Com base no artigo de André Julião da National Geographic (com comentários a partir de informações de outras fontes - em azul)
ILHA DO MEDO
“Olha uma ali!” Enrodilhada em galhos que parecem prestes a se quebrar com o
peso, a serpente não se mexe nem mesmo com a nossa aproximação. Demoro para ver, em
meio à folhagem, o que meus parceiros de expedição – o biólogo Breno Damasceno e
o fotógrafo João Marcos Rosa – percebem logo. O animal amarelo com manchas
marrons, quase invisível atrás das folhas, é a jararaca-ilhoa, o perigoso réptil que ocupa o degrau mais alto da cadeia alimentar na ilha da Queimada Grande, um
rochedo de granito forrado de Mata Atlântica, 33 quilômetros distante da costa
da cidade de Itanhaém, no litoral sul de São Paulo. Sou tomado de um sentimento
misto de empolgação e medo.
Nota: Queimada Grande possui aproximadamente 430.000m² com uma topografia irregular, tendo uma
altitude máxima de 206 metros e a profundidade ao redor ficando em torno dos 45 metros. Não
possui praias, somente costões rochosos, onde as ondas quebram constantemente. A face sul. oferece as melhores condições de desembarque, pois ali foram colocados espigões de ferro que simulam um atracadouro improvisado.
Não há habitação humana permanente na ilha, embora ainda possam ser vistas ruínas da casa ocupada pelos operadores do antigo farol construído no século passado. Existem leis que proíbem o desembarque em Queimada Grande. Apenas indivíduos com permissão especial, ligados a institutos científicos e certificados pelo Ministério do Meio-Ambiente podem visitar a ilha.
A Queimada Grande não é nada hospitaleira com seus visitantes, das
pequenas aves migratórias aos raros seres humanos que ousam pisar em sua superfície, o que não falta é perigo. Como não há praias, o embarque
e o desembarque são sempre complicados, quando não impossíveis. As pedras negras cobertas de limo verde são um risco, qualquer escorregão e você pode tomar um tombo. Não há fontes de
água potável ou alojamento esperando pelos visitantes, tudo precisa ser trazido do continente. As trilhas são íngremes e cobertas de mato e
faz um calor constante; a chuva, quando vem, ocorre com tempestades de vento cortante. Como não há proteção, os raios constituem mais um perigo. A vida animal no entanto é o grande risco para o visitante que se aventura nesse local nada convidativo. Há
aranhas venenosas, lacraias, taturanas, e claro, cobras, milhares delas – no chão, nas pedras, na
relva, nas árvores... por toda parte!
Mesmo assim, pisar pela primeira vez na rocha que serve de porto
é um alívio para quem passou a noite balançando em uma lancha ancorada – com as
devidas consequências gástricas inerentes a marinheiros de primeira viagem, como
era o meu caso. O percurso desde o continente levara apenas duas horas, mas era
madrugada quando chegamos, e desembarcar sem a luz do sol estava fora de
cogitação.
Por isso, permanecemos chacoalhando até as 6 da manhã – só então pudemos deixar o barco que voltaria ao continente para esperar o dia do nosso resgate. Eu estava debilitado e confuso quando ele começou a se distanciar da ilha, com as pessoas a bordo acenando. Não havia tempo, porém, para refletir sobre aquele momento insólito, muito menos para descansar. Uma chuva se anunciava no horizonte e precisávamos armar acampamento o quanto antes. A barraca seria o máximo de conforto que eu teria nos próximos dias. Sono tranquilo, banho, banheiro e boas refeições eram privilégios que tinham ficado na costa.
Por isso, permanecemos chacoalhando até as 6 da manhã – só então pudemos deixar o barco que voltaria ao continente para esperar o dia do nosso resgate. Eu estava debilitado e confuso quando ele começou a se distanciar da ilha, com as pessoas a bordo acenando. Não havia tempo, porém, para refletir sobre aquele momento insólito, muito menos para descansar. Uma chuva se anunciava no horizonte e precisávamos armar acampamento o quanto antes. A barraca seria o máximo de conforto que eu teria nos próximos dias. Sono tranquilo, banho, banheiro e boas refeições eram privilégios que tinham ficado na costa.
Nota: Em meados do século XIX havia planos de utilizar a ilha para o plantio extensivo de bananas. Uma companhia chegou a arrendar a área e enviar um grupo de trabalhadores para derrubar a mata atlântica e preparar o solo para o plantio. Só não contavam com as cobras. Para tentar espantar aos animais, espalharam óleo na mata e atearam fogo esperando que isso desse cabo dos répteis. A coluna de fogo foi tão alta que podia ser vista em Itanhaém, e serviu para batizar a Ilha que passou a ser chamada de Queimada Grande. É claro, de nada adiantou. As cobras continuaram atacando e assustando os trabalhadores, logo ninguém mais queria trabalhar ali e os planos foram abandonados.
Formada há 55 milhões de anos, em um desdobramento da Serra do
Mar, a ilha da Queimada Grande foi ligada ao continente em diferentes períodos
do passado. Entre 10 e 12 mil anos atrás, quando terminou a última glaciação
da Terra, a área acabou cercada pelo mar, em decorrência da elevação no nível
dos oceanos. A população de serpentes, que provavelmente eram da mesma espécie
do continente – Bothropoides jararaca –, ficou ilhada. Sem pequenos
mamíferos para caçar, as cobras precisaram se adaptar à vida em cima das
árvores, pois a principal comida disponível eram as aves, de passagem pela ilha
em suas migrações.
A mudança de padrão alimentar forçou alterações no comportamento da serpente. Enquanto o
parente continental preserva hábitos terrestres na vida adulta, a ilhoa aprendeu
a prender-se no alto das árvores pela cauda, a qual forma um laço em volta dos
galhos e a sustenta pendurada – apenas os indivíduos jovens ficam o tempo todo
no chão, pois se alimentam de lacraias, lesmas e sapos.
Outra diferenciação significativa está na potência de seu veneno. Pioneiro
nas pesquisas sobre a cobra – responsável por descrever a espécie em 1921 –, Afrânio do Amaral, diretor do Instituto Butantan, em São Paulo, aplicou em
pombos o veneno da jararaca-ilhoa e da continental. Concluiu que, para matar a
ave com a peçonha da Bothropoides insularis, era suficiente uma dose cinco vezes
menor que a dose letal do veneno da Bothropoides jararaca. Se a peçonha não matasse a presa em poucos segundos, ela poderia morrer em um lugar distante, impossibilitando o predador de comê-la. Assim, para garantir a
refeição, a cobra pica o pássaro e não o solta mais, começando a engoli-lo o mais rapidamente possível.
Nota: Isso demonstra o grau de adaptação desse animal e a maneira como a natureza age para possibilitar sua sobrevivência - em outras palavras: "Darwin estava certo". Evolução é a forma como a mãe natureza permite que suas criaturas sobrevivam.
Na Queimada Grande, todo movimento deve ser calculado, desde onde pôr a mão
até onde pisar. Mais de uma vez rolei no chão, escorreguei e me ralei nas pedras
por não ter seguido essa regra à risca.
A precariedade de nossas instalações acaba servindo como uma aula de
história. Segundo nosso guia, em pleno século 21, somos meros amadores se
comparados aos cientistas pioneiros que visitaram a ilha, como João Florêncio
Gomes, Diretor do Butantan, que em 1919, levou exemplares da jararaca ao instituto,
em São Paulo.
Nota: A expedição comandada por João Florêncio Gomes visitou a Ilha de Queimada Grande e se fixou no rochedo sul da ilha, a área mais adequada para montar acampamento por ser plana e por haver ali menos vegetação e consequentemente menos lugares para ser surpreendido por uma cobra. Florêncio deixou claro no seu diário de expedição a surpresa ao encontrar um lugar como a Ilha de Queimada Grande: "É o sonho de qualquer herpentólogo" escreveu.
Ele não estava exagerando, se um especialista está em busca de espécimens, Queimada Grande é o melhor local para encontrá-los. Estima-se que a população de cobras na ilha seja algo em torno de um animal por metro quadrado, o que significa que jamais você está a mais de 100 centímetros da morte. Queimada Grande é o maior viveiro natural de serpentes do mundo. A expedição de João Florêncio teve de enviar pedido para que o Instituto enviasse mais invólucros para carregar cobras, tamanha a quantidade de animais capturados pela equipe.
Essas expedições foram motivadas pelos relatos de moradores da ilha – funcionários da Marinha que cuidavam do farol,
instalado em 1909. Eles mencionavam constantemente a quantidade incrível de cobras na ilha, mas a maioria das pessoas no continente achava que aqueles relatos não passavam de exagero. "História de Pescador". Em uma carta, um dos faroleiros relatou: “Para cúmulo de infelicidade, os
moradores da Queimada Grande, de vez em quando se veem privados até
das próprias galinhas, que criam para sua subsistência, pois que, sendo lá o
‘paraíso das cobras’, esses pobres animais são frequentemente dizimados”,
escreveu um deles em 1921.
Nota: O que não faltam são histórias e lendas aterrorizantes a respeito de Queimada Grande. Os habitantes do litoral relatam dois casos sinistros envolvendo ataques de serpentes. Em uma delas, um pescador resolveu desembarcar na ilha para apanhar bananas. Deixando a canoa no rochedo ele entrou na mata e acabou sendo picado logo que escalou uma árvore. O homem conseguiu correr de volta para a canoa, mas acabou sucumbindo ao veneno da cobra antes de chegar a costa. A canoa foi encontrada dias depois em alto mar com o cadáver deitado em uma piscina de sangue. O veneno fez com que ele sofresse horríveis hemorragias sangrando por todos os orifícios.
A segunda lenda menciona a horrível morte do operador de farol da ilha e de sua família. Dizem que uma noite, após uma forte chuva, centenas de cobras entraram na casa e atacaram o homem, sua esposa e três filhos. Eles tentaram chegar a um navio para escapar, mas as serpentes os atacaram de tal forma que eles sequer chegaram até o litoral. Os corpos estavam caídos pela casa, as faces petrificadas em profundo pavor.
Diante de todas as dificuldades existentes, um farol automatizado foi finalmente instalado na década de 1940, e felizmente o equipamento dispensa até hoje a presença de pessoas em tempo integral na ilha.
Notas: No período anterior a instalação do Farol, houve pelo menos dois naufrágios na costa de Queimada Grande. O navio mercante Rio
Negro, do Lloyd
Brasileiro, naufragou em 17
de julho de 1893. Construído em 1872, era um navio a vapor de pequeno porte,
com cerca de 450 toneladas. Naufragou por colisão com a ilha, devido ao mau
tempo, encontrando-se atualmente a uma profundidade de 12 a 18 metros. A tripulação foi toda resgatada e não houve baixas.
Já o Navio mercante Tocantins, também do
Lloyd Brasileiro, naufragou em 30 de agosto de 1933. Era uma embarcação de construção inglesa e foi a pique durante uma forte tempestade. Os sobreviventes nadaram até Queimada Grande e conseguiram escalar os rochedos buscando proteção. Não sabiam dos perigosos habitantes que infestavam o lugar. Dos doze náufragos, quatro foram mortos pelas jararacas, outros três também foram picados mas conseguiram sobreviver graças ao resgate rápido das autoridades. Os jornais da época noticiaram o acontecimento, chamando Queimada Grande de "Ilha da Morte".
A quantidade assombrosa de serpentes atraiu outros cientistas, como o belga
Alphonse Richard Hoge, a partir da metade da década de 1960, Pedro Antônio
Federsoni Júnior, nos anos 1980, e Otávio Marques, dos anos 1990 até hoje. Aníbal Megarejo, ao
qual Damasceno e Rosa acompanharam em sua primeira expedição à ilha, no fim de
2010 comentou: “Na Mata Atlântica existe grande biodiversidade de serpentes, mas sempre
com densidade populacional pequena. Há esconderijos, e é difícil de
localizá-las.”
Isso pode ser verdade em qualquer lugar, mas não em Queimada Grande.
Na noite anterior à nossa partida, contabilizamos 48
encontros com jararacas-ilhoas. Isso tudo em apenas três dias de estadia. Eu e João estávamos na
cozinha, depois de falar com nossas famílias no telefone – o isolamento não é o
bastante para afetar o alcance do sinal de celular –, quando ouvimos os gritos
de Damasceno. “Tem uma
cobra bem no lugar em que você estava sentado!” Entreolhamos-nos, atônitos. Até
então, sabia-se que a espécie não fica em lugares com muito vento, como era o
caso do lugar escolhido para montar acampamento, e que ela é ativa apenas durante o dia. Mas lá estava ela. A ilha nos
surpreendia de novo.
Na manhã seguinte, o mar está calmo como uma piscina. Todo o equipamento e as
roupas foram embarcados na lancha que veio nos resgatar, e o pessoal da
expedição saiu para uma missão final: instalar uma câmera-armadilha na
mata. Dei-me o direito de não ver mais cobras pelos próximos meses e fiquei na lancha, enfim relaxado, olhando para o mar – onde as jararacas não chegam!
Então me dou conta de que avisto uma mulher pela primeira vez em mais de 72
horas. Ela pula do barco com graça e acena para mim. É uma miragem? Jogo-me na
água de calça, tênis e camiseta. Chego ao encontro dela em minutos, e sou
recebido com uma máscara de mergulho. “Dá uma olhada lá embaixo”, diz ela.
Assim que desço abaixo da superfície, avisto duas enormes arraias-pintadas e
uma infinidade de peixes menores e águas-vivas. Um mundo novo, belo e sereno,
que contrasta com a tensão da vida em terra na Queimada Grande.
Os momentos no mar aliviam o cansaço e a ansiedade. Se dias antes eu chegara
fraco e amedrontado, agora me sinto resistente e corajoso. Minha estadia na ilha
faz sentido. Presenciei um momento-chave para uma criatura que se adaptou a
condições desfavoráveis. Conservar o seu lar, a
ilha da Queimada Grande, não é questão de salvar uma espécie, mas de manter vivo
um grande laboratório, que nos ensina, todos os dias, a importância de
evoluir.
Legal, vou mandar minha ex-estagiária que tem fobia a cobras pra lá...
ResponderExcluirCara, muito maneiro isso como tem coisa legal e cthulhuiode no Brasil, parabéns por nos brindar com essas matérias.
ResponderExcluirValeu Lúcio! Realmente tem muitas coisas estranhas e bizarras no território brasileiro, várias delas com enorme apelo cthulhoide.
ResponderExcluirManeiro o artigo, eu já conhecia um pouco sobre Queimada Grande, já que sou de Itanhém o/
ResponderExcluirProvavelmente dá um bom conto de horror, envolveno Yig, o deus-serpente ciado por Lovecraft, ou o povo-serpente...
ResponderExcluirLegal, já sei onde mandar minha sogra pra passar as ferias ;D
ResponderExcluirsó pode "visitar" a ilha quem tem autorização é isso?
ResponderExcluirestou lendo em 2016 maravilhada com o seu relato,parou de usar o blog? poxaa
ResponderExcluirdevia extinguir de vez esses animais maldito
ResponderExcluirEstou lendo em 2018, seu relato foi muito completo,esclarecedor, de fácil entendimento, obrigada pela riqueza de detalhes, aprendi muitas coisas.
ResponderExcluirPorque dizer quando vc leu o artigo sendo que a data ja está em sima do comentário?
ResponderExcluirAch legal o "de" tal ano. Como se a pessoa estivesse enviando uma mensagem pro passado, que será lida pelo autor na época em que o artigo foi escrito, e não hoje.
ResponderExcluirMuito boa a matéria, obrigado por compartilhar conosco , nosso brasil tem muitas coisas maravilhosas. É muito bom descobrir cada vez mais.
ResponderExcluir