segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Tratamento de Choque - A Verdadeira História da Terapia Eletroconvulsiva



Esses tempos narrei um cenário de Call of Cthulhu que se passava em um manicômio em que os personagens eram internos. Um dos momentos mais tensos envolvia a clássica cena do Eletrochoque.

Para ajudar a entender o procedimento, fiz uma pesquisa a respeito do eletrochoque que foi a base para esse artigo.


Ah sim, tenham em mente que eu não sou médico ou psiquiatra, assim sendo espero que os colegas que eventualmente trabalhem na área e tem conhecimento do assunto relevem alguns pequenos erros. Por sinal, aqueles que quiserem corrigir esses mesmos erros fiquem à vontade para fazê-lo.




Quando se pensa em manicômios e sanatórios mentais, uma imagem recorrente que vem à mente é a do notório Eletrochoque.


O procedimento, cujo nome correto é Terapia Eletroconvulsiva (ECT), consiste na aplicação de choques de pequena voltagem através de eletrodos fixados nas têmporas do paciente com objetivo terapêutico no tratamento da depressão severa, catatonia, mania e quando foi criado como opção no tratamento da esquizofrenia.


Muitas pessoas, ainda hoje, acreditam que a aplicação do Eletrochoque constitui exclusivamente uma forma de punição aos pacientes rebeldes. Ou que a utilização dele é algo cruel e reprovável. De fato, o histórico de abusos cometidos, a falta de informação e a própria natureza do tratamento sempre geraram controvérsia. 


A Terapia Eletroconvulsiva foi desenvolvida pelos médicos italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini que estudavam a relação existente entre convulsões e esquizofrenia. A teoria corrente era que esquizofrenia e epilepsia não podiam se manifestar simultaneamente em um mesmo paciente, portanto forçando um quadro de epilepsia a outra doença (mais grave) desapareceria naturalmente. 


Os psiquiatras na década de 1920, acreditavam que a melhor forma de controlar a esquizofrenia era portanto estimular convulsões usando para isso métodos não-ortodoxos. 


Primeiro foram feitas experiências que visavam induzir o coma. Doses maciças de insulina eram ministradas nos pacientes esquizofrênicos com objetivo de deixar o paciente em estado de inconsciência. Revertendo o processo, alguns médicos acreditavam que os pacientes manifestavam melhora significativa. Uma segunda vertente utilizava substâncias que causavam convulsões como forma de moderar surtos esquizofrênicos. Para isso injetavam um derivado de cânfora direto no paciente para que ele manifestasse uma reação convulsiva semelhante a epilepsia.  


Em 1937, um neurologista italiano chamado Ugo Cerletti estava convencido que as convulsões induzidas pela substância metrazol eram úteis para o tratamento de esquizofrenia. Contudo, a solução era perigosa já que não havia um antídoto para parar as convulsões depois de iniciadas. Além disso, os pacientes tinham um temor profundo do tratamento.


Cerletti sabia que uma pequena descarga elétrico aplicada na cabeça gerava como resposta convulsões, pois, como um especialista em epilepsia, ele tinha feito experimentos com animais para estudar as consequências neuropatológicas do mal. 


O neurologista desenhou um equipamento simples visando provocar crises epilépticas em cães e outros animais. Ele utilizou a máquina em mais de 300 animais obtendo em alguns casos horríveis resultados, mas aos poucos a potência ideal foi ajustada. A ideia de usar o choque eletro-convulsivo em seres humanos ocorreu-lhe pela primeira vez ao observar porcos sendo anestesiados com um método semelhante, antes de serem abatidos nos matadouros em Roma. A técnica era empregada há anos e deixava os animais dóceis e submissos.



Cerletti convenceu dois colegas Lucio Bini e L.B. Kalinowski (um jovem médico alemão) a ajudá-lo a desenvolver o equipamento usado para produzir breves choques elétricos em seres humanos.


Eles experimentaram vários tipos de dispositivos, até determinar os parâmetros ideais e aperfeiçoarem a técnica. Os pacientes escolhidos em manicômios e asilos no norte da Itália sofriam de esquizofrenia aguda. Após 10 a 20 eletrochoques em dias alternados, a melhora na maioria dos pacientes começou a se tornar evidente. 

Um dos benefícios inesperados do eletrochoque trans-craniano foi que ele provocava amnésia retrógrada, ou seja, uma perda de todas as memórias de eventos imediatamente anteriores ao choque, incluindo a sua percepção. Assim, os pacientes não tinham sentimentos negativos relacionados à terapia, como acontecia com o choque causado por metrazol, muitas vezes  traumatizante. Além disso, o eletrochoque era mais seguro e mais bem controlado, além de ser menos nocivo para o paciente do que a indução de elementos químicos.

Em 1939, Kalinowski começou um tour para anunciar a terapia por choque eletro-convulsivo ao redor do mundo, visitando a França, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos. 

Pesquisadores que adotaram o método de Cerletti-Bini logo descobriram que ele parecia ter efeitos espetaculares sobre os distúrbios afetivos. De acordo com E.A. Bennett, 90% dos casos de depressão severa que eram resistentes a todos os outros tratamentos, desapareceram após três ou quatro semanas de eletrochoques. Logo, o curare e escopolamina estavam sendo usados em conjunto com a terapia eletroconvulsiva, e gradualmente substituíram o choque induzido por insulina e metrazol. O eletrochoque começava então a sua longa jornada como a terapia de mais utilizada na maioria dos hospitais e asilos ao redor do mundo.

Outros tipos de terapia por choque foram brevemente testados, tais como a indução de febre por meio de microondas radio-magnéticas, anóxia cerebral transitória induzida pela respiração de uma mistura de oxigênio e nitrogênio, e pela crioterapia (redução abrupta da temperatura corporal). Os resultados foram dúbios na maioria das vezes, e estas técnicas foram logo abandonados em favor da terapia eletroconvulsiva, mais prática, eficiente e barata.

A técnica de eletrochoque foi aperfeiçoada  desde então, incluindo o uso de relaxantes musculares sintéticos, o uso de EEG para monitoração da crise, e construção de melhores dispositivos para ministrar o choque trans-craniano.  Apesar destes avanços, a popularidade da terapia eletroconvulsiva diminuiu gradualmente nas décadas de 60 e 70, devido ao uso de neurolépticos mais efetivos e como resultado de um forte movimento antagônico ao eletrochoque em psiquiatria. Entretanto, a terapia eletroconvulsiva voltou a ganhar evidência nos últimos 15 anos, devido à sua eficácia. É a única terapia somática da década de 1930 que permanece em grande uso ainda hoje. Calcula-se que entre 100.000 e 150.000 pacientes são submetidos à terapia por eletrochoque anualmente apenas nos EUA.

Terapia de Choque em cenários de Horror


Para cenários repletos de horror e loucura, a Terapia Eletroconvulsiva oferece várias oportunidades para criar tensão e medo.


Uma vez que a maior parte dos cenários se passa nos anos 20-30, podemos assumir que o tratamento ainda estava em etapa de experimentação e muitos médicos realizavam testes com suas próprias máquinas. Adaptando essa noção para o universo de terror é possível imaginar médicos sem muita ética ou até mesmo sádicos cruéis realizando experiências bizarras nos pobres pacientes de manicômios.


Máquinas caseiras ou modificadas poderiam ser usadas por "médicos" interessados em literalmente cozinhar o cérebro de suas vítimas. Choques consecutivos em uma potência acima do que é considerado seguro visando diretamente o cérebro poderiam causar horríveis danos mentais. Uma sessão prolongada poderia resultar em uma lobotomia. É importante salientar que no mundo real, tais experiências foram incrivelmente raras - o que não significa que tais coisas não possam ocorrer no reino da ficção. Nos anos 40 e 50, o cinema de horror e a literatura, trataram de transformar o Tratamento Eletro-Convulsivo em algo assustador, dramático e brutal.


Em termos de jogo, o tratamento eletro-convulsivo pode ser incrivelmente traumático para quem assiste uma sessão e não sabe exatamente como ele funciona. Existe uma série de preparativos e a maneira como o equipamento é empregado pode causar a impressão de que o paciente está sofrendo uma verdadeira tortura. 

Em Call of Cthulhu, o custo por presenciar uma pessoa passando por esse procedimento é de 0/1d3, o montante aumenta para 1/1d4 caso o paciente seja algum conhecido, parente ou amigo próximo. Em Rastro de Cthulhu, os testes de Estabilidade por presenciar esse tratamento tem dificuldade 2 e 4, respectivamente.



Ironicamente, o tratamento tem como consequência direta desorientação e perda de memória do paciente, o que inibe a perda de Sanidade do paciente. Imagino que o tratamento poderia ser usado em um investigador que acaba de sofrer uma perda acentuada de sanidade a fim de fazer com que ele esqueça de algo incrivelmente traumático. Francamente, eu mesmo não saberia dizer se esse procedimento de choque seria válido na minha mesa de jogo. 


Via de regra, máquinas usadas em Tratamento Eletro-convulsivo estão restritas a asilos, manicômios, casas de repouso e hospitais e são operadas por médicos e profissionais treinados. Apenas um médico atuante nessa área tem as credenciais necessárias para operar esse equipamento legalmente. 


A partir de 1940, surgiram as primeiras máquinas portáteis (como essa aí da foto) que podiam ser alimentadas com baterias semelhantes às usadas em automóveis. Esses aparelhos eram igualmente eficientes e tinham a vantagem de poder ser levados para qualquer lugar. Hoje em dia, muitas dessas máquinas portáteis são consideradas valiosas peças de coleção.

13 comentários:

  1. Luciano, sou psicologo e, apesar de boa parte da minha atuação profissional ser na área de saúde, não costumo trabalhar de perto com pacientes com transtornos psiquiatricos mais severos.

    Porém, do que me lembro e sempre ouvi de bons psiquiatras é que o tratamento por eletro-choque é muito menos danoso e "sádico" do que se quer fazer crer em alguns filmes e livros.
    Na época que me formei (decada de 90) lembro que alguns transtornos específicos eram até mais eficazes em tratamentos com eletro-choque do que medicamentoso, inclusive.

    Creio que parte do preconceito contra este tipo de tratamento veio com a luta antimanicomial, que teve (e tem) excelentes pontos de conststação contra instituições psiquiátricas, mas, como qualquer boa causa, tem tem alguns excessos.

    De fato muitoas instituições usavam o tratamento como forma de tortura e punição, mas há elementos, sim, de propostas sérias e "humanas" no uso desta forma de terapia, inclusive com dosagens extremamente baixas e localizadas.

    Fazendo minhas as palavras do Plebeu, portanto: Excelente postagem.

    ResponderExcluir
  2. Opa Brega, valeu! Eu até queria ter te passado o texto antes de publicar. Espero não ter cometido muitos erros.

    A despeito do uso médico reconhecido, não dá para contestar o fato de que na ficção de horror o tratamento de eletrochoque tem seu
    lugar de destaque.

    ResponderExcluir
  3. Quem souber de onde foi tirada a penúltima imagem do artigo, a do cara gritando enquanto é eletrocutado, ganha o "troféu cultista da semana". ;-)

    ResponderExcluir
  4. @King in Yellow

    não sei... Mundo das Trevas? ou então do quadrinho Asilo Arkham?

    ResponderExcluir
  5. O ótimo Taint of Madness traz algumas boas páginas sobre os tratamentos da época inclusive, claro, o eletrochoque. Foi lendo esse suplemento que descobri que o tratamento era realmente eficaz e nada daquilo que "conhecia".

    ResponderExcluir
  6. Isso é perigoso, pode fazer as traumas mais graves no tratamento doentio. Eu acho que os tratamentos não curam os pacientes loucos(sofrem a perda da insanidade). É a perda da memória ou danos graves no cérebro durante tratamento. Infelizmente, é a inglória. Ótimo Post!

    ResponderExcluir
  7. É do Asilo Arkham, a HQ do Batman. O diretor do asilo Arkham, eletrocuta Mad Dog Hawkins o homem que havia estuprado e matado sua esposa e filha.

    ResponderExcluir
  8. Cara fantástico! lembro que quando joguei minhas primeieras partidas de Call Of Cthulhu meu maior medo era que personagem fosse considerado insano pelas autoridades, eletro choque, lobotomia... fimd e carreira para o investigador!

    ResponderExcluir
  9. De quem é a primeira figura acima? Queria usar em uma postagem e dar o crédito, se não houver problema... Obrigado.

    ResponderExcluir
  10. Olha infelizmente não sei de quem é a imagem. Imagino que ela seja aberta ao uso pois (salvo engano) peguei ela em páginas sem copyright.

    ResponderExcluir
  11. amei cada palavra que colocou, texto muito elucidativo, muito obrigada por compartilhar seu conhecimento

    ResponderExcluir