quarta-feira, 26 de julho de 2017

RPG do Mês: Pesadelos Terríveis - Explore seus Medos mais Profundos nesse RPG nacional


Pesadelos podem ser bastante assustadores.

A sensação de não conseguir escapar de uma situação aterrorizante. A impotência de enfrentar as coisas que existem nas profundezas de nossa imaginação. O terror de não ser capaz de despertar, ou pior, de acordar e saber que é tudo verdade.

Pesadelos podem ser algo traumático, sobretudo para quem sofre constantemente com eles. Eles deixam cicatrizes na alma e lentamente começam a erodir a sanidade. Sonho e realidade se misturam e pouco a pouco, é difícil separar um do outro. O resultado? Loucura, sofrimento, falta de esperança...

Bem vindo ao mundo de Pesadelos Terríveis.


Escrito por Jorge Valpaços (autor de Delóyal) e editado pela Lampião Game Studio em parceria com a Avec Editora, esse é um daqueles RPG que o leitor vai descobrindo as possibilidades lentamente, a medida que mergulha em suas muitas camadas. Há terror, com certeza, mas também espaço para fantasia, surrealismo e mistério.

Inspirada na premiada História em Quadrinho Beladona, criada por Ana Recalde e Dennis Mello, o jogo apresenta um Universo Expandido a partir da história original, abrindo opções para jogadores explorarem a mesma ambientação em que a protagonista da HQ, Samantha transita; o limiar entre o mundo desperto e o onírico.

Em Pesadelos Terríveis, os jogadores assumem o papel de Sonhadores, indivíduos que se vêem tragados por pesadelos recorrentes que de tão intensos acabam deixando traumas profundos. A medida que o Sonhador começa a compreender o que são os seus pesadelos e porque são assolados por eles, descobrem também a existência de todo um Reino Secreto margeando a fronteira da realidade - O Mundo dos Pesadelos!

Na ambientação, esse Mundo dos Pesadelos é uma realidade para onde a mente de todos os seres humanos é frequentemente cooptada. A maioria das pessoas não se recorda dos pesadelos que experimenta, não tem consciência do que aconteceu em seus devaneios e quando desperta, apaga da memória esses acontecimentos mantendo apenas alguns lampejos. Esse mecanismo de proteção evita que as pessoas enlouqueçam por completo.


Quando a consciência dos seres humanos é arrastada para essa realidade, ela sofre com as depredações de seres abomináveis, os Pesadelos, os Senhores dessa Dimensão. O propósito dessas entidades é o mais egoísta possível; o medo que eles extraem das pobres almas que atormentam lhes serve de alimento. Fornece ainda o poder e os meios para expandir seus domínios e torná-lo cada vez mais aterrorizante e assim, mais eficiente. Os Pesadelos são amorais,não são humanos e sua existência se confunde com o próprio tecido constituinte de seu mundo.

Os Pesadelos sempre estiveram lado a lado com a humanidade, manipulando seus medos e cultivando suas incertezas. Ao longo da história, os Pesadelos foram os responsáveis por deflagrar tragédias, estimulando o medo do diferente, do estranho, da morte, do desconhecido. Desde o homem mais primitivo, até sua versão atual, o medo é uma sensação da qual não é possível se dissociar. Com base em cada período, os Pesadelos investiram no que se convencionou chamar Medos Primordiais. Estes são os Grandes Terrores de cada geração: O Medo das Invasões Bárbaras que varreu o Império Romano, o Medo da Peste Negra que aterrorizou as populações urbanas da Europa Medieval, o Medo da Feitiçaria que promoveu execuções, são exemplos de terrores insuflados pelos Pesadelos com o intuito de extrair dos humanos pavor em estado puro. Mesmo hoje, com todo progresso da civilização, o Medo ainda permeia nossa sociedade: Medo da Violência, do Desemprego, do Terrorismo. Os Pesadelos são maleáveis, perfeitamente capazes de alterar as ansiedades de cada geração e assim se beneficiar dos medos.

Mas existe uma pequena falha nesse mecanismo.

Alguns seres humanos, por razões desconhecidas, retém toda memória de seus pesadelos, eles não esquecem o que vivenciam, e pouco a pouco, sua mente vai sendo fraturada por essas experiências. Tais pessoas, os Sonhadores como são chamados, são indivíduos abalados, que desenvolvem traumas psicológicos que aos poucos revelam a verdade. Com base nesse conhecimento, os Sonhadores desenvolvem uma percepção toda especial do Mundo dos Pesadelos, a ponto de serem capazes de manipular as energias que o regem. Essa habilidade é chamada genericamente de "Poder", e envolve faculdades sobrenaturais que permitem ao Sonhador realizar façanhas inacreditáveis. Alimentado pelo Trauma, o poder extrai do medo sua energia catalizadora. Um poder incide sobre o ambiente, sobre as pessoas, altera a percepção e a própria noção de realidade. Mais notável, o indivíduo consegue invocar seus poderes mesmo no Mundo Desperto.


É importante compreender, contudo, que os Sonhadores NÃO são super-heróis, coisa que o termo "poderes" pode levar alguns a presumir. Um Sonhador é uma pessoa alquebrada que já inicia o jogo com um trauma que causou a revelação do Mundo dos Pesadelos e lhe garantiu acesso a um poder. No geral, o Sonhador é um sujeito problemático, confuso e constantemente aterrorizado. A proposta da ambientação é trabalhar a Jornada dos Sonhadores, não apenas no Mundo dos Pesadelos, mas em Nossa Realidade como duas plataformas para as aventuras. Até que ponto a percepção da existência desses dois mundos muda a vida de uma pessoa, como se dá a interação deles com os Pesadelos e outros Sonhadores e mais importante como eles precisam lidar com os traumas acumulados sem enlouquecer de vez.

O sistema de regras é extremamente leve e enxuto. A ficha do personagem não tem números ou graduações a serem preenchidas, ao invés disso, o jogo recorre a um exercício de construção que procura definir traços de quem foi, quem é, e quem ele aspira a ser. Usando frases, o jogador estabelece características sobre o passado, o presente e o futuro de seu personagem. Estes dados criam um pequeno background e um leque de habilidades abertas. 

Por exemplo, se o personagem escreve em sua lista de traços do passado que "participou de provas de atletismo (revesamento 4x100)", é possível assumir que o personagem conhece o mínimo de esportes, que pode ter um bom condicionamento físico, que possivelmente sabe trabalhar em grupo, que talvez tenha viajado para participar de competições (conhecendo outros lugares e pessoas), etc...

Com base em um traço do passado é possível obter diferentes aspectos que vão ajudar o personagem no decorrer de uma história. Cada aspecto positivo se traduz em um dado nas disputas entre o personagem e um oponente. O oponente contabiliza seus dados da mesma maneira. Os desafios são extremamente importantes, não há rolamento de dados à toa em Pesadelos Terríveis. O único dado usado no jogo é o bom e velho d6 e pressupõe-se que para uma partida será preciso ter à mão um bom número deles de preferência em duas cores diferentes. 

Com uma determinada quantidade de dados, o jogador faz o rolamento e compara o melhor resultado obtido em cada cor. Se o dado de vantagens do jogador for mais alto, o resultado é favorável para ele, se o valor mais alto é do dado do oponente, este terá sucesso na disputa. Há no entanto uma regra adicional: qualquer valor repetido nos dados soma +1 ao valor mais alto, sendo este cumulativo. Esse rolamento é chamado de "acaso".

Por exemplo: O jogador rola 3 dados obtidos pelos seus traços favoráveis e 2 dados para seu oponente. O jogador escolhe três dados brancos para si e 2 dados pretos para o oponente e rola todos juntos obtendo 2, 2 e 3 nos dados brancos e 1 e 4 nos pretos. O resultado teria sido desfavorável, contudo, o jogador tem um acaso (2 dados com "2"). Seu rolamento de 3 é promovido a 4. E pelas regras, em caso de empate, o jogador tem sucesso no seu intento.

Essa mecânica simples, permite uma boa fluidez da sessão e conforme salientado, rolamentos de dados serão raros no decorrer do jogo. A narrativa segue sem grandes interrupções e cabe ao mestre arbitrar os resultados e interpretar.

Outro aspecto curioso em Pesadelos Terríveis diz respeito a uma construção coletiva do Mundo em que vai se passar a história. Antes de criar os personagens, os jogadores e o mestre discutem entre si que tipo de jogo querem. Decidem em conjunto onde vai se passar a história, quais serão os elementos narrativos disponíveis, os traços característicos, os traumas atuantes, os Medos Primordiais que assolam o local e qual o reflexo deles no Mundo dos Pesadelos. Também definem a interação dos personagens com o ambiente e a relação deles uns com os outros.


Com base nessa criação coletiva do ambiente, fica mais fácil para o Mestre escrever a história e permite aos jogadores participar de algo que eles desejam. Isso significa dizer que Pesadelos Terríveis é uma ambientação aberta, podendo criar uma aventura na Londres Victoriana século XIX, durante a Segunda Guerra Mundial, durante a Caça às Bruxas de Salem ou num futuro distante à bordo de uma estação espacial na órbita de outro planeta. Uma vez que todos períodos de tempo e espaço são passíveis da existência de Pesadelos e de Sonhadores, não há local ou época que não possa ser utilizada como pano de fundo para o jogo.

Pesadelos Terríveis não deixa o mestre na mão fornecendo dicas e sugestões de como trabalhar os conceitos centrais do jogo. Dois Capítulos chamam a atenção; "Arquitetura do Medo" e "Criar Contos em Pesadelos Terríveis" que fornecem um valioso suporte para o Mestre criar suas próprias histórias e incutir nelas aquela sensação claustrofóbica digna dos piores sonhos. Mais do que isso, esse excelente suporte pode ser facilmente transplantado para outras ambientações de horror focado no lado psicológico.


Fisicamente Pesadelos Terríveis é um livro bem feito de leitura rápida e gostosa com 144 páginas em preto e branco. A arte de Denis Mello, o ilustrador de Beladona é rústica, escura, incômoda, privilegiando imagens que remetem a angústia dos Sonhadores e a bizarrice dos Pesadelos e de seu Mundo distorcido. Algumas imagens parecem ser reminiscentes de Beladona, o que faz uma boa ponte entre a história que originou o universo expandido. Por sinal, o trabalho do autor tem a chancela de Ana Recalde que assina o conto inicial e final do livro.

Para os fãs de jogos com temática densa e profunda, Pesadelos Terríveis se apresenta como uma excelente opção. E não só isso, ele atesta que a produção de Jogos de RPG made in Brasil está em plena expansão com ambientações inovadoras e muito competentes que não ficam devendo nada a títulos internacionais e que merecem ser conhecidas.

PESADELOS TERRÍVEIS

Textos por Jorge Valpaços, inspirado na obra Beladona de Ana Recalde
Arte de Denis Mello
Editora Lampião e Avec
Preto e Branco, 144 páginas
http://aveceditora.com.br/


2 comentários:

  1. Grande amigo e parceiro de escrita. Jorge Valpaços é sem sombra de dúvidas uma das pessoas que mais admiro na cena nacional.

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