As pessoas se reuniam ao redor do imenso Palácio Imperial de paredes brancas imaculadas. Lá, vestido com uma casaca preta e descansando em um caixão estofado de veludo e tampa de vidro transparente, repousava o corpo de um dos mais malignos ditadores de todos os tempos. Seu nome era François Duvalier, que preferia ser chamado pelo apelido Papa Doc. Por 14 anos ele governou com mão de ferro a República do Haiti.
Seu poder não era meramente político ou militar, se baseava no medo e no puro Terror Sobrenatural. Vítima de diabetes crônica e problemas cardíacos, Papa Doc morreu aos 64 anos de idade. Seu filho, Jean Claude, chamado Baby Doc, com apenas 19 anos foi nomeado seu herdeiro. Ele jurou lealdade e foi empossado como novo Presidente do Haiti.
Papa Doc seria lembrado como um dos maiores tiranos do século XX, um ditador cruel que perseguia, torturava e mandava matar milhares de pessoas. Mais do que um monstro, ele também era considerado o legítimo Senhor da Vida e da Morte. Duvalier consolidou seu governo transmitindo a ideia de que detinha poderes sobre o mundo espiritual. Ele era um poderoso feiticeiro vodu, a chamada segunda crença de todos os haitianos. Duvalier se comportava como um bokor, um alto feiticeiro vodu. Sua expressão era sempre controlada, sua voz cuidadosamente calculada quase como um sussurro, seus movimentos lentos eram reconhecidos como o de uma pessoa próxima aos Loas - os espíritos da crença vodu. Quando subiu ao poder, Papa Doc solicitou a aliança de todos os sacerdotes vodu no país, trazendo-os até Port-au-Prince para audiências presidenciais e encorajando-os a exaltar seus supostos poderes sobrenaturais. "Meus inimigos não tem poder sobre mim" dizia ele, "eu já sou um ser imaterial e nada pode me ferir".
Filho de um professor de Port-au-Prince, Duvalier teve uma educação esmerada na Universidade de Medicina. Treinado por um grupo de médicos americanos na década de 1940, ele se interessou pelo vodu e seus muitos rituais quando era um médico do interior e vagava pelo país tratando das pessoas necessitadas. Fascinado pelos aspectos mais sinistros da crença, ele usava algumas noções da religião no exercício de sua prática médica alegando que sua perícia era aumentada pela intervenção dos Loas. Após se interessar pela política em 1957, ele acabou sendo eleito Presidente do Haiti, com apoio das forças armadas. Prometeu que realizaria uma verdadeira revolução no país, promovendo educação e salvando a economia local que estava em estado crítico.
Ao invés disso, Duvalier impôs um regime de terror em uma nação em que seus habitantes, a grande maioria descendentes de escravos, já estava habituada a brutalidade. Partidos políticos opositores foram imediatamente perseguidos, muitos exilados e outros simplesmente eliminados. Nos porões da ditadura haitiana, prisões ficaram abarrotadas de inimigos do regime que eram confinados e torturados. Papa Doc criou um órgão de repressão eficiente e extremamente violento, uma polícia secreta conhecida como Tomtom Macoute (uma palavra que significa "bicho papão"). A função dessa polícia era agir clandestinamente, impondo um regime de terror, ameaça e paranoia na população civil.
Os Tomtom Macoute usavam em seu benefício as superstições locais. Se faziam passar por feiticeiros bokor e ameaçavam não apenas matar, mas escravizar suas vítimas pela eternidade. Alguns deles transitavam pelas cidades em veículos, usando máscaras e pinturas assustadoras. Portavam facas, machadinhas e porretes, mas tinham sempre à mão armas de fogo. Alguns acreditavam que eles sabiam criar zumbis e que podiam extrair almas e prendê-las em garrafas de vidro. Entre os métodos preferidos dos Tomtom Macoute estava a decapitação e desmembramento de inimigos, além de profanação de cemitérios com o intuito de roubar os cadáveres para uso em rituais profanos. Os haitianos tinham um medo profundo da polícia política, e com razão. Os Tomtom Macoutes matavam indiscriminadamente, tinham liberdade para cobrar taxas e tributos e sua palavra jamais era questionada.
A princípio Papa Doc foi aceito pelas demais nações, uma vez que se apresentava com um ferrenho anti-comunista. Os Estados Unidos enviou para o Haiti fartos recursos em ajuda econômica, mas uma boa parcela desse apoio foi usado para a construção de uma cidade modelo chamada Duvalierville, hoje em dia uma coleção de prédios abandonados tomados pela selva. Sob o governo corrupto de Duvalier a grave situação econômica do país se deteriorou ainda mais, transformando o país no mais pobre e atrasado das Américas. Doença, fome e atraso foram apenas outros legados da administração Duvalier.
Em 1964, Duvalier se auto-proclamou Presidente vitalício. Seus opositores foram esmagados e não havia ninguém capaz de enfrentar o regime instalado. Milhares de pessoas fugiam do Haiti, cruzando fronteiras com a República Dominicana ou simplesmente tentando a sorte no mar aberto. Para ter uma ideia do caos implantado, Duvalier mandou fuzilar 65 de seus oficiais militares depois de uma tentativa de sequestro de seus filhos. Em outra ocasião, ele pessoalmente conduziu um pelotão de fuzilamento que eliminou 19 de seus conselheiros mais próximos (ministros inclusive) que ele imaginava, "poderiam" estar conspirando.
Uma das coisas que mais chama a atenção a respeito de Papa Doc era o culto a personalidade que ele começou a construir ao seu redor. A oração do "pai nosso" foi reescrita: "Nosso Doc" dizia a versão oficial do governo, "que estais no Palácio Nacional, santificado seja o vosso nome". Ele se apresentava como uma espécie de entidade, um verdadeiro Deus que vivia entre os mortais. Internacionalmente Duvalier via a si mesmo como um estadista do mesmo calibre que Charles de Gaule e exigia respeito total de seu povo. As pessoas não podiam olhar em seus olhos, erguer a cabeça ou falar sem a sua permissão. Quando Papa Doc resolvia visitar as ruas da capital, o fazia com uma comitiva de guarda costas em uma limousine Mercedes à prova de balas. Por vezes, ele mandava parar o veículo, escolhia alguém na população e entregava a ele alguns milhares de dólares.
Duvalier pessoalmente participava dos interrogatórios de presos. Em geral, um prisioneiro, ao ver Papa Doc em pessoa acabava se desfazendo em lágrimas e pavor, contava tudo que sabia. Sua figura imponente era o bastante para causar um efeito nervoso. Décadas criando uma imagem, como um tipo de ente superior ou bruxo, despertava um terror absurdo na população. Os Tomtom Macoute também usavam drogas, poções e substâncias em suas vítimas para vencer qualquer resistência. Há boatos de que Duvalier em pessoa sujava as mãos usando bisturis e alicates para torturar aqueles que o desafiavam. Havia ainda o rumor de que Papa Doc transformava suas vítimas em escravos para a eternidade, arrancando suas almas. Alguns que sobreviviam, quando retornavam às suas casas, alquebrados e feridos, eram tratados com desconfiança e chamados de zumbis, considerados como párias.
Nos anos 1960, grupos de guerrilheiros começaram a se organizar com o objetivo de derrubar o regime. Isso tornou Papa Doc ainda mais paranoico. Depois que um líder guerrilheiro foi morto em uma emboscada, Duvalier ordenou que a cabeça do sujeito fosse removida e levada até o Palácio. Lá o Presidente supostamente usou seus poderes sobrenaturais para conjurar informações sobre o restante dos guerrilheiros. Temendo que o ritual pudesse ter surtido efeito, a maioria dos líderes rebeldes fugiu do país.
Analistas acreditavam que após a morte de Papa Doc o país entraria em um turbilhão de caos político sem alguém para assumir seu lugar. Mas o que aconteceu foi justamente o contrário: uma transição de poder tranquila e sem maiores eventos. Durante o funeral de Papa Doc as forças da Polícia e do Exército espreitavam em busca de qualquer sinal de rebelião, mas não havia nenhum sinal de revolta.
Em uma transmissão de rádio para o país, Jean Claude jurou continuar a "Revolução" iniciada pelo seu pai. O poder por trás de Baby Doc, residia em sua irmã mais velha, Marie-Denise de 29 anos, que os haitianos consideravam a herdeira espiritual de Papa Doc, ela própria uma feiticeira vodu de grande influência. Vista dançando em noites sem lua pelos jardins do Palácio, a tratavam como a reencarnação de Marie Laveau, uma lendária sacerdotisa vodu morta no século XVIII. Apesar de não ser a governante de fato, Denise se tornou tão temida quanto o pai, por seus alegados poderes místicos. Nas reuniões de cúpula, bastava uma palavra dela para que todos se calassem.
Não havia garantia de que irmão e irmã pudessem evitar rivalidades e intrigas na política do Haiti. Muitos achavam que era questão de tempo até que eles disputassem o poder. Os vizinhos do Haiti se prepararam para isso, e a República Dominicana chegou a temer uma fuga de refugiados, mas nada aconteceu. Para surpresa geral, o governo se manteve forte e os irmãos sedimentaram uma espécie de aliança que atendia os interesses de ambos. Os haitianos acreditavam que Marie-Denise havia colocado uma magia sobre seu irmão, mas seja lá a razão que manteve os dois unidos, o Haiti continuou sob o domínio dos Duvalier.
Havia a crença de que a família havia firmado um pacto com o Demônio e esse teria garantido que o clã se manteria no poder indefinidamente. Contudo, os filhos pareciam não ter o mesmo magnetismo e força que o falecido pai. Apesar de manter a população sob constante vigilância e opressão, Baby Doc não era Papa Doc. Ademais, o empobrecimento do povo e colapso da economia começaram a gerar um sentimento de revolta cada vez mais forte. Fugas em massa de cidadãos haitianos em barcos improvisados chamaram a atenção do mundo para a triste situação dos refugiados reprimidos pelo regime. A falta de comida e remédios eventualmente conduziu a um rebelião que se espalhou pelas cidades e campo. Nem mesmo os Tomtom Macoutes conseguiram conter a insatisfação generalizada.
Em 1986, temendo sua captura, Baby Doc e a irmã orquestraram uma fuga. Carregando dezenas de bolsas Louis Vuitton recheadas com dinheiro, objetos de arte e jóias extraídas do Banco Central, eles tentaram asilo político na Flórida. Os Duvalier não tinham aliados na América, mas o governo havia feito sua parte abrindo as portas para algumas poucas empresas norte-americanas e mantendo os comunistas afastados de seu quintal, por isso ele foi tolerado. Eventualmente os dois preferiram migrar para a França, já que nos EUA temiam ser vítimas de atentados pela população de refugiados no país. Marie-Denise casou com um ex-ministro do governo de seu pai e passou a levar uma vida discreta, bem diferente do irmão que se tornou uma espécie de playboy internacional ocupado em gastar os milhões que havia levado para o exílio. Em 1993, em um acordo de divórcio, ele perdeu boa parte de sua fortuna.
Em 2011, Baby Doc retornou ao Haiti, um nação frágil ainda tentando se reerguer. Sua volta surpreendeu a população: era como se velhos fantasmas tivessem ressurgido para assombrar os moradores da ilha. O exílio, segundo ele, havia deixado um amargor em seu espírito e ele sentiu a necessidade de retornar depois do grande terremoto de 2010 ter devastado Port-au-Prince, matando 300 mil pessoas. Baby Doc disse que queria ajudar na reconstrução, mas não fez nada além de causar constrangimento e reavivar velhas feridas. Um grupo de advogados tentou processá-lo, mas uma junta de juízes considerou que seus crimes já haviam prescrito.
Jean Claude morreu em outubro de 2014, vítima de um ataque cardíaco fulminante aos 63 anos de idade.
Os Duvalier ainda hoje são lembrados pelo horror de seu governo e por transformar o Haiti na mais atrasada e empobrecida nação do Hemisfério Oeste. Mais do que seu legado de miséria, o clã foi responsável por um trauma que perdura até hoje no povo do Haiti. Quando questionados a respeito das causas do terremoto que arrasou o país, parte da população dizia acreditar que a tragédia tinha sido causada pela maldição do clã assassino.
Ainda hoje, se o medo em Port-au-Prince tem um nome, esse nome atende por Duvalier.
Havia a crença de que a família havia firmado um pacto com o Demônio e esse teria garantido que o clã se manteria no poder indefinidamente. Contudo, os filhos pareciam não ter o mesmo magnetismo e força que o falecido pai. Apesar de manter a população sob constante vigilância e opressão, Baby Doc não era Papa Doc. Ademais, o empobrecimento do povo e colapso da economia começaram a gerar um sentimento de revolta cada vez mais forte. Fugas em massa de cidadãos haitianos em barcos improvisados chamaram a atenção do mundo para a triste situação dos refugiados reprimidos pelo regime. A falta de comida e remédios eventualmente conduziu a um rebelião que se espalhou pelas cidades e campo. Nem mesmo os Tomtom Macoutes conseguiram conter a insatisfação generalizada.
Em 1986, temendo sua captura, Baby Doc e a irmã orquestraram uma fuga. Carregando dezenas de bolsas Louis Vuitton recheadas com dinheiro, objetos de arte e jóias extraídas do Banco Central, eles tentaram asilo político na Flórida. Os Duvalier não tinham aliados na América, mas o governo havia feito sua parte abrindo as portas para algumas poucas empresas norte-americanas e mantendo os comunistas afastados de seu quintal, por isso ele foi tolerado. Eventualmente os dois preferiram migrar para a França, já que nos EUA temiam ser vítimas de atentados pela população de refugiados no país. Marie-Denise casou com um ex-ministro do governo de seu pai e passou a levar uma vida discreta, bem diferente do irmão que se tornou uma espécie de playboy internacional ocupado em gastar os milhões que havia levado para o exílio. Em 1993, em um acordo de divórcio, ele perdeu boa parte de sua fortuna.
Em 2011, Baby Doc retornou ao Haiti, um nação frágil ainda tentando se reerguer. Sua volta surpreendeu a população: era como se velhos fantasmas tivessem ressurgido para assombrar os moradores da ilha. O exílio, segundo ele, havia deixado um amargor em seu espírito e ele sentiu a necessidade de retornar depois do grande terremoto de 2010 ter devastado Port-au-Prince, matando 300 mil pessoas. Baby Doc disse que queria ajudar na reconstrução, mas não fez nada além de causar constrangimento e reavivar velhas feridas. Um grupo de advogados tentou processá-lo, mas uma junta de juízes considerou que seus crimes já haviam prescrito.
Jean Claude morreu em outubro de 2014, vítima de um ataque cardíaco fulminante aos 63 anos de idade.
Os Duvalier ainda hoje são lembrados pelo horror de seu governo e por transformar o Haiti na mais atrasada e empobrecida nação do Hemisfério Oeste. Mais do que seu legado de miséria, o clã foi responsável por um trauma que perdura até hoje no povo do Haiti. Quando questionados a respeito das causas do terremoto que arrasou o país, parte da população dizia acreditar que a tragédia tinha sido causada pela maldição do clã assassino.
Ainda hoje, se o medo em Port-au-Prince tem um nome, esse nome atende por Duvalier.
É incrível como a realidade é cheia de personagens que parecem ter saído da ficção .
ResponderExcluirMuito bom material!
ResponderExcluirUma prova do que a ignorância pode fazer com uma nação
ResponderExcluirAcho que seria muito interessante incluir as estatísticas do personagens no fim das matérias... Excelente trabalho!
ResponderExcluir