sexta-feira, 29 de junho de 2018

Massa sem Forma - A Lenda do Golem de Praga


Alguém já se perguntou qual a origem do Golem?
Aquele mesmo! A estátua de pedra animada que muita gente conhece através dos jogos de Fantasia Heróica medieval. Nos jogos, os Golem são descritos como criaturas animadas magicamente, construídas por poderosos feiticeiros ou alquimistas e imbuídos com uma fagulha de vida, usados para proteger e defender santuários e templos contra invasores.
Muitos podem não saber, mas o golem é parte do folclore judaico. De todas as lendas a respeito dessas míticas criaturas, nenhuma é mais famosa do que aquela a respeito do Golem de Praga e de seu criador o Rabino Loew. Sobre eles, já se escreveram livros, peças de teatro, contos e até mesmo filmes foram feitos a respeito.
No final da Idade Média, a cidade de Praga era um dos centros urbanos mais importantes do Sacro Império Romano Germânico, era também a casa de uma grande comunidade judaica que reunia estudiosos e místicos. Dentre estes, o honorável Rabino Judah Loew ben Bezalel foi provavelmente o mais conhecido e estimado. Ele desfrutou de uma longa vida, entre 1513 e 1609, e se destacou como um valoroso defensor da comunidade judaica, perseguida por vários inimigos. Seus seguidores o admiravam de tal maneira que ele era chamado no dia a dia de "Venerável".
A palavra "golem" aparece na Bíblia (no Salmo 139:16), e significa "massa sem forma". Em hebraico, a tradução é "substância inacabada". De acordo com a Lei do Talmud, Adão (o primeiro homem) foi um golem nas primeiras doze horas de sua existência, indicando que antes de receber a centelha de vida soprada por Yeovah ele não possuía alma. Em outra lenda, o Profeta Jeremias teria construído um golem. Já uma passagem talmúdica (Sanhedrin 65b) conta que um estudioso da Babilônia chamado Rava construiu um homem de barro e o enviou ao Rabino Zera que tentou conversar com ele. Quando percebeu que este não era capaz de falar ou de se expressar, ele o mandou embora dizendo: "Você não passa de poeira, volte para ela" ao que, o golem se desmanchou.

A maioria dos estudiosos sérios, acredita que essas lendas a respeito da criação de vida são meramente simbólicas, e podem se referir ao despertar espiritual, não a criação de um constructo animado.


Alguns entretanto interpretam as estórias sobre o golem de modo literal, e acreditam que é possível criar tais criaturas do nada. No antigo documento judaico intitulado Sefer Yetzirah (O Livro da Criação/Formação), constam instruções a respeito da construção, criação e animação de golems. Volumes muito antigos do mesmo tratado contém comentários de rabinos que explicam como eles realizaram o ritual que permite dar vida a um objeto inanimado.

Na maioria das versões, o golem é construído com barro, argila, pedras e cordas para lhe dar sustentação. Em seguida ele é moldado com as próprias mãos em um formato que lembra vagamente o corpo de um ser humano. Não há necessidade de que ele seja perfeito, o objetivo não é que o golem se passe por uma pessoa, assim as feições acabam por ser brutas e imperfeitas.

Há muitas maneiras de se trazer um golem à vida. Em uma versão, por exemplo, é possível animar uma estátua se o seu criador andar ou dançar em círculos ao seu redor recitando uma combinação de palavras no alfabeto hebraico. A dança se encerra quando o criador se aproxima do ouvido direito da estátua e sussurra o nome secreto de Deus. Outra maneira de dar vida a criatura é escrever uma combinação de letras contendo os símbolos aleph, mem e tav (estas palavras combinadas formam emet, que significa verdade) na testa do golem. Em seguida um sopro na boca da estátua faz com que ela respire profundamente e passe a viver. A terceira maneira, e talvez a mais conhecida, é deixar um espaço oco onde ficaria a boca da criatura e depositar nela um pergaminho com o nome de Deus escrito.

Seja qual for a maneira de animar o golem, as estórias são bem claras: uma vez criado por um rabino, a criatura passa a ser um ser vivo, ainda que construído com matéria bruta. Ele obedece às ordens de seu criador, é imune a qualquer ferimento e só pode ser desfeito pela vontade de quem o construiu. Segundo as lendas, a força vital que anima o Golem e a resistência de seu corpo fazem dele uma máquina indestrutível. Sua força equivale a de dezenas de homens, seus punhos podem pulverizar uma parede ou destruir uma casa inteira. O golem se move lentamente, uma vez que seu corpo é pesado e pouco articulado, mas enquanto anda ele não produz qualquer som. Seus passos são furtivos e mesmo na calada da noite ele consegue se esgueirar por ruas e lugares apertados sem ser percebido. Sua capacidade de entrar e sair de qualquer lugar, mesmo aqueles vigiados, é famosa. É possível que o golem seja imbuído de alguma capacidade sobrenatural que ele veste como um manto para transitar por onde bem entender quando está levando à cargo uma missão.

Mas qual o propósito de se criar um golem, ou melhor ainda, porque os rabinos simplesmente não criam vários deles para defender seu povo?

Para responder essas questões, melhor retornar a história do Rabino Loew.


Em primeiro lugar, é preciso entender que mesmo para um homem com inúmeras virtudes, e com uma capacidade mística notável, criar vida é proibido. Deus é o único quem pode gerar vida do barro. Tal ação só pode ser justificada quando muitas vidas estão em risco e a criação do golem se mostra como a única possibilidade de salvação. Segundo a lenda o Rabino Loew recebeu uma permissão divina para construir seu golem utilizando fórmulas cabalísticas comunicadas a ele por intermédio de sonhos. Os sonhos eram uma espécie de aviso para que Loew protegesse os judeus de Praga contra os pogrons religiosos que se aproximavam.

Na época, o Império era governado por Rudolf II e embora este fosse um monarca esclarecido, os judeus de Praga sofriam frequentes ataques e eram vítimas de perseguição. O Rabino teria sonhado com a invasão e a destruição da sinagoga de Praga no feriado de Páscoa de 1580. Nesse dia, um padre chamado Taddeush iria incitar a população da cidade e comandar uma multidão com o objetivo de incendiar o templo. Para evitar essa tragédia ele começou a construir o golem meses antes. Mas mesmo com a aprovação de Deus e com seu conhecimento, a tarefa não era simples e nem fácil. As fórmulas cabalísticas haviam sido entregues, mas o rabino precisava decifrar cuidadosamente cada trecho. Ele teria também de empregar uma série de palavras poderosas que podiam ser recitadas ritualisticamente apenas a cada geração e que poderiam ser a sua perdição. O poder que elas desencadeariam poderia se virar contra o próprio rabino e custar a vida não só dele, mas de todos que ele amava.

Para criar o golem, o Rabino contou com a ajuda de dois assistentes. Seu cunhado, um Kohen (um judeu descendente de uma antiga ordem sacerdotal) e um pupilo, um levita (um judeu que descende de servos que trabalhavam no templo). Ele explicou aos ajudantes que precisaria de quatro elementos - fogo, água, ar e terra, e rituais específicos (Zirufim) dedicados a cada um destes. Os dois ajudantes representariam o fogo e a água, o Rabino seria o ar e o golem a terra. Cada um dos elementos foi totalmente purificado, uma vez que qualquer falha poderia destruí-los. O ritual se iniciou com a leitura de vários capítulos do livro sagrado (A Torah) e do Sefer Yezira que o rabino havia escrito graças aos seus sonhos. Em seguida o grupo seguiu para o Rio Moldau nos arredores de Praga. Lá, sob a luz de tochas eles começaram a moldar o corpo do gigante feito com o barro extraído das margens lamacentas. Quando terminaram, o golem estava diante deles, como a face observando o firmamento. Eles se colocaram aos seus pés, olhando para seu rosto sem expressão.   


O Kohen andou sete vezes ao redor do corpo, da esquerda para a direita recitando o Zirufim do Fogo. O barro então foi se aquecendo e ficou vermelho, como brasa. Então o Levita deu mais sete voltas ao redor do corpo, da direita para a esquerda, recitando seu Zirufim da Água. O calor arrefeceu a medida que o orvalho aderia ao corpo o esfriando com um assovio. Então, o Rabino Loew andou ao redor do corpo, sete vezes em uma direção, sete vezes na inversa e depositou na boca deste um pergaminho no qual havia escrito o Shem Hameforash, o nome de Deus. Ele se curvou para o leste, para o oeste, sul e norte e então soprou o Zirufim do Ar. Em seguida, os três homens repetiram juntos: "E Ele respirou em sua boca, o sopro da vida; e a criatura ganhou o ânimo para viver".

Segundo a lenda o Golem então abriu os seus olhos e se voltou para contemplar o seu criador. Eles o vestiram com um manto de carneiro e o levaram até a sinagoga antes do nascer do sol.

Nas semanas seguintes, o golem realizou a tarefa de eliminar os inimigos dos judeus em Praga. O Rabino Loew enviou a criatura na calada da noite para matar o padre rancoroso. Um grupo de homens, furiosos com o acontecido foram até a sinagoga exigindo justiça. Inocentes foram feridos e eles teriam incendiado o lugar sagrado não fosse o Rabino comandar o golem a aparecer e lidar com os invasores. Todos os homens foram mortos pelo golem que não poupou nenhum deles de sua fúria.

A lenda logo se espalhou por Praga e a lenda de que uma criatura protegia os judeus se tornou famosa. A despeito de seu ódio, os perseguidores não mais ousavam atacar a sinagoga ou fazer mal aos judeus que lá viviam.

Assim foi por muitos anos, mas embora o golem tenha tido sucesso protegendo os judeus da cidade a estória não teria um final feliz. Com o tempo, o golem foi se tornando cada vez mais forte e destrutivo. Com a morte do Rabino Loew, a criatura foi ganhando vontade própria e se tornando rebelde. Uma noite, ele deixou a sinagoga onde repousava ganhando as ruas e matando inocentes. Alguns acreditam que o golem foi então escondido no porão do templo e o acesso lacrado com tijolos e concreto. A entrada no lugar foi proibida por séculos e ninguém tinha permissão para entrar. Outra lenda diz que o golem foi libertado e que uma vez experimentando a liberdade, vagou pela Europa Oriental até decidir se afundar no Danúbio quando descobriu que jamais encontraria paz e que era um perigo para todos ao seu redor.

A lenda do Golem se tornou extremamente popular em Praga. A famosa novela de Mary Shelley "Frankenstein - O Moderno Prometeus" teria buscado inspiração na estória do golem de praga. Contos e estórias sobre a criatura foram muito populares no século XVIII e XIX. No início do século passado, o golem foi adaptado para o cinema no filme mudo alemão Der Golem (1915). Sua imagem impactante serviu mais tarde como inspiração para a figura da criatura de Frankenstein no filme dirigido por James Whale com Boris Karlof em 1931.


É curioso mas a lenda do golem, embora provavelmente não passasse de uma fábula criada por Rabinos para proteger sua comunidade, continuou viva por muito tempo. 

Durante a Segunda Grande Guerra, quando os alemães invadiaram a Tchecoslováquia, os judeus foram sistematicamente dizimados. O Bairro judeu, Mallá Stragna foi esvaziado e segundo boatos agentes da Ahnenerbe (o Departamento de História Ariana - um dos braços da Sociedade Thule) se encarregaram em recolher quaisquer documentos e pergaminhos que mencionasse o golem ou sua criação.

O comandante nazista encarregado da ocupação de Praga, o notório Reinhard Heydrich teria assumido pessoalmente a tarefa de reunir toda documentação e qualquer indício da existência do golem e enviar imediatamente o material para Berlim. Heydrich era um fiel seguidor da Kripo e membro fundador da Sicherheitsdienst (uma afiliada da SS) e foi o representante de Adolf Hitler na fatídica Conferência de Wamsee na qual os nazistas decidiram iniciar a Solução Final. Há rumores de que Heydrich encontrou farto material que planejava levar pessoalmente ao QG nazista. No caminho, sua comitiva caiu em uma emboscada organizada por comandos aliados e rebeldes tchecos - a Operação Anthropoid (1942), que o assassinaram. Durante a ação, o veículo em que estavam os documentos foi incendiado e tudo acabou se perdendo. No final de 1945, os escombros do Bairro judeu foram revistados mas nenhum sinal da documentação foi encontrada. Supostamente tudo se perdeu nos anos negros da guerra.

Desde o século XVI não se tem notícia de um golem sendo criado em nenhuma parte do mundo.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

A Caixa do Dybbuk - A misteriosa caixa que aprisiona uma força maligna


Parece que existem nesse mundo certos objetos que atraem para si lendas e histórias fantásticas.

Seja qual for o motivo, forças sobrenaturais, espíritos, entidades, ou maldições parecem gravitar ao redor desses itens, impregnando cada um deles com algo estranho que desafia nossa capacidade de explicar e compreender. Um desses objetos impressionantes surgiu há alguns anos em uma popular página de vendas da internet e imediatamente mexeu com a imaginação das pessoas com histórias sobre estranhos incidentes ao seu redor. E ela continua gerando narrativas cada vez mais estranhas.

A história a respeito do que veio a ser conhecido como Caixa do Dybbuk (fala-se DAI-Buk), ganhou nos últimos anos o status de Lenda Urbana. Ela envolve uma velha caixa de madeira bastante arranhada e dilapidada, cujo passado sombrio foi apresentado por seu proprietário, Kevin Mannis um colecionador de antiguidades do Oregon. Imediatamente quando a história foi contada ela ganhou notoriedade entre os interessados pelo sobrenatural.

A caixa comprada por Mannis vinha acompanhada de uma história bizarra que ele ouviu do dono anterior. Segundo este, a caixa pertenceu originalmente a um importante rabino que a manteve por muitas gerações. Eventualmente ela acabou indo parar nas mãos da avó do dono original, uma sobrevivente do Holocausto. A avó foi a única sobrevivente da família, e com alguns outros judeus, ela conseguiu imigrar para a Espanha onde tomou posse da caixa. Ao que parece, a caixa havia sido comprada no final da década de 30 depois que a sinagoga onde ela era mantida foi incendiada. O protetor da caixa, o rabino em questão, foi morto e a maioria de seus bens confiscados. A caixa, por não parecer especialmente valiosa, acabou sendo vendida por uma ninharia, indo parar nas mãos de um negociante espanhol que a levou para a Galícia. Obviamente ele não tinha nenhuma ideia a respeito do que era a caixa e quando a guerra terminou, sabendo que se tratava de um objeto ligado a judeus, decidiu entregá-lo a mulher que professava essa fé.

Essa parte da história é curiosa uma vez que o comerciante não pediu nada em troca da caixa, simplesmente perguntou se a mulher era de origem judaica e quando ela confirmou, entregou-lhe o objeto dizendo: "Isto é para você, mas se tiver juízo vai mantê-la fechada para sempre".

Quando a mulher, então com 20 e poucos anos conseguiu documentos para imigrar para os Estados Unidos, levou consigo a caixa e a manteve por muitos anos como uma espécie de tesouro da família. Ela casou e constituiu família, se estabelecendo em New Jersey. A caixa sempre ficou guardada cuidadosamente, um mistério a respeito do qual ela evitava falar. Em 1992, a mulher já com idade avançada chamou sua filha e revelou a ela o que sabia a respeito da caixa.


"Essa é uma Caixa de Dybbuk, ouça com atenção pois você jamais deve abri-la", alertou com grande seriedade antes de prosseguir: "Um rabino aprisionou um espírito maligno chamado Dybbuk em seu interior muito tempo atrás. Esse espírito é uma espécie de Demônio, uma entidade maligna que só trará tristeza e sofrimento caso um dia consiga escapar. Eu mantenho essa caixa há muito tempo e agora chegou a sua vez que ficar com ela".

Quando a filha perguntou se aquilo era algum tipo de brincadeira a velha revelou como havia obtido a caixa e fez a filha prometer que o objeto seria mantido em segurança. A seriedade de suas palavras serviram para convencê-la de que aquilo não era simples excentricidade de uma velha, mas algo solene e de grande importância.

Finalmente a filha perguntou examinando a caixa: "Você já a abriu? Sabe o que existe no seu interior?"

Ao que a mulher respondeu consternada: "É por saber que eu lhe digo... nunca abra essa caixa" e lhe fez prometer que sua vontade seria obedecida.

O tempo passou, a guardiã da caixa morreu em 1995, e o objeto ficou em poder de sua filha por algum tempo. Em 2002 ela passou para as mãos de seu último dono na família, o homem que a vendeu para Kevin Mannis, após contar essa incrível história.

"Você nunca teve curiosidade de abrir?", Mannis quis saber depois de ouvir a história. O homem que trouxe a caixa até a pequena loja de antiquário no Oregon acenou negativamente:

"Eu nunca abri, é algo de família" ele explicou, "sinceramente eu não acredito nessas histórias, mas por uma questão de respeito jamais quis saber o que existe aí dentro", respondeu olhando a caixa que estava sobre a bancada da loja. "Pode ter qualquer coisa!" arriscou em seguida com um sorriso: "Ouro, prata, jóias... pode não ter nada".

"Pode ter o tal demônio", completou Mannis.

"Se você acredita nessas coisas...", ponderou o homem dando de ombros.

Apesar, ou talvez por causa da história sinistra, o antiquário acabou ficando com a caixa, intrigado com o que lhe foi relatado. Era afinal o tipo de história que "vende um objeto" e acabaria despertando a curiosidade de algum comprador em potencial. E não é isso que as lojas de antiguidade procuram? Algo diferente do normal, algo que atraia o comprador?

A caixa ficou em poder de Mannis por alguns dias enquanto ele debatia consigo mesmo a respeito do que fazer. O mais provável é que tivesse sido enganado pelo vendedor e a história não passasse de uma bobagem fabricada, na melhor das hipóteses uma superstição tola, na pior, estaria vazia, ou teria em seu interior alguma tolice.

Mannis era um bom antiquário e sabia avaliar objetos para determinar que a caixa era de fato antiga. A madeira era trabalhada e os símbolos em hebraico entalhados eram muito bem feitos, um trabalho cuidadoso de carpintaria. Além disso, os detalhes em bronze eram claramente de origem judaica, o que reforçava sua suspeita de que a caixa fosse um tipo de maleta usada por um rabino itinerante para carregar objetos religiosos. Estava claro que havia algo no interior da caixa, ao pegá-la era possível sentir um peso no interior, mas o que seria?

Em duas ocasiões Mannis esteve próximo de abrir a caixa, mas no último momento cedeu a um pressentimento inexplicável. "Bobagem! dizia a si mesmo. "Mas e se..." ponderava a seguir sem ser capaz de completar o argumento em contrário.  

Enfim, o antiquário decidiu que aquilo já havia ido longe demais e que se pretendia se manter no negócio de comercializar objetos antigos, tinha de afastar esse tipo de superstição barata em nome da praticidade. Usando um pequeno formão ele enfim rompeu o lacre de cera que mantinha a caixa lacrada, quebrando ao mesmo tempo a regra de jamais olhar o que existia no interior.

"Foi um tanto frustrante", contou depois de abrir a misteriosa caixa.

Ela continha uma coleção eclética de objetos variados, sem dúvida de origem judaica que incluíam um pequeno cálice de vinho em estanho, um pedaço de granito de 28 centímetros com a palavra hebraica "shalom" (que significa paz) talhada, um velho castiçal de bronze, duas moedas inglesas (pennies) da década de 1920 e os items mais curiosos, dois pequenos cachos de cabelos amarrados com corda. 

Mannis revirou a caixa em busca de mais algum objeto oculto e encontrou em uma reentrância um botão de rosa ressecada.


Como o próprio Mannis reconheceu mais tarde, ele ficou frustrado com o conteúdo da caixa. Nada daquilo era realmente valioso, embora os objetos fossem claramente antiguidades que podiam ser negociadas, não valiam tanto quanto ele havia pagado pela caixa.

Mas é a partir desse ponto que a história começa a ganhar contornos estranhos, construindo lentamente a fama da Caixa do Dybbuk como um objeto amaldiçoado.

"As coisas começaram lentamente!" conta o antiquário se recordando do que houve nas semanas seguintes.

O primeiro incidente ocorreu apenas dois dias depois da caixa ser aberta. Mannis havia saído para cuidar de alguns negócios e quando retornou descobriu a loja toda remexida, como se alguém tivesse jogado objetos e quebrado peças sem qualquer motivo. Uma vez que a vizinhança já havia reportado a ação de ladrões, ele não se importou muito com o ocorrido, muito embora nada tenha sido levado, nem mesmo dinheiro na caixa registradora. Uma das câmeras de segurança da loja simplesmente se desligou. Além disso, que tipo de ladrão seria capaz de arrombar a porta da frente sem quebrar a fechadura e sem causar nenhum dano a ela? O antiquário achou aquilo estranho, mas não encarou como algo relacionado com a Caixa do Dybbuk, esta aliás continuava no mesmo lugar em que ele a havia deixado.

Passaram-se duas semanas para que algo mais dramático acontecesse. Mannus conta que a instalação elétrica da loja, que havia passado por uma revisão recente começou a apresentar problemas com as lâmpadas acendendo e apagando sem ninguém por perto. Um técnico foi chamado e disse que tudo estava em ordem, mas no dia seguinte um atendente da loja contou aterrorizado que várias lâmpadas estouraram sozinhas.

Mannis continuava sem acreditar em alguma conexão daquilo com a Caixa do Dybbuk, mas então um incidente que ele próprio testemunhou fez com que suas convicções fossem colocadas em cheque. 

"Eu cheguei um dia cedo e abri a loja. Logo senti uma fragrância de jasmim no ar, como se alguém com um perfume muito forte tivesse estado ali poucos momentos antes, o que era impossível já que a loja estava fechada. Foi então que ouvi um som vindo do escritório que parecia com alguém xingando e reclamando num idioma que a princípio eu não identifiquei. Achei que podia ser um ladrão, talvez o mesmo que atacou semanas antes".

Mannis apanhou um objeto pesado e abriu a porta do escritório, encontrando o lugar vazio, mas um cheiro muito forte de jasmim. "Era um cheiro muito forte, quase insuportável!" contou lembrando do incidente. "Posteriormente também descobri que as palavras que ouvi eram ditas em hebraico, embora jamais tenha sido capaz de entender o que significava".

Eventualmente Mannis decidiu retirar a Caixa do Dybbuk de sua loja e a levou para casa de sua mãe onde pretendia deixá-la por algum tempo, ao menos até decidir o que fazer. Naquela mesma noite, depois de deixar a caixa lá, sua mãe sofreu um derrame e ficou cega. Ela sobreviveu à experiência mas implorou para que o filho levasse aquela coisa embora pois conseguia sentir a malevolência emanando ali dentro. 

Mannis acabou levando a Caixa do Dybbuk para sua própria casa. Ele começou a dar telefonemas procurando por um rabino que pudesse responder questões a respeito da caixa e quem sabe exorcizar a presença em seu interior. Naquela mesma noite, Mannis experimentou um pesadelo aterrorizante com uma mulher velha que tentava sufocá-lo. Ao acordar aos gritos, o cheiro de jasmim em seu quarto era quase insuportável, mais estranho ainda era o fato dele ter encontrado marcas de arranhões, mordidas e ferimentos ao redor do pescoço, exatamente onde, no pesadelo, a velha havia lhe agarrado.


Além desse pesadelo, Mannis começou a perceber figuras sombrias no canto da vista, como se formas fantasmagóricas estivessem espreitando na periferia de sua visão. À beira de um ataque de nervos, ele visitou duas sinagogas, mas os rabinos disseram não poder ajudá-lo. Um terceiro pediu para ver a caixa e depois de estudá-la disse que o objeto realmente era muito antigo e pertencia a crença judaica. O rabino entretanto, não estava familiarizado com o termo Dybbuk e portanto não poderia ajudá-lo com um exorcismo. Ainda assim ele garantiu que estudaria o caso e buscaria uma solução.

"Eu não posso simplesmente jogar a caixa fora?" perguntou o antiquário, para o que o rabino respondeu que não faria diferença e que poderia até ser pior pois dessa forma o espírito não poderia ser aprisionado novamente.

Finalmente Mannis surgiu com uma ideia no mínimo inusitada para lidar com a situação. Ele decidiu anunciar o objeto no site de vendas eBay, explicando como a caixa havia parado em suas mãos, bem como tudo o que sabia a respeito e também os fenômenos associados a ela. Na descrição do item à venda ele escreveu:

"Eu destruiria essa coisa imediatamente se imaginasse que isso terminaria com essa situação, mas tenho medo que isso torne tudo ainda pior. A verdade é que não sei com o que estou lidando e por isso gostaria que alguém com o devido conhecimento e entendimento ficasse com ela. Eu imagino que alguém que compreende desses assuntos possa se interessar. Se você for uma dessas pessoas, por favor, compre esse item e faça com ela o necessário para encerrar com essa presença maligna".      

Em 2003 um comprador chamado Iosif Nietzke arrematou o item pagando por ela meros 140 dólares e levando para casa a caixa, seu conteúdo estranho e qualquer maldição que a acompanhasse. Quase que imediatamente depois de ter adquirido a caixa, Nietzke começou a mencionar coisas estranhas acontecendo ao seu redor. Objetos eletrônicos apresentavam mal funcionamento, luzes piscavam e objetos pareciam sumir e reaparecer em lugares estranhos. Além disso, o estranho cheiro de jasmim (quase sufocante) podia ser sentido cada noite mais forte. Depois que uma surpreendente infestação de insetos se instalou nas paredes de sua casa, Nietzke achou que já havia experimentado o bastante de um objeto amaldiçoado. Ele resolveu então se livrar dela da mesma maneira que o dono anterior havia feito, colocando a caixa para venda no eBay.

Dessa vez a caixa foi comprada por alguém que não era um mero curioso no assunto, mas uma pessoa que podia jogar uma luz sobre a Caixa do Dybbuk. Jason Haxton era curador do museu da Universidade do Missouri e estudioso de objetos religiosos em Kirksville, Missouri.

  

Haxton não teve melhor sorte do que os donos anteriores no que diz respeito à maldição. Imediatamente depois de adquirir o objeto ele começou a sofrer com vários problemas de saúde com vergões, erupções na pele, crises de alergia, tosse, fatiga e problemas na garganta sem motivo aparente. Ele também mencionava um forte odor de jasmim e de urina de gato todas as manhãs no local onde a caixa ficava guardada. Haxton entrou em contato com Rebecca Edery, uma especialista em artefatos judaicos para estudar a caixa e ela determinou que ela era de fato uma relíquia judaica, possivelmente usada para aprisionar espíritos malignos. 

"As duas portas se abrem como um tipo de armário religioso, ou Aron HaKodesh, um receptáculo para os Manuscritos Sagrados da Torah. Objetos como esse eram usados por rabinos que tinham de sair da sinagoga para confortar alguém que não podia se locomover até o templo. A Torah era carregada ali dentro, portanto não era qualquer objeto. O aprisionamento de um espírito maligno dentro de um Aron HaKodesh fazia sentido já que ele poderia ser considerado sagrado por comportar a Torah. Uma manifestação espúria presa dentro dessa caixa ficaria impedida de escapar".

Haxton, que ainda é o dono da Caixa do Dybbuk, foi aconselhado a buscar o entendimento de outros rabinos para a realização de um ritual que prendesse o espírito novamente. Ele jamais mencionou detalhes de como, quando ou onde, mas tal ritual foi realizado em meados de 2011, com a ajuda de três rabinos ortodoxos que conseguiram exorcizar a presença e aprisioná-la na Caixa. Depois do ocorrido, Haxton se negou a falar a respeito do assunto e se desviou de todas as perguntas feitas a respeito, chegando ao ponto de se negar a participar de entrevistas e palestras. Na única vez em que concordou em falar sobre o assunto disse:

"Eu sou o guardião dessa caixa há sete anos, e nesse período experimentei diferentes sentimentos a respeito do que ela representa. Cada pessoa que deteve essa caixa conta a respeito de um sentimento de perda e alívio. Eu trabalhei com cientistas e cabalistas, ocultistas e especialistas em parapsicologia que puderam explicar um pouco a respeito do que ela é. Eu a mantenho comigo, lacrada em uma arca de acácia, sempre trancafiada. Isso acalmou seus efeitos e não tive mais problemas com ela. Estou satisfeito com o fato dela estar pacificada".


Mas isso não impediu que o objeto ganhasse enorme notoriedade. A Caixa do Dybbuk desde então se tornou uma espécie de fenômeno com sua estranha história sendo contada em numerosos artigos, livros e filmes, mais notavelmente "Possessão", dirigido por Sam Raimi em 2012. Ele também foi objeto de grande debate e discussão em fóruns da internet a ponto de se tornar uma espécie de lenda urbana. Mas até que ponto essa história é verdadeira? Bem, depende muito a quem você perguntar.

Os céticos são rápidos em apontar que a história possui uma série de buracos que carecem de verificação ou provas que jamais foram apresentadas. Tudo o que se tem são testemunhos de pessoas que alegadamente ficaram com a caixa por algum tempo. Além disso, a identidade de alguns dos alegados proprietários, como Iosif Nietzke e do vendedor original, jamais foram reveladas, o que pode significar que eles jamais existiram. O antiquário Kevin Mannis, que colocou a caixa à venda no eBay escreveu um livro a respeito de sua experiência sobrenatural, o que fez muitas pessoas levantarem a suposição de que tudo não passou de uma farsa criada para gerar interesse, construir um mito e faturar com a curiosidade alheia. Além disso, existe o argumento contra a existência de maldições e objetos amaldiçoados que não passariam de meras superstições e exagero.

Outras pessoas, com a mente mais aberta contemplam a possibilidade de que forças misteriosas existem e que podem ser capturadas em objetos, como no caso, uma caixa. Infelizmente as poucas informações que se tem a respeito da origem da caixa tornam muito difícil determinar quem teria conduzido o ritual para prender a tal entidade maligna. Existem tradições místicas cabalísticas que possuem elaborados rituais visando aprisionar e até controlar demônios, fazendo incidir sobre eles o Poder Divino. Mas que tipo de entidade seria essa? A respeito desse pormenor, o dono atual da Caixa do Dybbuk, Jason Haxton, deu sua opinião:

"Eu acredito que a caixa em si seja neutra - não é boa e nem má. Enquanto ela for mantida lacrada e isolada, afastada do alcance das pessoas, ela se manterá nesse estado de neutralidade e não poderá causar nenhum dano. O que ela encerra no seu interior é por definição algo maligno. Eu não sou capaz de definir o que é, e francamente nenhum dos especialistas soube dizer ao certo. O consenso, no entanto, é que ele está melhor preso do que livre. E se depender de mim, ele irá ficar preso para sempre!"

Embora tudo indique que a misteriosa Caixa do Dybbuk seja um objeto real, ainda existe muito debate a respeito de sua natureza. Ela seria um artefato místico usado para capturar uma entidade perversa ou não passaria de uma quinquilharia velha? Com o tempo, as histórias foram se multiplicando e outras Caixas de Dybbuk apareceram ao redor do mundo, cada qual com sua própria mitologia e associada a histórias aterrorizantes.

A verdade nesse objeto amaldiçoado parece fora de nosso alcance. Talvez, a única maneira de realmente saber se existe algo, além de mera superstição, seria abrir a caixa e deixar, seja lá o que está dentro dela, escapar, mas isso, poucas pessoas estariam dispostos a fazer.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Defesas Místicas - Armadilhas e Proteções contra entidades malignas


Desde que existem lendas a respeito de espíritos malignos, fantasmas e demônios, existem histórias a respeito de formas de se proteger deles e aprisioná-los. Parece ser da natureza humana tentar exercer controle sobre aquilo que não compreendemos, domar o que é, por definição, indomável. Por muitos séculos houve esforços para atrair e prender entidades sobrenaturais que estão muito além de nossa compreensão, obrigá-los à servitude com a ameaça de mantê-los presos pela eternidade.

A ideia de espantar e confinar forças malignas não é exatamente uma novidade, está presente em várias culturas ao redor do mundo e ao longo dos séculos. Há exemplos notáveis entre os Caldeus na Babilônia,  os Zoroastristas na Pérsia e os povos hebreus da Judeia, que se valeram de rituais elaborados para esse fim. Usando desde bacias de terracota até garrafas encantadas, passando por caixas com símbolos entalhados e estatuetas, magos buscavam agir sobre seres sobrenaturais. Tais ferramentas eram utilizadas de muitas maneiras: para afastar o mal, intimidar espíritos maliciosos, proteger casas, fazendas, prédios públicos e até mesmo cemitérios. Recobertos de símbolos místicos cabalísticos esses objetos teriam poder sobre o mundo sobrenatural. Até mesmo os primeiros cristãos teriam se valido desses instrumentos em sua luta com as forças diabólicas.    

Várias culturas possuem artefatos similares cujo propósito era se proteger e aprisionar espíritos.

Os Ojos de Dios ou "Olhos de Deus" são naturais da América Central, e eram usados para espantar demônios e fazer com que eles perdessem seus poderes sobre os mortais. Na África ocidental havia as carrancas, cujo propósito era aterrorizar os espíritos e fazer com que fugissem. Na América do Norte, os nativos tinham os Dreamcatchers (Apanhadores de Sonhos), tramas de madeira e ossos, para reter os espíritos antes que pudessem adentrar nos sonhos das pessoas. Na América do Sul, árvores de tronco oco eram usadas por pajés que no interior delas confinavam espíritos espúrios. No Tibet crânios de carneiros com símbolos arranhados também serviam para conter os tulpa e aprisioná-los. Nas tribos do Pacífico Norte, pilhas de ossos especialmente consagrados eram usados para atrair demônios. Não faltam no mundo exemplos de totens, amuletos e talismãs encantados utilizados para esse fim.


Na Europa era relativamente comum usar armadilhas para espíritos chamadas de "Garrafas de Bruxa" para capturar espíritos. Essas garrafas especialmente preparadas eram preenchidas com cabelo, unhas cortadas, sêmen, saliva, dentes além de sangue e urina para atrair as entidades. Atraídos pelo conteúdo da garrafa, quando nela entravam, esta era selada. Em seguida, adornada com símbolos de contenção, vidro e espelhos para manter o espírito aprisionado, além de alertas para que a tampa jamais fosse removida. A garrafa era então enterrada, jogada ao mar ou mantida em um lugar seguro. 

Há várias versões para esses rituais, com algumas tradições exigindo complexos preparativos antes que os espíritos fossem adequadamente capturados no vasilhame. Infelizmente, esses mesmos procedimentos, segundo alguns feiticeiros, também poderiam ser usados para capturar almas humanas.

Armadilhas para Demônios eram extremamente populares na Europa Medieval, onde medo e incerteza tornavam espíritos malignos uma coisa muito real aos olhos da população. O Velho Testamento falava dessas coisas, e a Lenda do Rei Salomão afirmava que ele havia recebido do próprio Arcanjo Miguel um anel, inscrito com selos mágicos que tinha poderes sobre o mal: o Selo de Salomão. Esse anel mágico dava ao Rei hebreu o poder de prender e controlar demônios. Ele é parte das tradições judaicas, cristãs e islâmicas. Histórias como a de Salomão levaram a crença de que demônios podiam ser compelidos a servidão por indivíduos que conhecem os métodos para tal façanha. No entender medieval, tais seres eram poderosos e perversos, potencialmente perigosos, mas muitos deles eram estúpidos e podiam ser ludibriados. Símbolos cabalísticos, objetos reluzentes e promessas vazias os atraíam e quando eles entravam na armadilha, bastava o mago fechar a tampa.


Em muitos exemplos as armadilhas para demônios na Europa Medieval consistiam de símbolos arcanos desenhados para atrair a atenção dessas entidades. Os símbolos obedeciam a elaborados padrões geométricos, com runas e nomes traçados cuidadosamente no chão ou em objetos específicos. Quando uma entidade se aproximava para analisar, o mago o prendia com um ritual que os impedia de deixar nosso mundo. Ao menos em teoria... o que não falta na literatura oculta são exemplos de criaturas escapando e se vingando de magos severamente. O adágio dos ocultistas "Jamais invoque aquilo que não pode mandar embora" se tornou quase um mandamento.

Por sua vez, símbolos místicos especialmente criados para oferecer proteção contra depredações sobrenaturais foram encontrados em cavernas e porões medievais, em casas simples e castelos, datando do século VI até os século XVIII e XIX. Ao que parece, as pessoas temiam que seus lares fossem invadidos por entidades malévolas e por isso tratavam de cobrir batentes de porta, o piso e pilares de sustentação com glifos protetores. Mesmo em épocas "mais iluminadas", parecia algo corriqueiro proteger a casa contra o desconhecido.

Com uma história tão longa, não é estranho que armadilhas para demônios ou proteções continuem sendo descobertas nos lugares menos prováveis. Em 2014, arqueólogos britânicos removeram tábuas do piso de uma casa onde encontraram linhas de proteção riscadas com giz evocando algum tipo de defesa arcana. A casa em questão, chamada Knoles Manor, fica em Kent, na Inglaterra e pertenceu ao Arcebispo de Canterbury no século XV. O mesmo arcebispo reprimiu esse tipo de "magia camponesa", comparando-a a heresia. Segundo os arqueólogos, os símbolos devem ter sido desenhados quando o arcebispo habitava a casa e esta passou por uma reforma completa.  


Símbolos semelhantes foram encontrados em uma propriedade de campo pertencente ao Rei Jaime I. Estudiosos acreditam que nobres próximos ao monarca encomendaram a um "mago" que criasse padrões e símbolos de proteção, além de armadilhas para manter os espíritos afastados. Considerando que eles foram feitos na conturbada época da Revolta de Guy Fawkes, tudo indica que o propósito era se precaver contra inimigos. Especula-se se o Rei sabia ou não que tais símbolos existiam. Eles foram desenhados em baixo das tábuas do assoalho, no quarto real (para afastar miasmas e doenças na cama do Rei), ao redor da lareira (para evitar incêndios provocados por demônios) e em um ponto exatamente abaixo de onde se localizava o trono usado para audiências públicas. Com isso o Rei se veria protegido de todas influências negativas no plano sobrenatural.

Contudo, Jaime I não seria o único Rei britânico recorrendo a essas proteções místicas.

Henrique VIII contava com especialistas em ocultismo que verificavam a melhor maneira de defendê-lo de possíveis ataques sobrenaturais. O temor de que o Rei fosse vítima de uma possessão de ordem demoníaca ou acometido de uma maldição lançada por um bruxo, constituía uma preocupação da mais alta seriedade. Comparativamente era quase a mesma preocupação que chefes de estado tem nos dias atuais a respeito de terrorismo. Quando Henrique VIII promoveu o cisma com a Igreja de Roma, seus conselheiros para assuntos sobrenaturais ganharam ainda mais importância, uma vez que se temia um possível ataque no plano espiritual. Há rumores de que ele foi aconselhado a usar roupas com símbolos de proteção costurados na parte interna dos trajes. Se é verdade ou não, não se sabe.


Da mesma maneira, a herdeira de Henrique VIII, Elizabeth I ficou conhecida por contar com conselheiros especializados no mundo invisível. O mais famoso desses doutos especialistas foi o famoso médico John Dee que entre outras coisas se ocupava de preservar defesas contra todo tipo de malefício, maldição e artimanha arcana. O médico era uma verdadeira autoridade no período e sua opinião levada em conta, inclusive em vários assuntos de estado. Historiadores acreditam que Elizabeth não se ocupava desses temas, mas que aceitava os conselhos de Dee quanto a sua segurança no plano sobrenatural, acatando suas sugestões e medidas de proteção.

Dee entrou para a história como um dos magos mais influentes no período elizabethano, conhecido por ter elaborado os princípios da magia enoquiana, envolvendo a conjuração de Anjos da Guarda e de ordem superior. Muitos místicos reputam a ele um papel central no estudo do ocultismo, sobretudo no que diz respeito a símbolos de contenção e proteção. 

Desde que existe a crença em espíritos malignos e demônios, existem lendas a respeito de como se proteger da ação de tais seres. Será que esses símbolos e runas exercem algum poder sobre o Reino do Além? Será que eles são a chave para banir o mal que tem afligido a humanidade desde épocas remotas? 

A despeito da opinião das pessoas, esse ainda é um interessante aspecto de nossa história, um que talvez precisemos estudar mais a fundo.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Cinema Tentacular: Um Lugar Silencioso - "Silêncio é sobrevivência"


A Era Dourada do horror em que vivemos atualmente tem se caracterizado não pelo festival de sangue e vísceras (o splatterfest que fez a alegria de gerações), mas por filmes inteligentes capazes de mexer com a nossa imaginação. São filmes que não usam apenas o jump scare ou o choque puro e simples, mas recorrem aos lugares escuros da nossa percepção.

Os fãs do horror sabem que os melhores filmes do gênero são aqueles que sugerem as coisas e deixam o próprio espectador conceber a dimensão do medo. Aquilo que não vemos, e que é apenas sugerido, por vezes, se torna muito pior. Filmes como "A Bruxa", "The Babadook" e "Corrente do Mal" são exemplos desse tipo de filme que faz, mesmo aqueles que torcem o nariz para o gênero reconhecer sua importância. Esmerando-se em contar a história, sem se importar com lentidão, esses filmes conseguem construir um clima que vai crescendo até atingir massa crítica. E quando chegam a ela, a tensão reverbera. Bons diretores já entenderam que aliando competência técnica (som, efeitos e elenco) com uma história atraente, o resultado é notável.

Talvez por isso "Um Lugar Silencioso" seja um filme especial, por conseguir atingir com excelência todos esses requisitos.


Partindo de uma premissa simples, ele mostra que o horror, como gênero ainda tem muito a ser explorado e a melhor maneira de fazê-lo é com sutileza. Não se trata de um filme inovador, mas a forma competente como ele foi realizado rende uma pequena joia. Mais que isso, é um filme capaz de agradar facilmente, mesmo os mais exigentes fãs do gênero.

Um Lugar Quieto começa com o casal Evelyn e Lee Abbot (na vida real o casal, Emily Blunt e John Krasinski) guiando seus filhos Marcus (Noah Jupe), Regan (Millicent Simmonds), e Beau (Cade Woodward) através de uma cidade abandonada e vazia. Lá encontram uma farmácia onde começam a explorar por suprimentos. O silêncio é absoluto! Eles falam apenas através de linguagem de sinais e mesmo os menores sussurros são evitados. A razão de tanto cuidado fica imediatamente clara quando o filho mais novo ignora a ordem do pai de deixar para trás um brinquedo barulhento e resolve levá-lo consigo. Um borrão monstruoso que se move com enorme velocidade agarra o menino e desaparece com ele. Não é preciso mostrar os detalhes a seguir: o sangue fica na imaginação do espectador, subentendido pelo rosto transfigurado de um pai impotente diante de um destino medonho.


Nessa introdução, o filme já ganha o público e o prepara para o que vai acontecer no restante da projeção. "Um Lugar Silencioso" é como tentar andar em uma montanha russa sem fazer um som: em algum momento você vai querer gritar!

Gradualmente nós entendemos que a família vive em um mundo atingido por uma tragédia global. Não sabemos exatamente o que houve, mas compreendemos que o planeta foi varrido por uma horda de criaturas que caçaram e exterminam a raça humana sistematicamente. Esses monstros são predadores perfeitos: caçam pelo som, são capazes de ouvir uma agulha caindo, à distâncias absurdas e são incansáveis quando detectam uma presa em potencial. Se eles o ouvirem, virão atrás de você! Considerando que essas criaturas não tem uma fraqueza discernível, sendo virtualmente à prova de balas, manter o silêncio absoluto parece ser a única forma de evitar a morte certa.


Muito pouco dessa informação é transmitida verbalmente para o público. Ao invés disso, as únicas pistas a que temos acesso aparecem na forma de velhos jornais e manchetes pregadas em um quadro, descrevendo os eventos que levaram a situação vigente. Essa tática poderia frustrar a audiência, procurando maiores explicações, mas o mistério do que está acontecendo ajuda a conjurar a aura que pesa sobre todo o filme. A da incerteza! Tudo o que se sabe é que ELES vieram, ELES mataram e ELES levaram a raça humana até perto da extinção.

Apesar de jogar uma bomba dessa magnitude, "Um Lugar Silencioso" é um filme que prima pela sutileza.

O diretor John Krasinski é relativamente inexperiente atrás das câmeras, de fato esse é seu primeiro filme de peso. Mesmo assim, ele entrega um excelente trabalho contando sua história apelando somente ao que se vê, jamais ao que se ouve. Nós logo aprendemos porque a família é obrigada a manter o silêncio, a andar de pés descalços sobre trilhas de areia fofa e as crianças jogam Banco Imobiliário com dados e peças feitas de pano. No silêncio se encontra a sobrevivência, já que, o Som, o menor deles, significa perigo. Todo momento em que um objeto produz um ruído - como uma tábua rangendo ou uma panela caindo, o público fica em suspense, esperando por alguma coisa horrível acontecer.


Esses elementos de sutileza funcionam perfeitamente para construir o clima de apreensão que transborda da tela para a platéia que coopera ficando em absoluto silêncio. Nesse mundo onde qualquer som pode ser o seu último, um brinquedo barulhento ou um prego solto podem ser seu pior inimigo. A habilidade de Krasinski em contar essa história e de convencer as pessoas a embarcar nela, é o que torna "Um Lugar Silencioso" tão interessante.

Mas o filme vai além da boa narrativa e introduz personagens muito bem construídos com quem acabamos nos importando, o que é um baita mérito considerando que nenhum deles pode falar. O casal principal tenta proteger sua família e reconstruir suas vidas em uma fazenda isolada na qual adaptaram a infraestrutura ao cruel e inaudível dia a dia. 

Para tornar tudo ainda mais complicado Evelyn está grávida e a perspectiva de um bebê faz descer sobre a casa um sentimento de dúvida quanto ao futuro da família. De um ponto de vista prático, o fato da personagem estar grávida parece forçado, afinal quem iria trazer uma criança para esse mundo? Mas de um ponto de vista humano, perpetuar a espécie poderia ser compreendido como o último propósito de nossa raça. Um risco, sim, mas uma obrigação. 


Enquanto isso, as crianças também precisam se adaptar diante desse novo mundo. Marcus tem que aprender com o pai a explorar as ruínas do mundo e conhecer os seus perigos. Só assim ele poderá ocupar o lugar de Lee se o pior acontecer. Já a filha mais velha do casal, Regan, (interpretada por Millicent Simmonds que é surda na vida real) é uma adolescente que se culpa pela morte do irmão mais novo. Ela acredita que o pai deixou de confiar nela por conta da tragédia. Incapazes de discutir o que aconteceu eles vão represando suas emoções.

Logo a família terá que enfrentar uma grave crise e para sobreviver seus membros terão de confiar uns nos outros. Mas não se engane! "Um Lugar Silencioso" não é apenas um terror disfarçado de drama familiar e problemas de relacionamento. O terror toma conta da tela justamente quando Lee e Beau estão fora e Evelyn precisa lidar com sua gravidez. E quanto a Reagan, ela terá de provar que é capaz de ajudar sua família quando as criaturas forem atraídas para sua casa - aos montes!

Por trás de uma história simples, o suspense vai se construindo e a hora final é um impressionante exercício de pavor. Com criaturas medonhas vagando pela casa e um novo membro da família que ignora as regras de "silêncio é sobrevivência" nós ficamos na ponta da poltrona esperando pelo pior. Para quem gosta daquela sensação de angústia, na qual a gente segura a respiração, pode se preparar, esse filme vai proporcionar uma experiência duradoura. 


O filme prima pela criação dos monstros. O trabalho feito para determinar a natureza das criaturas é nada menos do que sensacional. Idealizados pela ILM (Industrial Light and Magic), os predadores foram desenhados para se comportar da forma mais realista possível. Eles se movem de uma maneira peculiar, produzem ruídos, hesitam e agem de uma forma especial, como se realmente fossem coisas vivas determinadas a matar. Quando um deles está em cena, o medo dos personagens é quase palpável.

John Krasinski disse em entrevistas que jamais teve interesse em filmes de terror e que sempre se assustou com facilidade ao assisti-los. Ironicamente ele conseguiu criar um filme que será lembrado como um dos expoentes dessa nova geração de filmes de horror "com algo mais". De sua abertura silenciosa até o final atordoante, "Um Lugar Silencioso" tem tudo para conquistar um lugar de honra no rol dos filmes que nos mantém reféns por algumas horas.

É claro, com o sucesso estrondoso de crítica e bilheteria, que o transformou em uma agradável surpresa nessa temporada, a sequência já está engatilhada. Se mantiver a mesma base, a franquia tem tudo para ser duradoura.


Trailer:


sexta-feira, 15 de junho de 2018

Cemitério de Bárbaros - Restos de guerreiros mostra a brutalidade do passado


No mundo da Arqueologia, onde existem ossos, existe história. 

Então, onde há milhares de ossos, provavelmente haverá uma grande história.

A descoberta de uma trincheira com milhares de ossadas humanas em um Pântano na Dinamarca levanta muitas questões. Sobretudo por se tratarem dos ossos de guerreiros bárbaros. Em geral, os bárbaros estão do lado de quem promoveu o massacre, não de quem foi massacrado, certo? Bem, nem sempre...

Uma equipe de arqueólogos alemães estava realizando trabalhos de escavação em um pântano de turfas em Alken Enge na confluência do Vale do Rio Illerup, quando começou a encontrar ossadas, literalmente "brotando do chão". A área passou por uma grande enchente nas últimas semanas que ajudaram a revelar a macabra descoberta. Originalmente policiais haviam sido chamados para examinar os restos humanos, mas logo ficou claro que aquelas mortes haviam ocorrido há muito tempo.

Exames preliminares de radio-carbono dataram os ossos com uma idade aproximada de 2 mil anos, e que eles foram colocados no solo entre os anos 20 a.C e 54 d.C. A análise também determinou que a provável origem dessas pessoas era germânica. A quantidade de ossos é realmente impressionante e especialistas acreditam que haja algo em torno de 380 homens enterrados no descampado, com idades entre 15 e 60 - sendo que a idade média é baixa, em torno dos 20 anos.   


De acordo com um estudo publicado após a descoberta, os arqueólogos conseguiram traçar algumas teorias a respeito do que teria acontecido com esses guerreiros que encontraram um destino brutal. O exame dos restos revelou uma história macabra de sangue, violência e morte.

As tribos germânicas eram chamadas pelos romanos genericamente de "bárbaros" em face de sua selvageria, ferocidade e comportamento agressivo. A fama dos guerreiros germânicos se tornou lendária entre as legiões romanas que os consideravam entre seus inimigos mais ferrenhos. Esses bárbaros costumavam adotar um estilo caótico de combate que privilegiava o enfrentamento aberto, com a força acima de qualquer perícia. Os guerreiros não distribuíam seu contingente quando a batalha se iniciava, eles literalmente corriam para cima do oponente gritando e correndo, bradando e golpeando sem se importar com o que estivesse na sua frente. 

Muitos deles não pareciam ter medo e quando se chocavam com os escudos romanos os empurravam para que eles retrocedessem. Cronistas apelidavam as tropas germânicas de "turba ferox", pois seu comportamento era literalmente o de um bando animalesco. Não obstante, eles compensavam esse estilo de combate com uma determinação e força assombrosas. Muitos atacavam completamente embriagados, com uma fúria que aterrorizava os povos mais civilizados. Bebiam o sangue de animais selvagens, frequentemente usavam armaduras de couro e rebites de ferro, capacetes, escudos... privilegiavam armas pesadas como machados, lanças longas e martelos. 

Entretanto, o bando encontrado nas charnecas da Dinamarca parece ter encontrado algum oponente capaz de fazer frente a eles no quesito selvageria. Na época, Roma estava empreendendo uma campanha de invasão dos territórios germânicos em larga escala. Os combates haviam se tornado frequentes e a medida que as legiões avançavam para o norte encontravam resistência dos povos locais. 

Batalhas em larga escala na região eram, no entanto, raras, já que as tribos germânicas agiam independentemente. As tensões entre as tribos bárbaras facilitava o avanço dos romanos. Séculos de rivalidades e ódio tribal fazia com que algumas tribos preferissem até mesmo os estrangeiros aos seus inimigos de longa data. Quando uma legião fazia um movimento e atacava uma determinada tribo, outras, constituídas também por germânicos, se movimentavam para atacar e acabar com elas de uma vez por todas. De fato, antes dos romanos iniciarem seu avanço, procuraram saber quais tribos tinham uma relação conturbada e exploraram essas rivalidades ao máximo.


Segundo os arqueólogos, o grupo de guerreiros encontrados no pântano, não foram vítimas dos romanos, mas de outros bárbaros. O que mais chama a atenção, contudo, é a brutalidade desse massacre.

"A alta incidência de traumatismo post-mortem evidencia o caráter destrutivo do combate, havia verdadeiro ódio nesse campo de batalha", disse Johannes Tarchen, um dos responsáveis pela análise das ossadas. "Isso foi uma matança! Não há como dizer de outra maneira".

Ao que sugerem os restos, a grande maioria dos mortos eram jovens, poucos deles com ferimentos anteriores de batalha o que aponta para um grupo de combatentes novatos. É possível que eles fossem um grupo de reforços de alguma tribo, guerreiros em treinamento ou ainda jovens que estavam marchando para se juntar a um grupo de veteranos. Eles estavam armados com machados leves e porretes, armas tipicamente destinadas a um grupo de combatentes de pouca experiência, já que são ferramentas simples, que demandam pouco treino.

Jovens que eram preparados para se tornar guerreiros recebiam as primeiras noções de combate diretamente de seus pais ou irmãos. Muitos deles carregavam armas simples, uma vez que as de melhor qualidade ficavam com o chefe da família ou algum guerreiro mais calejado. Muitos soldados "herdavam"  as armas de seus oponentes e costumavam trocá-las após um combate. Todas que foram encontradas na vala eram de baixa qualidade.


A luta também não parece ter ocorrido no pântano. De acordo com os pesquisadores, o combate teria ocorrido em um terreno seco, em algum lugar próximo, dentro do limite de uma milha. Quando o inimigo era derrotado, o costume era juntar os corpos e contabilizar quantos deles haviam morrido, já que as tribos mantinham uma projeção de quantos guerreiros havia entre os seus rivais. O massacre de um contingente como esse seria um duro golpe para uma tribo absorver. Sem a chance de preparar uma nova geração de guerreiros, toda tribo poderia ser exterminada.

Vários cadáveres foram vilipendiados após a morte. É provável que enquanto era realizada a contagem dos corpos, os responsáveis pela tarefa aproveitaram para massacrar os cadáveres. Crânios foram despedaçados por golpes produzidos post-morten, falanges foram cortadas possivelmente para permitir que dedos fossem levados como souvenir e em alguns casos, houve decapitação. Os corpos foram simplesmente deixados para trás, já que não era costume enterrar os inimigos logo depois da batalha.

Ao que parece alguém - não está claro se aliados, parentes, ou até a própria tribo inimiga - retornou em algum momento, removeu peças de roupa, armas e pertences dos mortos e reuniu o que restou na trincheira onde eles foram enterrados. A essa altura, muitos dos cadáveres já haviam sido reduzidos a ossos pela ação do clima e de animais carniceiros. 

A trincheira escavada tinha cerca de um metro e meio de profundidade e estava forrada com restos de turfa extraídos do pântano. Alguns dos restos foram empilhados e sobre eles colocaram pedras chatas de cor branca. Os crânios, muitos deles fraturados, foram colocados sobre as pilhas, já que eles serviam para identificar que esses ossos pertenciam a seres humanos. Alguns povos acreditavam que enterrar os ossos era uma forma de afastar fantasmas que poderiam se erguer e assombrar a região. Não era raro que tribos germânicas, após um combate violento como esse, buscassem outra área para viver. 


Em um extrato superior ao local onde os ossos foram depositados os especialistas encontraram restos de animais, cerâmica e vários artefatos. Isso indica que, sabendo que ali haviam muitos corpos sepultados, era costume oferecer a eles presentes e sacrifícios. Essa prática pode ter vigorado por décadas - talvez uma forma de apaziguar espíritos inquietos.

Os especialistas ainda esperam encontrar pistas que ajudem a compreender quem eram e por que estes jovens guerreiros foram massacrados de maneira tão brutal. 

O cemitério dos bárbaros é uma amostra de como a existência desses povos era violenta e exasperante, um tempo em que a vida se resumia ao implacável princípio de matar ou morrer.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Pulp Cthulhu - Aventura, ação e heróis contra os Mythos Ancestrais



Dezesseis anos atrás, a Chaosium fez um anúncio a respeito do lançamento de um suplemento para Call of Cthulhu com o título PULP CTHULHU

A proposta era criar um jogo que tivesse a mesma ambientação inspirada pela obra de H.P. Lovecraft, mas com um espírito diferente, no qual o horror dos Mythos, ainda que aterrorizante, pudesse ser enfrentado, combatido e até superado pelos personagens. No melhor estilo Pulp, os personagens seriam indivíduos com um espírito de aventura, dedicados a ação e capazes de lidar com o perigo. Não meramente investigadores, mas verdadeiros heróis! 

Parecia interessante e muita gente ficou animada com a notícia. Mas não era para ser...

Idas e vindas fizeram com que o projeto fosse abandonado quando o livro já estava prestes a ser lançado. Dizem que a Chaosium chegou tão perto da falência em virtude do lançamento da mega campanha Beyond the Mountains of Madness que qualquer outro projeto teve de ser abortado indefinidamente. E assim, Pulp foi engavetado em meados de 2002.

De lá para cá, três outros sistemas usaram a ideia original contida em Pulp Cthulhu: Rastro de Cthulhu, editado pela Pelgrane Press (e aqui no Brasil pela Retropunk) em 2008, apresentou um estilo voltado para o lado mais aventuresco do jogo; Realms of Cthulhu (da Reality Blurs) lançado em 2009 usava o sistema Rápido, Furioso e Divertido de Savage Worlds, enquanto Raiders of R'Lyeh (que deve estar saindo em breve, após um longo atraso no Financiamento Coletivo) utilizava um sistema derivado do BRP privilegiando ação e empolgação.


A despeito dessas opções de sistemas, a Chaosium, em fase de reestruturação, decidiu que era o momento de trazer de volta o projeto Pulp Cthulhu. E aqui está ele! Com um longo atraso, Pulp Cthulhu enfim chegou até nós, não para a quinta edição, como havia sido idealizado, mas para a Sétima. Ele foi, aliás, o primeiro suplemento com regras opcionais para a mais recente edição de Call of Cthulhu, expandindo os conceitos originais e permitindo alterar o foco do jogo de modo significativo. 

O horror continua presente, firme e forte, mas os personagens finalmente possuem habilidades e capacidades que os tornam aptos a suportar o horror e revidar à altura. Nas palavras de um amigo, "enquanto seu professor em Call of Cthulhu se depara com um monstro bisonho e enlouquece, os personagens de Pulp Cthulhu, encaram essa mesma coisa, sacam suas armas e abrem caminho à bala".

O jogo apresenta regras e mecânicas que melhoram os investigadores e fornece tanto a eles, quanto aos vilões habilidades notáveis como poderes psíquicos, ciência bizarra, e até feitiços que lhes permite lidar com os horrores ancestrais. Ele também é um guia completo para a construção de cenários e aventuras Pulp. É importante destacar que a ambientação transfere a ação dos Loucos Anos 1920 para a Década da Depressão, como ficou conhecida a década de 1930.

O ponto de partida para Pulp Cthulhu não poderia deixar de ser outro além dos próprios PULPS, aquelas revistas baratas com histórias de aventuras e mistérios, que tiveram seu ápice nos anos 30. A literatura Pulp era puro escapismo; fornecia emoções baratas com heróis quase indestrutíveis, belas garotas, femme fatales, paisagens exóticas e vilões detestáveis. Era tudo o que o público desejava para esquecer a depressão, o desemprego e as dificuldades do dia a dia; por alguns centavos era possível ser transportado para uma aventura vertiginosa. Os protagonistas pulp desafiavam a morte a cada edição. Fossem eles aventureiros, exploradores, detetives, cowboys, militares ou astronautas, esses homens e mulheres usavam suas incríveis habilidades para derrotar as ameaças que surgiam diante deles. Indiana Jones, o Sombra, Rocketeer, Fantasma e Flash Gordon são apenas alguns exemplos de heróis surgidos nesse período, personagens que tiveram enorme sucesso e que são lembrados até os dias de hoje.


Algumas pessoas, sobretudo os defensores do purismo lovecraftiano, defendem que o Gênero Pulp não se encaixa na proposta do Horror Cósmico. Um dos cânones de Lovecraft é que os Mythos são tão terríveis e tão devastadores que o mero vislumbre deles é suficiente para enlouquecer o mais audaz aventureiro. Pulp Cthulhu subverte essa noção. O investigador não fica imune a perda de sanidade, mas ele é muito mais capaz de sobreviver a esse confronto do que outros personagens. 

Ao longo do livro, o Guardião tem a opção de ajustar o quão Pulp ele quer que seja a sua experiência de jogo utilizando o Pulp-o-Rama. Aumentando ou diminuindo esse "medidor pulp", o Guardião pode determinar se os investigadores são pessoas comuns ou heróis com acesso a talentos e habilidades únicas. Há três graduações para aplicar as regras em sua mesa de Jogo Pulp:  Baixa, Média e Altamente Pulp. A graduação mais baixa usa as regras básicas de CoC 7 (com poucas alterações cosméticas); o nível Pulp intermediário estabelece habilidades únicas e vantagens bem distintas, já o Altamente Pulp abre um leque de opções para ação e drama com personagens quase indestrutíveis.

A criação de personagens em Pulp Cthulhu é baseada em um mecanismo semelhante ao Call of Cthulhu clássico em sua sétima edição, com o acréscimo de alguns detalhes no processo. O grande diferencial é que o processo resulta não na criação de investigadores, mas de verdadeiros heróis. Os personagens na ambientação pulp são muito superiores em habilidades e capacidades, e isso se reflete nas regras. A primeira grande mudança é a inclusão de Arquétipos como aventureiro, Bon Vivant, Sonhador, Durão, Místico, Parceiro, Perseguidor de Riscos e assim por diante. Cada arquétipo define um atributo central que sempre será superior a 14 ou mais, garante pontos extras para gastar em um grupo de habilidades e sugere uma quantidade de talentos que o personagem possui. Outras mudanças em relação às regras convencionais incluem virtualmente dobrar os pontos de vida dos personagens e a possibilidade do investigador ter Faculdades Psíquicas.


Mas sem dúvida, reside nos Talentos a adição mais importante ao novo sistema. Divididos em quatro categorias - Física, Mental, Combativa e Outros, Talentos podem ser selecionados ou escolhidos aleatoriamente, e seus efeitos são bastante claros. Por exemplo, Cura Rápida aumenta a capacidade de recuperação do seu personagem para três PV ao dia; Discernimento Arcano diminui para metade o tempo necessário para aprender magias e garante um dado extra para lançar magias; Ataque Rápido concede ao herói um ataque extra se ele gastar pontos de sua reserva de sorte; Sombra reduz a dificuldade ou garante um dado de bonus para rolamentos de furtividade assim como permite ao personagem realizar dois ataques quando ele consegue sair de seu esconderijo sem ser percebido.

Há uma longa lista de talentos, muitos deles concedem vantagens em determinadas situações e boa parte deles depende de pontos de Sorte para serem ativados, portanto, existe um custo associado a eles. A Sorte dos heróis é uma espécie de reserva para a utilização desses talentos, quando ela se exaure, o herói deixa de ter temporariamente o Talento.

Pulp Cthulhu também faz algumas alterações na maneira como certas habilidades funcionam no decorrer do jogo. O sistema fornece maneiras mais proativas de empregar as habilidades, abrindo um leque de opções que não são normalmente contempladas no jogo clássico. Se no modo purista de Cthulhu, as habilidades são bem definidas e tem sua ação de certa forma limitada a determinadas circunstâncias, no modo Pulp há muitas possibilidades. Um personagem com a habilidade Hipnose por exemplo, pode usar esse conhecimento para aliviar traumas sofridos, mas também pode empregá-la com o objetivo de implantar sugestões hipnóticas, ajudar a recordar de acontecimentos bloqueados mentalmente, aliviar a dor ou até congelar um inimigo usando apenas a sua vontade mental.

Em outro exemplo, um personagem com Arqueologia pode usar sua habilidade, assumindo que o personagem conhece o suficiente a respeito de uma determinada civilização para ser fluente no idioma local - mesmo que não tenha reservado pontos no idioma durante a criação. Fica à critério do Guardião determinar a amplitude das habilidades, mas de um modo geral, estas são bem mais amplas.


Em termos de sistema, Pulp Cthulhu é bastante semelhante ao Basic Roleplay System, por sua vez o sistema consagrado em Call of Cthulhu. Isso significa que o sistema de porcentagens é mantido e funciona de uma forma bastante similar. Há algumas alterações em relação a sétima edição e alguns elementos foram adaptados para adquirir um flavor mais pulp. O principal mecanismo envolve o uso de Pontos de Sorte. 

Nas antigas edições de Call of Cthulhu, Sorte era definida como um valor derivado do atributo Poder. Na sétima edição ela se tornou quase um atributo à parte, essencial para auxiliar o personagem a conseguir obter mais sucessos em momentos cruciais da história. Em Pulp Cthulhu essa regra é levada ao extremo: um jogador pode usar sua sorte para interferir em armas que falham, para evitar a morte certa, para evitar cair inconsciente em decorrência de um ferimento, para reduzir a perda de sanidade, entre outras coisas. Sorte também é usada para alimentar vários Talentos como mencionado anteriormente. Existe também um mecanismo opcional que permite ao Guardião decidir o quão Pulp vai ser a sua campanha, permitindo ou negando algumas regras específicas.

A combinação de pontos extras em habilidades, talentos e ser capaz de realizar façanhas mediante o uso de sorte torna os personagens em Pulp Cthulhu muito mais durões e capacitados do que em Chamado de Cthulhu. estamos afinal falando de heróis! E como heróis, os personagens tem que ser capazes de enfrentar uma legião de oponentes armados, escapar de criaturas tenebrosas, explodir coisas e ainda vencer obstáculos. 

É claro que a reserva de sorte é finita, mas o uso frequente de Sorte faz todo sentido em um cenário com ação vertiginosa e clima de sessão da tarde. Além disso, a Sorte pode ser recuperada entre uma sessão e outra, permitindo ao personagem "recarregar suas baterias" em meio aos perigos enfrentados estando pronto para mais na cena seguinte.


O Sistema de combate em Pulp Cthulhu também guarda enorme semelhança com o de Chamado. Não existe a regra de Ferimento crítico e o fator de cura dos personagens é bem mais rápido, o que sinaliza com personagens bem mais resistentes. Em Pulp Cthulhu, os heróis são capazes de derrubar seus oponentes com mais facilidade, mandando para a lona dúzias de inimigos, sejam eles gangsters, nazistas ou cultistas. Como acontece em filmes e na literatura do gênero Pulp, capangas e os seguidores dos vilões não são um grande obstáculo para as capacidades de um grupo de heróis, os vilões principais, no entanto, constituem o maior perigo. Vilões possuem seus próprios truques e talentos que lhes permitem ser tão, ou até mais, capazes do que os heróis na realização de feitos e façanhas. Vilões são parte muito importante do gênero pulp e portanto eles tinham de receber um tratamento especial.

Uma vez que s etrata de um jogo envolvendo Cthulhu no título, temos um sistema de sanidade. Assim como o coração das regras, o sistema de Sanidade é calcado em cima das regras da sétima edição. Mas diferente do sistema purista, na vertente pulp os heróis são mais resistentes aos horrores dos Mythos. Isso não quer dizer que eles não são afetados, apenas que eles tem maneiras de compensar essa perda de sanidade. Enquanto um típico personagem de Chamado de Cthulhu acaba desabando ao encontrar uma abominação tentacular frente a frente, em Pulp Cthulhu o personagem provavelmente ficará perturbado, mas apertará a coronha de sua arma com mais determinação para mandar essa abominação para o inferno. 

Heróis ainda podem ficar loucos e sofrer surtos de loucura, seguido de longos períodos de insanidade ao perder pontos suficientes para isso. Contudo, há mecanismos para diminuir os efeitos e permitir ao herói tirar dessas experiências traumáticas a força para reagir e superar seus próprios terrores. O mergulho na insanidade pode se manifestar através de algo chamado "Talentos de Insanidade" que são ativados quando o personagem é exposto a certas circunstâncias. Um personagem pode se tornar mais forte com o talento "Força Insana", dirigir como um ás se tornando um "Motorista Insano", ou colocar até o mais temido cultista contra a parede com o talento "Insanamente Intimidador". Nesses casos, o personagem ganha um dado de bônus ao tentar uma determinada ação. Mas isso não vem de graça, agir de maneira insana pode ter um custo muito alto e acarretar em acidentes e riscos para o próprio personagem e todos que o seguem (afinal seguir um louco pode não ser a coisa mais razoável a fazer). O mais divertido é que esses Talentos Insanos, quando usados em momentos racionais causam perda de sanidade pela loucura que eles envolvem.

No que diz respeito a magia, em Pulp Cthulhu os personagens aprendem e usam mais facilmente o conhecimento proibido. Livros são relativamente mais fáceis de serem lidos e compreendidos e é possível ler e interpretar um complexo ritual mais facilmente. Aquelas semanas necessárias para aprender uma magia aqui são abreviadas para poucas horas. Além disso, no momento em que um investigador aprende a usar uma magia ele passa a conhecê-la bem o bastante para repetir outras vezes. Com isso, temos a possibilidade de que alguns investigadores literalmente colecionem feitiços e se tornem bruxos com um farto arsenal de magias para enfrentar seus oponentes.


Como uma opção de Talentos, alguns personagens podem ter ainda, à sua disposição, Poderes Psíquicos. Existem cinco grupos de poderes descritos no livro básico: Clarividência, Previsão, Mediunidade, Psicometria e Telecinésia. Todos eles são alimentados por Pontos de Magia e abrem possibilidades para personagens interessantes: que tal criar um monge tibetano capaz de usar sua clarividência para perceber a presença dos inimigos, ou fazer uma médium capaz de "ler" objetos e conhecer sua história meramente manipulando-os ou ainda, alguém capaz de mover objetos à distância ou lançar ataques com o poder da mente.  

Outros jogos com inclinação Pulp geralmente contemplam a possibilidade dos personagens conhecerem Ciência Estranha (Weird Science). Em Pulp Cthulhu além da Ciência bizarra que permite construir pistolas de raios, mochilas voadoras e veículos avançados, temos algo chamado Weird Mythos-Science. Com esse Talento, o herói é capaz de entender o funcionamento e operação de armas, ferramentas e mecanismos criados por civilizações antigas, povos esquecidos ou até por seres não humanos. Um personagem pode aprender o funcionamento de um emissor de raios yithiano, desmontar e reproduzir os componentes de uma granada tóxica usada pelos Mi-Go, desenvolver um antídoto para veneno do Povo Serpente e assim por diante. Com um arsenal tecnológico estranho os heróis poderão dispor de um poder de fogo superior às metralhadoras Thompson e espingardas, geralmente as armas prediletas dos investigadores.

Para auxiliar o Guardião e os jogadores, o livro básico de Pulp Cthulhu possui uma excelente introdução a respeito do que é uma História Pulp. Ele devota um capítulo inteiro para detalhar os anos 1930, por excelência a época de ouro do gênero Pulp. Além disso, introduz três organizações internacionais para serem usadas com o intuito de reunir os personagens sob um mesmo objetivo. As organizações em questão são o Clube Vanguard (um perfeito clube de cavalheiros dedicados a aventuras), a Sociedade dos Exploradores (um grupo devotados a desvendar mistérios nos quatro cantos do mundo) e o Departamento 29 (um Bureau de Investigação governamental que examina coisas estranhas).  Há também a contraparte desses grupos, Cabalas Malignas formadas por cultos, irmandades e seitas lideradas por mentes criminosas cujos objetivos vão da dominação global até o Despertar dos Antigos, destruindo no processo tudo que existe em nome de seus planos megalomaníacos. O livro trás uma lista de vilões tipicamente Pulp - o gênio do mal, o velho criminoso oriental, o cientista inumano e assim por diante, a maioria deles com um envolvimento dos Mythos. Acompanhando a sessão dedicada aos Vilões temos uma lista de feitiços, alguns poderes sobrenaturais e talentos exclusivos para os caras malvados.

Pulp Cthulhu também possui um capítulo inteiro a respeito de como criar o clima e conduzir uma história de mistério em ritmo de ação. Ele examina os principais pontos da ficção de Lovecraft e analisa algumas de suas histórias mais famosas sob a perspectiva de aventuras pulp. Além disso introduz uma série de elementos que podem ser incorporados às histórias como: vilões recorrentes, cliffhangers, indivíduos suspeitos, lugares exóticos e muito mais. O material é tão bem estruturado que mesmo narradores de primeira viagem não terão dificuldades em se familiarizar com o estilo pretendido. 


 Para facilitar a vida do Guardião, Pulp Cthulhu trás nada menos do que QUATRO cenários prontos.

A coleção começa com "O Desintegrador" (The Desintegrator), aventura que serve como cenário introdutório. Tendo como pano de fundo um isolado hotel na costa da Nova Inglaterra, os heróis são contratados para participar de um leilão fechado em que uma nova e devastadora arma será oferecida para quem pagar o valor mais alto. Se essa arma cair em mãos erradas as consequências para o mundo podem ser letais. Com muitos grupos interessados em adquirir a arma, os heróis terão de negociar e enfrentar diferentes rivais - nem todos humanos. A aventura é uma ótima introdução podendo ser resolvida de várias maneiras diferentes - desde uma cuidadosa negociação, com comprometimento ou então sem a menor sutileza, recorrendo a violência.   

A aventura seguinte "Esperando pelo Furacão" (Waiting for the Hurricane) se passa em meio a um fenômeno natural nas ilhas da Flórida. Na história, os heróis descobrem uma terrível conspiração envolvendo um grupo de cultistas que planejam usar um furacão como fachada para coisas ainda mais destruidoras. A história toda tem um senso de urgência típico de uma aventura Pulp e não há tempo à perder se o grupo quiser realmente impedir o pior. Além disso, o Guardião é encorajado a trazer a ação até os heróis se eles tentarem contornar os riscos. 

O terceiro cenário "A Caixa de Pandora" (Pandora’s Box) trata de uma disputa de vários grupos por um artefato ancestral, no caso a lendária Caixa de onde escaparam todos os males do mundo. A aventura permite mais liberdade para os heróis agirem e eles terão várias pistas, testemunhas e indícios para reunir. Essa aventura guarda mais semelhança com os cenários convencionais de Chamado de Cthulhu uma vez que envolve visitas a bibliotecas, consultas de livros e outros métodos de investigação familiares ao sistema. Os inimigos e os coadjuvantes também são muito bem trabalhados e alguns deles poderão se tornar inimigos recorrentes em campanhas.

O último cenário "Um lento barco para a China" (A Slow Boat to China), ocorre à bordo do SS President Coolidge um navio que parte de San Francisco com destino a Shanghai. No decorrer da jornada, os investigadores, se envolvem com um desaparecimento e um possível suicídio que se revela algo muito mais intrigante e potencialmente letal para todos à bordo. Dependendo da classe social, os investigadores terão de cruzar as linhas de segregação e descobrir o que está acontecendo. Uma boa dose de investigação, coleta de pistas e análise de informações levará o grupo a um confronto climático.


Os cenários possuem dicas e anotações para facilitar o trabalho do Guardião que são muito bem vindas. As aventuras são bem estruturadas e sem dúvida apresentarão um bom grau de desafio para os participantes, mesmo jogadores mais experientes. 

Uma das coisas interessantes a respeito dos cenários contidos no livro é a forma como eles enfatizam a ação e a aventura acima da investigação. Chamado de Cthulhu é conhecido por ser um jogo investigativo em que a ação, quando acontece, fica reservada para os momentos finais. Aqui, a ação permeia cada encontro e cena, permitindo que estas sejam resolvidas com doses cavalares de adrenalina. Longe de ser algo ruim, sobretudo em um jogo que tem "pulp" no título, essa mudança, contudo, poderá soar estranha para alguns jogadores mais calejados, principalmente aqueles que são mais cuidadosos ao lidar com um mistério envolvendo os Mythos de Cthulhu. 

É interessante que o Guardião antes de tentar narrar essas aventuras prontas, tenha uma perfeita noção do que torna uma aventura "pulp". Se possível, os jogadores também precisam "comprar essa ideia". Se os jogadores entenderem que seus personagens são aventureiros no estilo Indiana Jones, capazes de realizar façanhas absurdas, então as aventuras tem tudo para funcionar e serem imensamente divertidas. Grupos mais tímidos de investigadores tentando se auto-preservar e tomar demasiado cuidado, poderão se divertir um pouco menos. Para quem preferir manter as coisas em um nível mais "pé no chão", nada impede que os cenários sejam adaptados para o sistema clássico de Chamado de Cthulhu.

Fisicamente, Pulp Cthulhu mantém o alto padrão de qualidade estipulado pelo Livro Básico em sua sétima edição. Capa dura, papel especial, totalmente colorido e belíssimas ilustrações ao longo de todas as páginas. A diagramação é bastante limpa, contando com caixas de texto e uma revisão extremamente profissional. O livro tem um acabamento, layout e arte comparáveis a outros livros básicos de altíssima qualidade como D&D, Legend of Five Rings ou Numenera.


A divisão dos capítulos é bem feita e o material fica bastante acessível, podendo ser consultado facilmente pelo Guardião. O Livro contém as regras necessárias para jogar a vertente Pulp, mas é necessário que o narrador interessado em mestrar as aventuras tenha um exemplar da sétima edição de Chamado de Cthulhu.

Pulp Cthulhu oferece um panorama novo para os jogadores de Chamado de Cthulhu e amplia a possibilidade de seus personagens interagirem com o universo dos Mythos. É perfeitamente possível que Guardiões desejem revisitar campanhas consagradas como Máscaras de Nyarlathotep ou Day of the Beast usando as regras pulp, o que tornaria as sessões bem mais equilibradas. Nada impede que o Guardião utilize algumas das regras apresentadas nesse suplemento em sua mesa de Chamado de Cthulhu. Uma vez que muitas das regras seriam bem vindas, sobretudo se o narrador quiser aumentar as chances de sobrevivência de seus jogadores ou deixá-los mais aptos a enfrentar os horrores.

Ao longo de muitos anos mestrando e jogando Chamado de Cthulhu, ouvi de muitas pessoas que a fragilidade dos personagens no jogo os deixava frustrados. Afinal, nas palavras de alguns "não fazia muito sentido jogar algo em que os personagens vão acabar morrendo e os sobreviventes vão enlouquecer por completo". Francamente, eu sempre achei isso um dos charmes do jogo, esse senso de niilismo e risco, mas cada um tem direito a sua opinião pessoal. 

Para quem tem reservas a respeito de Chamado, talvez seja o momento de conhecer a proposta de Pulp Cthulhu.