terça-feira, 25 de maio de 2010

Cthulhu Invictus - O Mythos no Império Romano e o Mundo Antigo

"O centurião Arrius Galba, o soldado e ex-gladiador Sula e o estudioso Vatinius descem às catacumbas sob Roma em busca da resposta para a questão que vem preocupando a população da Capital do Império: "Que estranho culto vem matando cidadãos em sangrentos sacrifícios?".

Os três são acompanhados pelo escravo grego Pelias que leva uma tocha, a única fonte de luz nos intermináveis túneis escavados há séculos para receber os mortos da grande cidade.

Galba e Sula sacam seus reluzentes gladius ao ouvir um som na escuridão. "O que pode ser?" pergunta o calejado soldado. Vatinius segura com força o amuleto místico obtido em sua peregrinações a Antióquia, os místicos lhe disseram que o artefato é mágico. Ele realmente espera que o objeto funcione, mas em último caso dispõe de um pergaminho copiado de um livro destruído no incêndio da Biblioteca de Alexandria.

O som se faz ouvir novamente. É o barulho de algo pesado se arrastando. Os homens se entreolham e se preparam... seja o que for, está se aproximando!

Cenas como essa são a proposta de Cthulhu Invictus, uma ambientação de época para o sistema clássico de Call of Cthulhu. Lançado pela Chaosium no começo do ano, Cthulhu Invictus faz compania a Dark Ages Cthulhu como cenário alternativo para aventuras se passando nos tempos do Império Romano.

Escrito originalmente no formato de monografia, o trabalho caiu nas graças de jogadores e mestres, ganhou textos adicionais, nova arte interna, uma revisão de regras e o formato de livro.

A grande pergunta, creio eu, é: "Faz sentido misturar os Mitos de Cthulhu e o Império Romano?"
Antes de tudo é preciso reforçar um dos dogmas fundamentais lovecraftianos:

"Os Mitos foram, os mitos são e os mitos serão".

Ou seja: os Mitos são imortais e não obedecem aos ditames da transitoriedade. Eles são imunes a passagem do tempo. Séculos, milênios, eras... nada disso importa para eles. Os Mitos Ancestrais são muito mais antigos do que a humanidade. Eles já estavam aqui na pré-história, acompanharam a homem quando seu ancestral simiesco abandonou as árvores para habitar as cavernas e observaram impávidos quando o homem antigo ergueu as muralhas de suas primeiras cidades. Sem dúvida, os Mitos estarão presentes quando se der o fim da humanidade (possivelmente eles serão os próprios causadores de sua destruição).

Nesse contexto não é difícil imaginar que os Mitos estivessem presentes no Mundo Antigo e que fossem uma força ainda mais atuante naquela época. Cultos afinal abundavam e o poder do misticismo, do sobrenatural, da magia, de deuses e demônios podia ser sentido de forma quase paupável. Ninguém duvidava da existênca dessas forças misteriosas e poucos se arriscavam a desafiá-las.

Nessa época, nasceu o Império que mudaria a face do mundo antigo e escreveria um importante capítulo na biografia do próprio homem. Roma espalhou seu poder e influência pelo mundo conhecido. A águia imperial romana era levada a frente de suas legiões conquistadoras até os confins da Asia Menor, cruzava os desertos da Arábia, da Síria e da Judéia, dominava as escuras florestas da Germânia Magna, atravessava o Mediterrâneo, subjugando o Norte da África, governava o berço da humanidade, Egito e Grécia, se estendendo além da Gália atingindo as selvagens Ilhas Britânicas.

A capital do Império, Roma, era a capital do mundo. Uma metrópole como nunca havia sido vista antes, uma cidade cosmopolita, vibrante e rica. Todas estradas levavam a Roma, a maior jóia do mundo antigo. O centro de poder que controlava o destino de um vasto território e de incontáveis povos. De Roma, o Imperador observava o horizonte sem temer qualquer força, senão os limites que ele próprio impunha às suas conquistas.

Mas Roma e seus orgulhosos súditos podiam sentir algo oculto nas sombras. Algo que crescia livremente na grande cidade e nas suas províncias. Uma força que se alimentava da corrupção e da decadência ameaçando corroer as fundações do Império. Cultos secretos proliferam, bárbaros e patrícios veneravam deuses obscuros trazidos de terras distantes e horrores inomináveis recebiam sacrifícios nas noites sem lua.

A Roma de Cthulhu Invictus é um lugar perigoso e instável, onde o medo e a violência caminham lado a lado em uma estrada que levará a inevitável queda.

Cthulhu Invictus é um livro fechado, ele define muito bem a ambientação trazendo informações úteis para o mestre situar seus jogadores no contexto da época. É claro, não se trata de um livro de história, ele contém os dados básicos, o keeper terá de preencher possíveis lacunas com alguma pesquisa se quiser algo mais profundo. O básico entretanto está lá, uma visão panorâmica do Império, sua estrutura, as principais características além de uma detalhada cronologia de eventos marcantes.

Uma das boas sacadas do livro é abrir um vasto leque de opções para situar as aventuras em qualquer rincão do Império. O título do livro não é "Cthulhu Roma", de modo que as aventuras não estão restritas a Capital do Império (ainda que uma campanha inteira possa se situar na Cidade Eterna).

O keeper tem liberdade total para focar sua atenção nas distantes províncias sob o domínio do Império, utilizando locais exóticos e incomuns para centrar sua narrativa. Que tal um cenário se passando durante uma sangrenta campanha militar na Germania Magna? Ou com os personagens explorando os mistérios de tumbas perdidas nas areias do Egito? Quem sabe os jogadores possam ser legionários servindo na perigosa Britânia enfrentando a ira de pictos e druidas. Talvez eles sejam testemunhas do nascimento do cristianismo na Judéia do século primeiro.

O capítulo "A short tour around Mare Nostrum" (Uma breve passagem pelo Mare Nostrum) apresenta as mais importantes províncias que compõem o Império, nomeando as cidades, discutindo os costumes, povos e características de cada região. O texto é tão fácil e gostoso de ler que é uma pena ele não ser um pouco mais extenso. As descrições fornecem toneladas de idéias e ganchos para cenários.

O livro traz um excelente mapa destacável que mostra o Império em toda a sua glória. Eu sempre adorei esses mapas que embora simples são muito funcionais para mostrar aos jogadores onde se passa a aventura. Considerando que boa parte das cidades e regiões usam nomes romanos ou simplesmente não existem nos dias atuais é interessante para o mestre situar os jogadores. A cartografia é bem precisa e os desenhos decorativos nas bordas embora não sejam deslumbrantes são agradáveis aos olhos.

Em um mundo perfeito esse mapa poderia ser colorido, feito em papel pergaminho ou quem sabe até tingido em tecido concedendo um ar de autenticidade. Mas nem tudo é perfeito.

O sistema é o mesmo de Call of Cthulhu clássico por isso, ter o livro básico é necessário para a criação dos personagens e compreensão das regras. Obviamente controlar um investigador no mundo antigo não é a mesma coisa que controlar um homem do século XX, por isso a ficha foi devidamente adaptada a essa realidade distinta. À exemplo do que aconteceu em Cthulhu Dark Ages, as mudanças mais significativas dizem respeito às habilidades dos personagens, com a inclusão de novas perícias ou supressão de outras.

A geração dos personagens obedece as mesmas regras do Livro Básico, mas saem de cena as profissões clássicas como detetives, médicos e diletantes para dar lugar a ocupações mais adequadas ao tempo e lugar. A lista inclui 44 ocupações para os personagens que vão desde centuriões, passando por escravos, senadores, patrícios até gladiadores e eunucos. As opções são bastante amplas e permitem aos jogadores criar personagens bem interessantes e diversos, embora eu desconfie que centuriões, legionários, cortesãos e gladiadores serão os preferidos.

Embora a ambientação presuma que os personagens sejam em geral romanos, nada impede que os jogadores criem personagens nascidos nas regiões sob o controle romano. Isso abre muitas possibilidades para inverter o role-playing colocando os jogadores no papel de conquistados ao invés de conquistadores. Uma das propostas mais atraentes na minha opinião é abrir as portas para aventuras onde os jogadores podem personificar gauleses (como os guerreiros de Vercingetorix), pictos (no melhor estilo Bran McMorn) e até revolucionários judeus (como Ben-Hur) enfrentando o poderio romano.

O modelo da ficha é bem semelhante ao das fichas tradicionais de personagens e os jogadores mais experientes não vão demorar a perceber as sutis diferenças existentes. O modelo se espelha também na ficha do Cthulhu Dark Ages com várias habilidades em comum, todas elas bem explicadas.



Em um ambiente brutal e pré-disposto a conflito, há regras bem definidas quanto a combate. Uma lista de armas de mão, arremesso e mesmo de cerco, armaduras, venenos, ervas medicinais e descrições da primitiva medicina são importantes para salientar os perigos de viver em uma época em que os cirurgiões eram conhecidos como "Carnifex" (carniceiros).

Digna de nota é a regra quanto ao efeito que a violência desperta na população romana. Violência física não é sinônimo de crueldade para os romanos, de modo que um espetáculo sangrento de gladiadores nada mais é do que entretenimento. Como efeito direto disso, os personagens são muito mais resistentes a violência e será preciso muito mais do que um cadáver ou sangue para fazer um cidadão romano perder pontos de sanidade.

Cthulhu Invictus possui um capítulo sobre magias e rituais chamado "Grimoire". Ele descreve brevemente o misticismo e a religiosidade praticada pelos romanos. Destaca os notórios augúrios e fala da influência de outros povos que introduziram práticas religiosas e mágicas.

O Grimoire, no entanto, se dedica mais profundamente às magias e tomos envolvendo os Mitos de Cthulhu. Há 15 novas magias e 14 livros com conhecimento oculto detalhado. Um trecho interessante fala das atividades de algumas das entidades e criaturas mais notórias dos Mitos nessa época, o que ajuda o keeper a criar seus cenários.

Um longo capítulo é dedicado a um bestiário de criaturas lendárias e seres mitológicos. Essa talvez seja a minha única queixa do livro. Não me entendam mal, eu gosto de livros de monstros e aprecio o esforço do autor em pesquisar essas lendas, contudo o livro parte do princípio que qualquer uma dessas criaturas pode ser usada na ambientação flertando perigosamente com o gênero fantasia.

Ora, ao meu ver, Cthulhu prima pelo realismo, introduzir minotauros, medusas e ciclopes e outras entidades míticas pode ser divertido, contudo faz com que o foco do jogo se perca. Os grandes monstros do cenário, afinal de contas, são os Mitos de Cthulhu e seres fabulosos podem colocar os horrores em segundo plano. Muitas das criaturas são explicadas como monstros do passado remoto da Terra, seres extremamente raros que habitam lugares inóspitos e desertos.

Eu prefiro encarar a maioria dessas criaturas como lendas ou como entidades presentes tão somente nas Dreamlands. Tudo bem dos personagens encontrarem um Zaratan (uma tartaruga gigantesca do tamanho de uma ilha) enquanto sonham e viajam pela terra dos sonhos, mas no mundo real prefiro manter os pés no chão.

Bem mais interessante e útil é o Capítulo devotado a Cultos e Sociedades Secretas. Novamente o keeper pode encontrar aqui farto material e inspiração para escrever cenários e alimentar uma campanha inteira. Eu gostei especialmente das Virgens Vestais, dos fanáticos Sacerdotes de Melkarth, as assustadoras Filhas do Isolamento, os perigosos Pescadores de Lierganes e do obscuro Culto da Magna Matter.

Finalmente chegamos ao último capítulo de Cthulhu Invictus que como é tradição se encerra com uma aventura pronta. O cenário intitulado "Phrofilaxis Panacea Efqa" é uma investigação na cidade de Palmyra uma das portas de entrada para a Asia. O roteiro gira em torno de uma estranha e horrível doença que vem atormentando o povo da cidade e causando sérios problemas. O lugar é um importante entreposto comercial bem na rota da seda. Os personagens precisam descobrir a origem dessa moléstia e uma cura antes que a população entre em desespero e comece a culpar as legiões romanas acampadas na cidade.

A idéia do cenário é bem sólida e a investigação linear facilita o trabalho do keeper tornando a estória ao mesmo tempo desafiadora para iniciantes e instigante para veteranos. Pode não ser algo inspirador, mas sem dúvida é um cenário adequado para apresentar a ambientação. Pretendo mestrar essa aventura em breve e quando o fizer colocarei aqui no Blog minhas impressões a respeito.

O produto final é bem adequado.

Cthulhu Invictus é um bom livro, altamente indicado para para quem está procurando algo diferente nos Mitos de Cthulhu ou que quer dar um tempo nas ambientações clássicas. Com um keeper dedicado e um grupo interessado, as sessões tem tudo para ser memoráveis.

A arte do livro é aceitável, não é uma maravilha, mas é um alívio constatar que está bem longe da medonha arte interna de livros recentemente lançados pela Chaosium. Eu continuo insatisfeito com a diagramação dos livros da Chaosium, os livros paracem antiquados, sem graça em alguns pontos, ainda mais quando comparados às edições de capa dura totalmente coloridas lançadas pela Wizards, White Wolf e Fantasy Flight. Infelizmente a Chaosium é uma editora menor e isso transparece nos seus produtos.

Cthulhu Invicus tem 166 páginas em preto e branco e capa mole. O preço de capa é US$ 26,95 (ao meu ver um pouco caro para um livro visualmente tão simples), ele pode ser encomendado em lojas on-line como o Amazon com um bom desconto.

Ave César! Ave Cthulhu!

10 comentários:

  1. Muito boa resenha! Parece, realmente interessante. ;D

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  2. Adoro esses suplementos historicos, dar uma diversificada no cenário é sempre importante, e aliás, que capa linda!

    Você podia fazer uma resenha sobre os suplementos futuristas, tem uma equipe brasileiras traduzindo pra português aliás

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  3. Pareceu muito legal, mas não entendi uma coisa, é um livro básico ou um suplemento?

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  4. Muito boa resenha mesmo!
    Para mim que não conheço muito bem e nem joguei nada do Ctulhu foi muito esclarecedor.

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  5. Opa Hunter, qual suplemento futurista?

    Ricardo, Cthulhu Invictus é um suplemento, ele não possui todas as regras do Livro Básico.

    Obrigado a todos pelos comentários.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Ótima resenha.

    Não sei, não sei, ainda não tentei, mas não consigo colocar em mente CoC passado na idade das trevas, assim como noa roma antiga. Me sentiria, inevitavelmente, partindo para um cenário fantasy e não vejo como prender meus jogadores nisso por mais de duas sessões. Claro, cada um com seu estilo, mas pra mim o que torna CoC interessante é exatamente aquela época dos anos 1980-1940 onde a tecnologia estava cada vez mais sendo aplicada e ao mesmo tempo o mundo ainda era muito pouco (perto dos dias de hoje) conhecido. Talvez seja pelo tema nos levar a seres extraterrenos, talvez seja a imcompreensível e gigantesca inteligência dos mitos, que me levem a aceitar campanhas de call apenas num passado próximo ou mesmo nos dias de hoje.

    Um abraço.

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  8. Fiz a mesma crítica sobre o cenário, mas não por ele ser viável ou não, mas pelo interesse exclusivo dos jogadores.

    Medievalismo fantástico acaba não pedindo muito dos jogadores, mas um cenário histórico como este já pede alguma preparação. Não vejo-o como sendo um livro para iniciantes, pelo menos para a grande maioria de iniciantes!

    Tenho um amigo louco para tê-lo e usá-lo.

    Muito boa resenha!

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  9. Sugiro, para fontes de pesquisa adicionais, o fantástico módulo GURPS Império Romano, ainda para a 3E. Não se preocupem com as regras, usem apenas o material histórico, algo que a Steve Jackson Games prima pela qualidade em seus módulos, via de regra.

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  10. Adorei a resenha e ela que me fez encomendar o meu livro!Mas e o tal do Cthulhu Invictus Companion?Poderia falar a respeito?Obrigado!

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