A vida de Jane Dieulafoy poderia facilmente ser transformada em um romance de aventura. De fato, ela parece ter saído de alguma estória de ficção. Uma mulher vibrante, corajosa, nascida durante a Era Victoriana, uma época em que as mulheres não tinham oportunidades e não deviam aspirar nada além de constituir família. Mas Jane decidiu desde cedo que sua vida seria diferente e que apenas uma pessoa controlaria seu destino: ela mesma!
Jane Henriette Magre nasceu em 29 de julho de 1851 na cidade de Toulouse, França. Seu pai o aventureiro e oficial do exército francês Remy Magre morreu em um acidente de caça, poucas horas após o nascimento de Jane, sua quinta filha. Com isso, ela, suas quatro irmãs e sua mãe, ficaram sozinha. Felizmente, a família Magre havia conquistado uma considerável fortuna negociando armas e munições nas guerras que varriam a Europa naquela época. Jane foi enviada para estudar com as Irmãs do Convento da Divina Assunção em Auteuil, uma cidade não muito distante de Paris. Desde cedo ela demonstrou ser uma aluna brilhante, aprendendo várias línguas e aperfeiçoando suas habilidades artísticas, sobretudo em desenho e pintura, atividades que mais tarde se mostrariam muito úteis na sua carreira.
Dona de um espírito irrequieto, Jane era vista como estranha pelas colegas e severamente punida pelas freiras que a apelidaram de "pequena demônio". Ela costumava escapar do internato à noite, vestindo roupas de criada ou disfarçada como uma das religiosas, ganhando as ruas e se misturando às pessoas simples. Sua imensa curiosidade do mundo exterior a levava a visitar lugares de má reputação: tavernas e bordéis onde entrava escondida ou disfarçada. Em certa ocasião, aceitou uma aposta que a levou a passar a noite em um cemitério considerado assombrado. Ela não apenas cumpriu o desafio, como escavou a entrada para uma cripta antiga - seu primeiro contato com os mistérios do "mundo antigo".
Jane jamais demonstrou interesse em trabalhos caseiros ou em tarefas consideradas mais adequadas ao sexo feminino. Depois de ser capturada em Paris, trajando roupas masculinas, Jane foi conduzida de volta ao convento para ser punida com dez chibatadas desferidas pela Madre Superiora diante de todas as alunas. Por volta da quinta chibatada, todos ficaram surpresos, pois Jane não produzia nem um gemido de dor. A Madre mandou a jovem dizer como aquilo era possível, ela apenas sorriu e sussurrou entredentes: "Ora Madre, será que não sabe que eu sou um pequeno demônio"?
Jane dizia que jamais iria se casar e que gostaria de viajar pelo mundo e conhecer diferentes povos e civilizações. Aspirava ser a primeira mulher a cruzar o Saara no lombo de um camelo, descobrir cidades perdidas no coração da selva africana e resgatar tesouros valiosos dignos das Mil e uma Noites, esquecidos nas tumbas de Reis e Imperadores. Tudo isso seria impossível para uma mulher, quanto mais, casada! Ela prometeu a si mesma que nunca cometeria esse erro: "Provavelmente vou estrangular meu marido na noite de núpcias" disse certa vez chocando as irmãs que não queriam outra coisa além de desposar o mais rápido possível.
Houve, entretanto, uma pessoa na vida de Jane que acabou a tentando com o matrimônio. Marcel Dieulafoy provavelmente era o único homem que poderia ter se casado com a indomável Jane Magre. Marcel era um homem de ação e aventura, culto e agitado, ao seu modo, era também um rebelde.
Jane tinha 19 anos quando conheceu Dieulafoy e como fazia com todos seus pretendentes, planejava chocá-lo para que ele desistisse de cortejá-la. Mas Marcel não era como os demais! Jane o convidou para cavalgar pela propriedade, pois já tinha ouvido falar de suas habilidades como cavaleiro. Pensou em humilhá-lo derrotando-o em uma corrida, mas para sua surpresa, Marcel ficou animado com a brincadeira. Os dois cavalgaram pelo campo, pararam em um recanto onde o aventureiro relatou a ela algumas de suas experiências como Mercenário no Oriente. Ela deixou escapar que invejava aquela vida excitante e que faria qualquer coisa para ter uma vida como a dele. Marcel sorriu enigmático e não disse mais nenhuma palavra. Os dois retornaram a Mansão dos Magre, e lá ele formalizou seu pedido de casamento à mãe de Jane. Chocada, ela pediu para conversar com seu pretendente e disse que de modo algum aceitaria a monótona vida de esposa. Marcel explicou que tampouco queria uma mulher que baixasse a cabeça para ele e fosse submissa - "nada mais tedioso do que uma esposa sem sangue nas veias", explicou. Os dois então concordaram em um casamento fora do convencional, no qual seriam iguais em tudo.
O primeiro desafio para seus votos foi o início da Guerra Franco Prussiana em 1870. Os invasores germânicos iniciaram um cerco a Paris e Marcel se juntou ao Corpo de Engenharia com a missão de reforçar os muros da cidade e organizar a resistência. Marcel estava casado fazia apenas um ano e a vida com Jane era uma constante aventura, os dois haviam passado a Lua de Mel no Marrocos, onde ele ensinou a esposa a atirar com rifle e pistola. Quando Marcel contou que havia sido alistado para uma importante missão militar, Jane teve uma reação categórica: "Quando partimos"?
Para acompanhar Marcel, Jane cortou o cabelo bem curto, mandou confeccionar uma roupa adequada e assumiu o papel de ajudante de campo do Capitão Dieulafoy. Logo ela/ele ganhou fama como um exímio atirador, tendo abatido três inimigos com um rifle durante uma emboscada. Jane esteve presente em todas as missões oficiais, mesmo as mais arriscadas em território inimigo e seu segredo nunca foi descoberto.
Com o fim da Guerra, Marcel deu baixa no serviço militar e foi contratado para um trabalho na Ferrovia Midi que construía linhas de trens no Norte da África e no Oriente Médio. Ele era responsável pela verificação geológica e pelo exame da topografia do terreno onde seria construída a estrada de ferro. Jane como não poderia deixar de ser, o acompanhava em todas suas viagens, muitas vezes, usando disfarce masculino para ter livre acesso a todos os lugares. Juntos, estiveram no Egito, Marrocos, Arábia e Turquia. Essas viagens fizeram com que os Dieulafoy se interessassem cada vez mais pela cultura e arquitetura oriental, e eventualmente, os conduziu ao estudo da Arqueologia.
Fazia um bom tempo que Jane e Marcel planejavam uma viagem completa pelo Oriente Médio para estudar a arquitetura da Pérsia. Eles partiram de Marselha em 1880 rumo a Constantinopla em um navio russo, cruzaram o Mar Negro, atravessaram as Montanhas do Cáucaso até atingir o Azerbaidjão. De lá seguiram para Tehran onde ficaram por seis meses. À despeito da árdua jornada e de uma série de dificuldades enfrentadas, eles se apaixonaram pela cultura oriental.
De Tehran, decidiram seguir para Esfahan e Shiraz, cidades mais afastadas e de difícil acesso para estrangeiros que eram normalmente expulsos. Para não chamar mais atenção do que o necessário, Jane passou a se vestir com roupas masculinas e usar nomes falsos. Jane registrava toda a jornada em desenhos e ilustrações incrivelmente detalhadas. Em 1882, ela adquiriu uma câmera e passou a fotografar as paisagens da Pérsia. Algumas de suas fotografias se tornaram efetivamente os primeiros registros fotográficos de muitos lugares dessa parte do mundo. Os dois se concentravam na arquitetura oriental, mas também registravam antigas ruínas e tesouros arqueológicos. Receberam a permissão de governantes para adentrar palácios e fotografar o Xá da Pérsia e a Família Real em pessoa.
Os Dieulafoy realizaram explorações que resultaram na descoberta de valiosos artefatos nas ruínas de Susa. Com o aval do Xá, Marcel e Jane puderam escavar as ruínas da antiga cidade e recuperar uma infinidade de artefatos que foram despachados para o Museu do Louvre. Essa foi uma das primeiras expedições ocidentais devidamente autorizadas pelo governo local. Como reconhecimento pela notável contribuição ao Campo da Arqueologia, duas salas no Museu, abarrotadas pelos artefatos encontrados, receberam os nomes do casal.
Jane mantinha um diário de suas aventuras no qual anotava todos os acontecimentos ocorridos em sua jornada. Isso foi bastante útil quando retornaram para a França em 1883. Enquanto se recuperava de uma febre contraída na viagem de volta, ela deu início a sua carreira como escritora. Jane publicou um livro intitulado "Le Tour du Monde" a respeito de suas viagens, no qual descrevia a exploração da cidade perdida de Susa. O trabalho foi muito bem recebido e ela se tornou uma espécie de celebridade. Em 1885, no auge de sua fama, o Presidente da República Francesa concedeu a Jane a Legião de Honra e o título de Chevalier, tornando-a a primeira mulher a receber essa honra.
Quando um crítico disse que conceder tal honraria a uma mulher era absurdo, Jane não se fez de rogada. Retirou sua luva e esbofeteou o rosto do sujeito desafiando-o para um duelo com pistolas. Seu desafeto disse que não atiraria em uma mulher, mas Jane deixou claro que se o encontrasse, dispararia contra ele. Dois anos depois, ela cumpriu a promessa ferindo o sujeito na nádega. O episódio serviu para aumentar ainda mais a aura quase mítica a respeito dela.
Jane seguiu em frente em sua carreira como escritora. Ela era uma historiadora, arqueóloga, socióloga e comentarista política autodidata, convidada para presidir palestras em Universidades influentes na Grã-Bretanha. Os leitores vitorianos adoravam seus comentários cheios de ironia e ela se converteu em uma famosa autora que incentivava outras mulheres a escrever e publicar seus trabalhos.
Mas a vida na Europa acabou trazendo a tão temida monotonia... Jane e Marcel ansiavam por retornar ao Oriente e seguir adiante com seus trabalhos de campo. O breve vislumbre de Susa anos antes fazia com que os dois desejassem novas escavações. Graças a fama conquistada por Jane, não foi difícil conseguir patrocínio para uma nova expedição que partiu de Marselha na Primavera de 1885.
"Com um chicote na cintura e um rifle no ombro" - Uma famosa foto de Jane Dieulafoy
Os trabalhadores tinham grande respeito por "aquele peculiar estrangeiro de rosto delicado e muito bem barbeado, que falava diversos dialetos, desde Farsi, até Urdu". Jane supervisionava a escavação das trincheiras, catalogava artefatos e registrava os progressos com fotografias e ilustrações. Seus métodos inovadores de administrar o trabalhos dos escavadores foram usados posteriormente por outros arqueólogos, sobretudo no Egito. O famoso egiptólogo Howard Carter, responsável pela descoberta da Tumba de Tutankhamen escreveu que os métodos de Jane Dieulafoy revolucionaram o trabalho de escavação.
Foi nessa segunda expedição que a equipe desenterrou o monumental Palácio de Ataxerxes II e recuperou as famosas Frisas do Leão. Jane meticulosamente desenhou a posição de cada um dos milhares de tijolos que compunham a obra que foi cuidadosamente desmontada, transportada de navio para a França e remontada para exposição no Louvre.
Durante as escavações em Susa, a expedição sofreu com constantes tempestades de areia que impediam os trabalhadores de deixar as tendas. O tempo estava tão ruim que o grupo teve de refazer seus planos e se concentarr no Palácio Real. Os Dieulafoy fizeram então uma incrível descoberta ao verificar uma descoloração no piso do palácio que indicava a existência de um segundo piso abaixo da estrutura. Escavando naquele ponto, eles se depararam com os restos do Palácio original erigido por Dario I e destruído em um incêndio séculos antes de Ataxerxes ordenar sua reconstrução. Escavando nesse ponto, encontraram câmaras subterrâneas contendo artefatos ainda mais antigos, incluindo um mosaico onde se via uma parada militar em homenagem a um poderoso Rei. O objeto ficou conhecido como "Frisa dos Imortais" e é considerado até hoje um dos artefatos mais importantes da História Antiga da Pérsia.
A habilidade de Jane de lidar com qualquer tipo de situação se tornou lendária. Uma de suas mais famosas estórias demonstra claramente sua postura diante do perigo. Enquanto estava em Susa, durante o transporte de suprimentos e artefatos através de um rio caudaloso, Jane foi forçada a cruzar sozinha em uma jangada pois os carregadores ficaram com medo de que a frágil embarcação não seria capaz de completar a travessia. Depois de atravessar para o outro lado ela sinalizou para os carregadores e só então estes aceitaram repetir sua façanha.
Em outro incidente, Jane estava acompanhando uma caravana que levava artefatos para um porto quando o grupo surgiram oito nômades montados em camelos e armados com rifles e cimitarras. Os homens exigiam inspecionar os objetos e ficar com parte da carga como uma espécie de tributo. Pensando rápido, Jane sacou as duas pistolas que levava no coldre e apontou para os bandoleiros, dizendo a eles: "Eu tenho 14 balas para usar em vocês, vão agora e chamem mais seis dos seus amigos". Os nômades ficaram tão impressionados pela ameaça que partiram sem cobrar o pedágio.
"Eu tenho 14 balas para lidar com vocês, vão agora e busquem mais seis de seus amigos"
Após dois anos escavando em Susa, os Dieulafoy decidiram retornar para Paris com os tesouros que haviam coletado. Um navio maior teve de ser fretado para levar todos os artefatos encontrados pela expedição. Na chegada a Paris, o casal foi recebido por dignatários e milhares de curiosos que aplaudiam e acenavam.
Foi depois de sua chegada a Paris que Jane decidiu abolir permanentemente os trajes femininos e adotar seu próprio código de vestimenta. Ela cortou seus cabelos bem curtos e passou a vestir calças largas, casaca caqui e sapatos. Ela sempre recorreu a esses trajes para ganhar liberdade e segurança durante as viagens ao Oriente, mas aquela era a primeira vez que decidia usar na Europa, ao menos em tempos de paz. Ela afirmava que os trajes femininos da época eram absurdos, complicados e apertados e que nenhuma mulher deveria se sujeitar a usar invenções ridículas como espartilhos.
Infelizmente, os Dieulafoy jamais voltariam à Pérsia. O sucesso da segunda expedição e a notícia de que Jane havia participado ativamente da escavação fez com que o Xá barrasse todos os pedidos seguintes feitos por escavações francesas de entrar no seu país. O boicote se estendeu até a década de 1970.
Mesmo assim, o casal continuou trabalhando em campo. Os Dieulafoy se mudaram para a Espanha onde trabalharam em escavações de antigas cidades mouriscas em toda costa e no Marrocos. Esse trabalho resultou em importantes descobertas sobre a presença muçulmana na Península Ibérica e a influência árabe na arquitetura medieval, um conhecimento que permitiu a construção de Catedrais e Igrejas. De posse da sua fiel câmera, Jane visitou o Marrocos em 1914 e registrou movimentações de tropas da Grande Guerra, convertendo-se em uma das primeiras correspondentes internacionais.
Com a Guerra se espalhando pela Europa, Jane retornou para a França e discursou para mulheres incentivando-as para que ajudassem no esforço de guerra. Ela chegou a fazer campanha para que as forças armadas aceitassem mulheres em suas fileiras, mas suas ideias foram muito combatidas pelos comandantes militares que afirmavam categoricamente que "durante a guerra, as mulheres devem meramente esperar seus maridos retornarem".
Marcel foi alistado em 1914 e enviado para o Marrocos. Jane, é claro, o acompanhou em sua viagem como Oficial do Corpo de Engenharia, vestida como um oficial francês. Na ocasião, os dois chegaram a receber permissão para conduzir escavações no Mosteiro de Hassan e no sentamento romano de Volubilis.
Foi nessa época que Jane começou a demonstrar um cansaço cada vez maior. Alternando dias de trabalho na escavação e no hospital de campo tratando dos feridos, ela acabou contraído disenteria amebiana e teve de ser transferida para um hospital em Casablanca. Apesar de muito debilitada, ela insistiu em ficar no Marrocos ao menos até concluir seus trabalhos em Volubilis. Em 1916, Marcel decidiu levar a esposa de volta para a França para que ela pudesse se recuperar melhor. Se ela tivesse ficado de resguardo, talvez tivesse se recuperado, mas nem ela e nem Marcel conseguiram ficar longe do esforço de guerra. Os dois viajaram para o fronte afim de registrar em fotografias a vida dos soldados nas trincheiras. Quando retornou a Paris, Jane estava muito fraca, mas ainda resistiu por seis meses. Ela morreu no Hospital Militar de Pompertuzat nos braços de seu companheiro de aventuras aos 64 anos de idade.
Seu enterro teve muita pompa e ela recebeu honras militares. Marcel deu a ela o crédito por várias descobertas arqueológicas e ela foi reconhecida como uma das maiores especialistas em história antiga da Pérsia. Marcel viveu apenas mais oito meses. Os dois foram enterrados juntos no Cemitério de Peré-Lachaise.
Há muito que pode ser dito a respeito da vida de Jane Dieulafoy. Vários de seus diários, anotações, correspondência e fotografias sobreviveram e ajudaram a preservar sua história. Ela foi uma das mais competentes e intrépidas arqueólogas de seu tempo. A despeito de sua postura feminista, ela sempre defendeu alguns pontos conservadores, sendo contrária ao divórcio. Ela nunca abriu mão de seu sexo, à despeito de se vestir com roupas masculinas. Ela foi uma defensora ferrenha dos direitos das mulheres, instituindo premiações para mulheres escritoras e incentivando a produção literária feminina. Até o fim de sua vida, ela foi muito ativa, explorando e escavando.
Talvez a maior honra recebida tenha sido póstuma. Em seu funeral, sua contribuição foi reconhecida e ela foi comparada a Joana d'Arc pelos seus compatriotas. Na frente ocidental, os franceses fizeram uma salva de 21 tiros com canhões, que foi prontamente respondida pelos alemães em reconhecimento à vida de uma aventureira sem limites.
Só essa história é melhor que 90% que é produzido no cinema sobre mulheres, e não me à tenho ao gênero aventura.
ResponderExcluirOlha só... a VERDADEIRA Lara Croft?
ResponderExcluir