que reconta de uma maneira aterrorizante a fábula de Chapeuzinho Vermelho e que me assustava terrivelmente quando eu era criança.


As cenas da transformação e do lobo emergindo de baixo da pele de uma pessoa, com o focinho brotando de dentro da boca sempre me causaram pesadelos. Hoje em dia, o estilo chocante e a aura quase barroca do filme perderam um pouco seu poder de sugestão - é difícil assustar nos dias atuais, mas quando assisti esse filme (ainda criança) fiquei positivamente apavorado. 

Desde então, jamais encarei Chapeuzinho Vermelho como uma história de ninar. A não para quem quer ter pesadelos depois de ouvi-la.

Aqui está o trailer de Companhia dos Lobos:


E é claro, a cena da transformação que ainda é na minha opinião bem assustadora:


5 comentários:

  1. Morria de medo de Companhia dos Lobos também ! Mas o Conto de Fadas que sempre me assustou quando ouvia era o Flautista de Hamelin (pela falta de um final feliz) que você já falou em eu blog. Apesar de não ser um Conto de Fadas (mas que as pessoas consideram um por causa do filme da Disney) eu sempre achei que tinha uma coisa sinistra no Peter Pan, sempre achei estranho como as vezes nele parecia nuances de maldade parecida com o do Capitão Gancho (que é o vilão da história).

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  2. Estou fazendo versões sombrias para contas de fadas numa plataforma chamada Wattpad.

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  3. Estou fazendo versões sombrias para contos de fadas no Wattpad.

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  4. Pesquisa e texto muito bons! O livro A Psicanálise Nos Contos de Fadas de Bettelheim é outra fonte ótima sobre a gênese dos contos de fadas e sua função moral. Adoro o blog!

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