sábado, 2 de outubro de 2010

From Beyond - Ondas de Ressonância, Glândulas Pineais e Coisas Além da Realidade.


"From Beyond" escrita em 1920 e publicada apenas em 1934 na revista The Fantasy Fan, é considerada uma obra menor de H.P. Lovecraft.

Uma estória curta que para muitos estudiosos do autor, inclusive seu maior biógrafo S.T. Joshi, está longe de ser o ponto alto de sua carreira em virtude do "roteiro escorregadio, trivialidade e abuso de recursos melodramáticos".

Na minha opinião Joshi foi um tanto cruel na sua análise de "From Beyond".

Em alguns pontos concordo com ele. Não é o melhor trabalho de Lovecraft, contudo "From Beyond" tem qualidades de sobra. Para mim, essa pequena estória tem uma razão a mais para ser uma de minhas prediletas: foi o primeiro conto que li na versão original, quando ainda brigava para entender palavras confusas como "eldritch" ou "abhorent", recorria ao dicionário para saber exatamente o que estava acontecendo.

"From Beyond" talvez seja uma das estórias mais acessíveis da bibliografia de Lovecraft. É fácil entender a motivação dos personagens, o que eles buscam e o que acaba por causar a ruína de todos os envolvidos.

Como muitos dos contos de Lovecraft, a narrativa é feita em primeira pessoa, por um personagem que em momento algum se identifica. Trata-se de um amigo do personagem principal, um cientista chamado Crawford Tillinghast, alguém que segundo o narrador é um pesquisador "tanto do mundo físico quanto do metafísico". Como muitos personagens criados por Lovecraft, Crawford é um homem de Ciência, mas aceita trilhar caminhos pouco ortodoxos para provar suas estrahas teorias. Assim como acontece com muitos personagens imersos nessa busca pelo conhecimento (Herbert West para citar apenas um), as revelações decorrentes terão enorme repercussão em sua existência.

No início do conto, Crawford convida o narrador para visitar seu laboratório e conhecer uma de suas últimas descobertas. Logo que encontra seu amigo, o narrador, expressa preocupação com sua saúde. O cientista parece ter passado por uma dramática degradação física e mental. "Não é agradável ver um homem robusto repentinamente emagrecer, e é ainda pior quando sua pele saudável torna-se amarelada ou cinzenta, seus olhos fundos, pesados, e estranhamente brilhantes, a testa pronunciada com veias saltadas, e as mãos trêmulas", descreve ele.

O contato com revelações terríveis cobra um pesado preço mudando o semblante de Crawford, fazendo dele um homem assombrado como o morador da Casa de Usher no conto de Poe. A moradia deserta, fria e escura combina com o aspecto de seu único habitante, não há familiares ou mesmo criados para lhe fazer companhia.

Crawford deseja compartilhar com o amigo a existência de uma máquina, um dispositivo eletrônico no qual ele vem trabalhando ininterruptamente. A máquina guardada no laboratório, explica o cientista, cria uma onda de ressonânica que age sobre a Glândula Pineal daqueles em seu alcance. O estímulo da glândula pineal faz com que o indivíduo seja capaz de ampliar seus sentidos permitindo perceber outras realidades.

Basicamente, a Máquina de Tillinghast permite que um novo sentido normalmente adormecido seja despertado de uma hora para outra. Nossa "cegueira", esconde um mundo com o qual não podemos interagir pois está além de nossas faculdades percebê-lo.

Lovecraft escolheu a glândula pineal pois na época ela ainda era um enigma mergulhado em mitos debatidos à exaustão por cientistas e ocultistas.

A glândula pineal é uma estrutura de função endócrina que divide os dois hemisférios do cérebro humano. Para os filósofos sua localização evidenciava uma grande importância para o funcionamento do cérebro. René Descartes dedicou muito tempo ao estudo da glândula pineal chamada por ele de "lugar da alma". Descartes acreditava ser ela o ponto de interseção entre o intelecto e a alma, o local onde nascia a razão e onde eram concebidas as idéias. A misteriosa localização da glândula gerou várias teorias sobre sua função. Para estudiosos do ocultismo, a glândula pineal equivalia ao terceiro olho que permitia perceber o mundo invisível, tudo aquilo que é tratado como sobrenatural.

Foi justamente essa noção que Lovecraft explorou em "From Beyond". A idéia de que todo homem nascia com a possibilidade de usufruir desse sexto sentido, mas que ele permanecia por alguma razão dormente. Ao menos até a glândula ser estimulada de alguma forma.

No conto, a máquina de Crawford Tillinghast criava ondas que agiam diretamente sobre a glândula pineal erguendo o véu para uma experiência sensorial única. Uma que permitia contemplar o mundo como ele é.

Mas que mundo é esse?

Crawford não deixa claro mas possivelmente trata-se de um diferente plano de existência que co-existe com o nosso, sem no entanto, se misturar a ele. Mais incrível é que este plano é habitado por estranhas criaturas que sempre estão entre nós, mas que normalmente não somos capazes de perceber.

O pesquisador chega a postular que alguns animais cujos sentidos são mais apurados, são capazes de perceber a existência dessas criaturas. Por isso cães latem à noite mesmo quando tudo está quieto e gatos se eriçam de uma hora para outra como se fossem capazes de perceber uma presença invisível. Mesmo nós humanos somos capazes de perceber a existência dessas criaturas através de presentimentos de não estar sozinho e arrepios inexplicáveis.

É obvio que estas noções são contestadas pelo narrador que acaba aceitando o desafio de se submeter à máquina.

Conforme as ondas emitidas pelo aparelho estimulam sua glândula pineal, a reaidade começa a se desfazer no que o narrador descreve como um caleidoscópio de cores e formas absurdas. Ao abrir os olhos o narrador descreve um mundo translúcido, habitado por hordas de criaturas etéreas que flutuam no ar alheias a sua presença.

Crawford adverte o narrador para que ele se mantenha totalmente imóvel. A máquina permite não apenas perceber a existência dessas criaturas, mas ser percebido. É então que o pesquisador dá mostra clara de que seus estudos atravessaram a barreira ética e moral, pois seus criados foram atacados e horrivelmente assassinados por estas mesmas criaturas.

É possível sentir a agonia do narrador que permanece paralisado mesmo quando é cercado por um desfile de aberrações que desafiam descrição. Crawford explica que o menor movimento atrairia a atenção das bizarras criaturas do além. O plano é habitado por seres primitivos e ferozes que vivem em constante competição, devorando e sendo devorados por outras monstruosidades sempre famintas.

A tensão continua até chegar a um ponto em que o narrador é confrontado por horrores impossíveis de serem ignorados. Formas gigantescas, terríveis, inumanas... Ele saca uma arma de fogo e dispara contra a máquina na esperança de assim interromper a experiência. Crawford tenta impedi-lo e ignora seu próprio aviso: "não se mover pois aqueles que você vê, também poderão vê-lo".

Uma horda de criaturas cerca o cientista e a última coisa que o narrador vê antes de correr rapidamente para a porta é seu amigo tombar no chão atacado por uma horda de predadores transdimensionais.

Deixando a casa e o horror para trás, o narrador se vê livre dos efeitos da máquina, mas será que as ondas de ressonância às quais ele foi submetido foram suficientes para estimular sua glândula pineal e erguer o véu para outra realidade?

Lovecraft não revela qual o destino do narrador, mas conclui o conto dizendo que o corpo de Crawford Tillinghast foi encontrado no dia seguinte. Sua morte ocasionada por apoplexia - um grave acidente vascular cerebral. Tillinghast é também postumamente acusado de ter assassinado os criados e desaparecido com seus corpos.

Em 1986, o conto foi adaptado para o cinema por Stewart Gordon e a mesma equipe do sucesso Re-Animator. O resultado fugiu bastante da proposta original e enveredou através do gênero sangue e tripas e Barbara Compton (a estrela de Re-Animator) com pouca roupa. Dificilmente Lovecraft teria aprovado, embora o resultado seja divertido.

"From Beyond" é uma pequena jóia, um conto que contém elementos recorrentes na obra de Lovecraft. A busca pelo conhecimento proibido, o alto preço a se pagar por esse conhecimento e as consequências de flertar com verdades que a humanidade não está pronta para desvendar.

3 comentários:

  1. Vou reker o conto para poder deixar aqui uma impressão pessoal.

    Alguns contos dele precisam ser vistos com olhos atentos realmente, por serem bons e esconderem algo a mais que somente quem tem a pineal alterada poderá sacar!!! :)

    ResponderExcluir
  2. E qual filme é realmente fiel ao original lovecraftiano?
    Só vi até agora Call of Cthulhu em PB mudo, e Dagon, pq é fiel até um certo ponto quem sabe HP tivesse concordado com a Imboca na Galícia...

    ResponderExcluir
  3. Ótimo post. Realmente faz jus a um dos, na minha opinião, melhores contos dele. Não li todos, mas este tem uma proposta que é fantástica demais para ser ignorada. É simplesmente maravilhosa a idéia, ainda que o texto não seja sua obra-prima.

    ResponderExcluir