Bem vindos à Selva!
Chamada de o Continente Negro, a África desperta o medo nos corações do Ocidente Civilizado com suas tribos selvagens, animais selvagens, selvas impenetráveis, vastos desertos, civilizações perdidas, mercadores de escravos, doenças contagiosas - e o desconhecido.
A África é negra, por causa de seus muitos mistérios.
É o continente menos compreendido, mais perigoso, mais pobre e menos explorado. Doenças, animais selvagens, tribos hostis se interpôem como uma barreira quase intransponível para o progresso. Há poucos rios navegáveis, o que significa que exploradores terão de cortar a densa selva, cruzar as savanas e se aventurar pelos desertos à pé. Mapas confiáveis ainda não existem.
Nos anos 20, este lugar misterioso apenas começa a se abrir para o mundo ocidental. Ferrovias começam a conectar as cidades. A medicina consegue prevenir e até curar algumas das tenebrosas doenças tropicais. Cidades crescem cada vez mais para o interior. Lentamente a África está se tornando acessível, mas ainda existem inúmeros perigos e segredos.
Na América e na Europa os Mitos de Cthulhu se escondem nos porões de velhas casas, em castelos em ruínas e cavernas esquecidas. Na África eles estão livres, caçando nos territórios selvagens e espreitando nas cidades perdidas. Cultos devotados aos mitos continuam atuando e seus vastos poderes são respeitados e temidos.
Esta é a descrição no verso do Secrets of Kenya, editado pela Chaosium, trata-se de um livro de referência para o sistema BRP de Call of Cthulhu.
Kenya é mais um exemplar da série de livros a respeito de países, cidades e regiões do mundo onde perigos, surpresas e horrores dos Mitos ancestrais na região designada são apresentados ao keeper como opção para seus jogos.
Fisicamente Secrets of Kenya é um livro impressionante com suas quase 250 páginas e contém material suficiente para construir uma campanha inteira situada na África dos anos 20-30. Eu realmente gosto da idéia por traz dessa série "Secrets of...". Ela introduz lugares exóticos e faz quase todo o serviço ao descrever um determinado lugar deixando o keeper à vontade sobre o que usar ou não. Uma de minhas queixas é que essa linha tende a se concentrar excessivamente nas cidades dos Estados Unidos, ficando algo repetitivo. Este aqui no entanto vai mais longe e descreve um país inteiro.
Melhor ainda, o livro vai além do Quênia, e cita várias partes da África, sendo um compêndio sobre o continente como um todo. Ao contrário do péssimo "Secrets of Morocco" esse livro consegue empolgar com um texto muito bem escrito que vai direto ao assunto e apresenta informações que serão úteis ao keeper que deseja situar seus cenários no Continente Negro.
"Secrets of Kenya" foi escrito pelo australiano David Conyers, na minha opinião o melhor autor da Chaosium na atualidade. Eu tive a chance de falar com ele uma meia dúzia de vezes em fóruns e trocar alguns e-mails e pela conversa deu para perceber que é alguém que adora o tema e entende do assunto. Conyers teve mais de uma dezena de contos publicados, com destaque para a antologia intitulada "The Spiralling Worm" que faz referências a vários personagens e lugares descritos em "Secrets of Kenya".
Bom, mas o que você, keeper ou fã de Call of Cthulhu vai encontrar nesse livro?
Decidi fazer uma resenha mais comportada para esse livro mencionando seu conteúdo capítulo a capítulo. Então vejamos o que mais chamou minha atenção ao ler Secrets of Kenya:
Prelúdio:
O livro se inicia com um pequeno conto que se encaixa muito bem no contexto. A estória "As Above, So Below" ("Tanto acima, como abaixo") fala de um caçador branco e de sua perseguição a um leão durante um safari. A idéia é tão interessante que daria um cenário curto.
Capítulo 1: A Criação do Quênia
Se você vai narrar cenários no Quênia é justo que saiba o mínimo sobre como surgiu e o que existe no país.
É justamente o que esse primeiro capítulo faz, ele trata de aspectos pertinentes à História e Geografia do Quênia. Dizendo assim parece meio chato, mas não é. O livro faz um ótimo resumo da criação e construção do Quênia, desde o surgimento das primeiras tribos, passando pela influência de árabes, exploradores portugueses, a construção de Zanzibar, a ocupação pelos britânicos até a situação nos anos 20 que é a época em que as aventuras ocorrem.
Secrets of Kenya é um livro calcado na visão do colonizador branco em especial dos britânicos que ocuparam o país até meados do século XX. O capítulo relaciona as principais realizações dos colonizadores para tornar o país "menos selvagem" sem esquecer assuntos espinhosos como Racismo, Exploração Econômica e Imperialismo.
O tópico Geografia do Quênia fornece uma visão das principais cidades do país -
Nairobi e
Mombassa, os principais elementos da Costa Swahili, do interior montanhoso e dos inóspitos Desertos ao Norte. Trata ainda de elementos essenciais como o clima, a forma de governo, as leis locais, como age a polícia, quais são os meios de transporte, qual a moeda local e o que os investigadores podem encontrar à venda. O capítulo introduz também duas novas ocupações - Soldado e Oficial da Real Companhia da Rifles (os soldados africanos que servem à Coroa Britânica).
Capítulo 2: O Povo AfricanoApresenta as principais características do povo africano que vive na região Sub-Saariana com um foco nas maiores tribos habitando o Quênia. Ele cobre regras para idiomas locais e a conversão de dialetos falados por grande parte da população. Os povos Maasai, Kikuyu, Somali e Swahili são apresentados em detalhes que revelam suas crenças, religiões e costumes tribais. Eu destaco as seções sobre justiça ao estilo africano, bruxaria e magia negra.
Conyers acrescentou as estatísticas de cerca de 15 armas típicas da África, informações sobre vestimentas, vida familiar e até comida. Há uma seção que se destina a criação de personagens nascidos e criados na África que fazem parte de tribos nativas. Se por um lado é uma informação importante para constar no livro, por outro, as aventuras são tão focadas na presença dos colonizadores europeus que não vejo jogadores muito dspostos a encarar personagens locais. De modo que me parece um conjunto de regras dedicado a NPCs.
Completam o capítulo uma lista de novas ocupações e habilidades voltadas para personagens africanos.
Capítulo 3: Guia de NairobiNairobi é a maior e mais européia das cidades no leste da África e este capítulo se dedica a desvendar alguns dos segredos e mistérios da cidade. A idéia é que a capital seja adotada como a base de operações para o grupo de investigadores e a porta de entrada para estrangeiros na África. A fim de facilitar as coisas para o Keeper, a cidade é apresentada em detalhes.
Nairobi é a casa de uma população crescente de estrangeiros que reside nos chamados Distritos Brancos, cercados de riqueza, opulência e relativa segurança. O capítulo descreve os lugares principais como a Estação de Trens construída na virada do século e que marcou a definitiva ocupação britânica do país, os hotéis, prédios administrativos, a Biblioteca e o Museu local incluíndo a coleção de artefatos ligados aos Mitos em exposição.
Enquanto nos Distritos Brancos os investigadores poderão vagar à vontade pelas ruas arborizadas e civilizadas, nos arredores e subúrbios habitados pela população local terão de se familiarizar com a face medonha da pobreza, doença e fome. Uma exploração em ambas as realidades sem dúvida criará um interessante contraste.
Mais do que falar de lugares interessantes, o livro coloca à disposição do keeper locais chave que aparecem na Mega-Campanha "The Masks of Nyarlathotep". Ou seja, se você pretende narrar essa campanha o Quênia vai te dar algumas boas idéias.
Capítulo 4: O Interior do QuêniaAqui o Keeper vai encontrar informações para tirar os investigadores da segurança das cidades e jogá-los direto na selva e na exploração dos terrenos mais perigosos da África.
Que tal o grupo enfrentar o desafio de atravessar areia movediça, ou escalar as traiçoeiras montanhas que cercam o Monte Kilimanjaro ou ainda explorar as profundezas da indevassável selva africana? O livro fornece ao keeper opções bastante empolgantes para criar situações de perigo e aventura como descer as corredeiras dos rios em pequenos barcos ou cruzar as savanas acompanhando um safari. Há perigos ainda mais insidiosos como desidratação, insolação, altitude e uma longa lista de terríveis doenças tropicais com descrições que chegam a dar medo.
O Capítulo também apresenta as cidades de Mombassa e Lamu e mais alguns ganchos para aventuras bem interessantes para serem desenvolvidos. Eu gostei bastante do Lake Rudolf, uma região selvagem e perigosíssima onde uma nova criatura dos Mitos vaga com sede de sangue e as lendas sobre o Rift Valley. Quem leu a campanha Masks of Nyarlathotep reconhecerá a descrição da lendária Montanha do Vento Negro e um dos personagens mais importantes daquela campanha.
Capítulo 5: Bestiário Africano
Não apenas os Mitos de Cthulhu se colocam como uma ameça para os investigadores em um cenário africano. A África é conhecida pelos animais selvagens e não faltam bestas ferozes para desafiar seus jogadores. São mais de 30 animais africanos que incluem antílopes, babuínos, búfalos, leopardos, hipopótamos, serpentes africanas, hienas, abutres, zebras etc...
Para variar que tal lançar o grupo no meio de um estouro de búfalos? Ou desafiá-los com uma caçada ao Rei das Selvas? Ou ainda uma perseguição motorizada a um Rinoceronte? Alguns dos animais nesse capítulo aparecem também no livro básico, mas aqui além de serem expandidos cada um é visto sob uma ótima africana. Se um dos interesses do grupo for caçar os cinco animais da lista de Big Game, aqui você encontrará as estatísticas para todos eles.
Capítulo 6: Sociedades SecretasEsse é o melhor capítulo do livro. As Sociedades Secretas africanas incluem alguns dos cultos mais sangrentos e aterradores jamais descritos. Esses caras são verdadeiros fanáticos que matam sem dó nem piedade e que arrastam suas vítimas na calada da noite para cortar suas gargantas enquanto dançam ao redor de uma fogueira. Se você tinha medo dos cultos que se reúnem na Europa e na América é por que não conhece esses cultos africanos.
Alguns deles operam exclusivamente no Quênia, mas outros tem um espectro bem mais amplo, cometendo barbaridades em toda África. Meus preferidos foram o Culto do Spiraling Worm (natural do Congo), os sectos africanos devotados a Cthulhu (espalhados por toda África) e o lendário Culto da Blood Tongue, do Quênia que também faz parte da campanha Masks of Nyarlathotep.
O culto dos Homens Leopardo (que possui supostas raízes verídicas) e os Macacos Brancos também me atraíram bastante por ser algo diferente e bem dentro da proposta Pulp.
Além dos cultos há várias adições às criaturas dos mitos. É possível pensar em toda uma campanha onde os bravos investigadores tem que enfrentar esses cultos malignos, destruir criaturas nefastas, recuperar artefatos e deter os planos para despertar esses deuses blasfemos.
Os Cenários: Uma das coisas mais interessantes quanto aos livros da série "Secrets of..." é que os livros vem sempre com cenários prontos que permitem lançar os jogadores direto na aventura. O keeper precisa apenas ler o livro se inteirar da ambientação e está apto a mandar ver nos cenários.
Em Secrets of Kenya, temos quatro cenários prontos. Isso mesmo: Quatro!
O grau de dificuldade dos cenários varia, mas posso dizer que dois deles figuram na lista das aventuras mais mortais que li em muitos anos. Portanto, não deixe que os jogadores se apeguem muito aos personagens. A idéia é que os cenários possam introduzir os jogadores a diferentes aspectos da exploração do Quênia. Enquanto alguns deles são mais focados em exploração e trabalho arqueológico, outros se debruçam em negociação e investigação.
Infelizmente os cenários não possuem um vínculo entre si. Isso não significa que o keeper não possa transformá-los em uma mini-campanha com algumas adaptações, mas fica claro que a intenção é fazer vários one-shots. Pela dificuldade dos cenários ao meu ver a coisa funciona melhor assim.
Os cenários são os seguintes:
Madness of the Ancestors (Loucura dos Ancestrais) onde o grupo faz parte de uma expedição organizada pela Universidade Miskatonic enviada ao Quênia para buscar indícios da origem da humanidade na África. É um bom cenário introdutório para trazer os investigadores para a África e confrontá-los com revelações estarrecedoras.
The Cats of Lamu (Os Gatos de Lamu) se passa na Costa Swahili, com os investigadores envolvidos na tradução de um antigo e raro documento.
Savage Lands (Terras Selvagens) é coloca os investigadores como membros de um safari no interior da savana africana. Um colono enfrenta uma terrível maldição e só pode contar com a ajuda dos investigadores quando sua esposa é morta e sua filha sequestrada.
Wooden Death (Floresta da Morte) é um cenário cheio de desafios e perigos baseado no clássico conto de Donald Wandrei “The Tree-Men of M’Bwa”. Os investigadores são contatados por um agente postal na parte nordeste do Quênia que descobriu um bosque cuja estranha vegetação precisa ser estudada.
O livro possui três apêndices com informações adicionais que enriquecem os textos. O primeiro traz uma Cronologia de Acontecimentos na África que vão do século XV até os anos 40.
O segundo apêndice é bem mais interessante pois descreve vários lugares assombrados pela presença dos Mitos dentro do continente africano. São lugares saídos diretamente de contos escritos por Lovecraft e nomes famosos do Círculo Lovecraftiano. Há cidades perdidas, ruínas desertas, acidentes geográficos, cavernas profundas, velhas catacumbas e templos que no passado foram assolados pelos Mitos e que ainda nos anos 20 são lugares malditos evitados pelos nativos.
Conclusão:Dito isso vamos a infame conclusão final.
Secrets of Kenya é um bom livro se o keeper e o grupo querem tentar algo diferente e que escapa um pouco da proposta original do Call of Cthulhu RPG. Se o grupo prefere as clássicas estórias ambientadas na Nova Inglaterra, Secrets of Kenya não será mais do que uma curiosidade e uma leitura interessante. Mas se o grupo gosta de cenários pulp, seguindo uma linha mais aventureira, com ação e violência então essa é uma excelente opção.
O que não falta é material para construir uma campanha usando a região. Pode ser que uma campanha inteira não se sustente e logo os jogadores queiram retornar ao cenário clássico, mas garanto que eles vão gostar de variar um pouco, sobretudo se forem veteranos em Call of Cthulhu.
É preciso, no entanto falar do lado ruim. O livro peca ao oferecer uma fraquíssima arte interna. Sinceramente, folheando o livro é possível perder o interesse apenas olhando alguns dos desenhos. Eu fiquei tão chateado com os desenhos que quando o livro chegou acabou ficando na estante por algumas semanas antes de eu tomar coragem para pegá-lo novamente.
Certos desenhos parecem coisa de principiante e ao meu ver jamais poderiam estar em um livro tão importante. Os mapas, handouts e diagramas que preenchem várias páginas são bem melhores. O veterano Paul Carrick assina uma pequena parte dos desenhos internos e há várias fotografias de época, mas não é o bastante para apagar a péssima impressão deixada por alguns rabiscos.
Outro porém é que o livro é todo em preto e branco o que pode desagradar alguns leitores acostumados a trabalhos de qualidade superior. A diagramação da Chaosium ao meu ver é antiquada e poderia passar por uma reavaliação.
Se o leitor abstrair a arte interna e se concentrar nos textos terá à sua disposição um excelente material. Os cenários com certeza irão resultar em horas agradáveis de diversão e entretenimento para sua mesa de jogo.
Muito bom texto, queria ter lido isso há algumas semanas traz, quando decidi ambientar minha campanha na africa (apesar da base inicial ser na etiopia). Mas ja encomendei uma copia :)
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