Agora experimente ouvir o mundo à sua volta, de preferência de madrugada. Ouça com atenção e vários ruídos irão parecer estranhos e incomuns. Espere mais um pouco... preste atenção nos tons, nas nuances, em cada detalhe. Agora faça uma outra experiência, tente andar pela casa apenas ouvindo as coisas à sua volta. Com os olhos vendados, tentando se guiar apenas pelos sons. Que barulho foi esse? Que ruído foi aquele?
Estar cego, virtualmente incapaz de perceber o ambiente. Não ter coragem de abrir os olhos porque o mundo como conhecemos não existe mais e dependendo do que enxergar, você pode enlouquecer de vez e se tornar uma ameaça à todos à sua volta.
Bem vindo a Caixa de Pássaros.
A premissa do primeiro romance de Josh Malerman, lançado aqui no Brasil pela Editora Intrínseca, é que o mundo acabou por conta de uma espécie de epidemia violenta e incontrolável. Ninguém sabe ao certo o que é, como se transmite ou mesmo do que se trata. Essa epidemia, no entanto, causou sérios danos a civilização como um todo e obrigou os sobreviventes a se esconderem em suas casas e não olhar para fora. Abra seus olhos e você pode ficar louco. Matará seus entes queridos e depois vai acabar matando a si mesmo em um frenesi assassino. Quanto tempo é possível evitar espiar o que está acontecendo? Até quando é possível suportar a privação do principal sentido?
Nesse romance pós-apocalíptico não temos informações suficientes para compreender o que aconteceu? Seria uma doença neurológica? Um tipo de histeria em massa? Uma invasão alienígena? Ninguém sabe ao certo, mas há muitas conjecturas. Como nos filmes de zumbis, a catástrofe despencou sob a cabeça das pessoas comuns e a derrocada da humanidade foi muito, muito rápida. A única coisa que está clara é que sair de olhos abertos para o exterior resulta em insanidade, não apenas confusão ou atordoamento, mas violência destrutiva do tipo homicida.
A estória se passa em um futuro bem próximo, algum tempo depois da desgraça se abater sobre o mundo. Malorie é uma jovem mãe, que cuida de suas duas crianças da melhor maneira possível. Ela está treinando as crianças há mais de quatro anos, a ouvir e reconhecer o mundo através da audição e não da visão. As crianças desenvolveram uma notável sensibilidade e são a sua esperança em uma arriscada missão. Ela planeja embarcar em uma jornada às cegas através de um rio tentando encontrar ajuda. Qualquer som pode ser alguém ou alguma coisa a persegui-la. Ela precisa confiar nas habilidades do menino e da menina para guiá-la por um território misterioso e insondável. E os leitores a acompanham em sua viagem sem saber para onde ela está indo e o que ela espera encontrar.
Os capítulos do livro alternam diferentes épocas da vida de Mallory: sua jornada através do rio, como ela enfrentou o início da crise e como ela foi parar na casa refúgio que se tornou o seu lar. Nós ficamos sabendo como o "problema" começou, acompanhamos o horror e destruição que se instala em um bairro suburbano de Chicago, o início da paranoia, a morte de parentes e amigos e a busca desvairada por um lugar seguro onde ela, grávida, possa ter o filho que carrega. Mallory finalmente encontra um santuário, uma casa onde os habitantes tiveram a oportunidade de se preparar para a crise, lá ela encontra um grupo de indivíduos desajustados, afundados no medo e na superstição. Lá ela também ficará sabendo de teorias conspiratórias sobre a natureza da crise, fará amigos e conhecerá ameaças.
Em estórias de horror, temos dois tipos de personagens. Aqueles com quem não nos importamos e que rapidamente se tornam vítimas das circunstâncias ou dos horrores que espreitam nas páginas. E aqueles para os quais torcemos e esperamos que sobrevivam até a última página. Em Caixa de Pássaros, temos o segundo tipo de personagem personificado em Mallory. Com os saltos na cronologia temporal, acompanhamos como se dá a transformação dela, de uma moça frágil e insegura, em uma lutadora, disposta a tudo para sobreviver e superar as imensas adversidades impostas a ela e suas crianças. A forma como a personagem vai se preparando para sua perigosa viagem, a maneira que ela trata as crianças e os horrores que enfrenta no caminho e nos anos anteriores a partida, são cobertos ao longo da trama.
Malerman conta a história de uma maneira sempre interessante, fazendo com que o leitor vire as páginas em uma agonia crescente.
A dinâmica de uma casa cheia de refugiados também é um dos pontos altos da trama. Os personagens coadjuvantes que habitam a casa transformada em um microcosmo, estão sempre discutindo, sempre no limite de suas forças físicas e mentais. À um passo da insanidade. Além disso, tem o clima de constante paranoia e medo. Alguns acreditam que a causa da tragédia são monstros; criaturas vindas de outro mundo, realidade ou dimensão (ninguém sabe) que são tão bizarros que apenas olhar para eles resulta em loucura. Os sobreviventes precisam aprender a trabalhar em grupo, usar seus recursos com parcimônia, realizar tarefas em nome da coletividade e, é claro, superar a desconfiança inerente. Nem todos querem colocar em risco a precária segurança do refúgio e as maiores discussões envolvem as expedições para buscar alimento, remédios e material. A narrativa se mantém fixa no olhar de Mallory diante dos acontecimentos, de modo que o leitor só sabe aquilo que ela sabe.
Malerman consegue trabalhar muito bem o conceito familiar de uma sociedade pós-apocalíptica. Não é uma ideia nova, e francamente eu não esperava que ele conseguisse ser original quanto a isso. Mas realmente, ele consegue! Já vimos livros a respeito de civilizações devastadas por doenças misteriosas, por invasões alienígenas e por pragas de zumbis, mas em Caixa de Pássaros, ninguém tem a mais remota ideia do que está enfrentando e isso é terrivelmente assustador. Talvez não haja mais nenhuma ameaça ou perigo do lado de fora, mas é claro, ninguém quer se arriscar. Quem será o primeiro a remover as cortinas das janelas e abrir a porta, convidando o horror a entrar?
Lá pela metade do livro você nem quer mais saber quem ou o que é responsável pelo horror, tudo que quer é que Mallory consiga chegar com suas crianças a um lugar seguro. É claro, a jornada envolve perigos humanos, animais selvagens e a natureza inclemente. Há ainda um inequívoco odor de Horror Cósmico pairando no ar, algo bem próximo do pavor primitivo presente na obra de H.P. Lovecraft. A própria Mallory não sabe ao certo o que está sentindo ou se há alguma coisa inumana perseguindo sua canoa, mas a mera possibilidade a deixa aterrorizada.
"Caixa de Pássaros" é um excelente entretenimento e uma novela difícil de largar. Se você for ler no ônibus ou trem, é possível que perca o ponto ou a estação onde planejava descer. Caso esteja lendo na cama, prepare-se para dormir tarde, pois vai querer ler "apenas mais um capítulo" e quando se der conta, já serão duas da manhã. Caixa de Pássaros é estruturado de uma maneira que você se sente compelido a virar as páginas e saber de uma vez por todas como termina, ao mesmo tempo em que provoca aquela sensação de querer adiar ao máximo o parágrafo final afim de estender o mistério.
Não se trata de um livro de horror sobrenatural, mas um horror íntimo e psicológico que toca cada pessoa de maneira diferente. Alguns talvez se vejam menos suscetíveis ao horror oculto, mas outros vão adorar a sensação de se sentir acossados pelo desconhecido. O fato da personagem que conduz a trama tatear pelos capítulos finais literalmente às cegas, incapaz de traduzir o que está acontecendo é enervante. É um daqueles livros que recorre a imaginação do leitor para que ele mesmo crie em sua mente a perspectiva mais assustadora. E acredite, se você se deixar levar pela história, irá construir o pior cenário possível.
Eu realmente gostei de Caixa de Pássaros e recomendo a todos os fãs de suspense que por vezes gostam de sentir uma saudável dose de claustrofobia.
Estava procurando um livro nesse estilo para ler. Obrigado!
ResponderExcluirDepois do 'feche seus olhos' nâo li mais nada
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