Quando eu tinha uns 12 ou 13 anos coloquei minhas mãos na novela clássica de Agatha Christie "Assassinato no Expresso do Oriente". Era uma cópia meio surrada que encontrei à venda em em uma dessas banquinhas de rua. Comprei baratinho.
Eu já tinha lido alguns livros da Grande Dama do Mistério e havia gostado especialmente de Hercule Poirot, um detetive belga, baixinho, afetado, com cabeça de ovo, que fugia do convencional. Poirot foi minha primeira experiência com a ideia de que detetives não precisavam ser caras grandes, fortes e durões, que usavam os punhos e uma pistola para resolver os casos. Poirot, ao invés disso, usava suas "pequenas células cinzentas" para encontrar a solução dos crimes mais complicados.
Apesar de ter comprado o livro, estar curioso para ler e me deixar levar pelo mistério, acabei colocando ele de lado. Não sei explicar o motivo, mas Assassinato no Orient Express ficou na prateleira por um bom tempo. Nesse meio tempo, a primeira adaptação para o cinema, um clássico de 1974, passou na televisão e eu tive a chance de assistir. Alias, esse filme merece ser chamado de clássico com todas as letras. É uma super-produção com elenco de estrelas, direção fantástica e uma reconstituição de época (cenários e figurino) de cair o queixo. Não por acaso ele é considerado como uma das melhores adaptações de uma obra de Agatha Christie. Que convenhamos, não é pouca coisa.
Dois elementos, na minha opinião tornam essa história algo especial. Primeiro o cenário escolhido, o lendário Orient Express, o mais exclusivo e luxuoso trem de passageiros do mundo. Seus vagões requintados e cabines servem como pano de fundo para envolver personagens exóticos em uma trama muito bem construída, que nos leva ao segundo elemento. A conclusão, a pergunta essencial de um livro de mistério: "Quem é o culpado?", reserva uma reviravolta inesperada, que desde os anos 30 (quando o livro foi originalmente publicado) surpreende os leitores.
Com tudo isso, a notícia de que Assassinato no Expresso do Orient seria refilmado causou rebuliço e despertou interesse imediato. Tanto que até comprei uma nova edição da novela e, finalmente, depois de tantos anos adiando, li a história. Enquanto isso, as notícias sobre o elenco repleto de estrelas e os cuidado da produção, também ajudaram a criar uma enorme expectativa.
E foi em meio a essa alta expectativa que fui assistir o filme, esperando um novo clássico, desejando de coração que ele fosse o primeiro de uma serie de adaptações de Agatha Christie capaz de revitalizar o gênero "who dunnit" que andava meio esquecido.
O que achei? Bom, nas palavras de um colega que assistiu o filme e compartilhou da mesma opinião; o filme não é ruim, mas parece um bolo de casamento: bem feito, decorado, lindo de morrer, mas que infelizmente não tem muito gosto.
E de quem é a culpa? Bom, no caso específico de Assassinato no Expresso do Oriente, o trem descarrilha justamente na maneira como o diretor e astro principal, Kenneth Brannagh (que interpreta o detetive), escolheu apresentar seu personagem.
Poirot é um protagonista interessante justamente pelas suas características peculiares. Um homenzinho pequeno (um metro e cinquenta e oito), cheio de manias e meticuloso a ponto de ser irritante com suas inúmeras idiossincrasias. Brannagh mantém algumas delas, mas exagera em outras, tanto quanto nas absurdas dimensões do seu bigode, que assume contornos que vão muito além do usual. O grande problema do Poirot de Brannagh é que ele parece muito mais com o elegante ator e diretor britânico do que com o detetive belga. Ele adota hábitos "a la Sherlock Holmes", de observar estranhos e intuir sobre suas origens e profissões com base de detalhes físicos. Também segundo a cartilha dos detetives geniais, mas cheios de problemas, o Poirot do filme manifesta um TOC mais severo, que faz com que ele precise satisfazer proporções em tudo - desde o tamanho e distância entre ovos, até pisar com os dois pés em bosta de cavalo nas ruas do Cairo para manter o equilíbrio. Também, como Holmes, ele se torna adepto do combate físico, algo inconcebível para o Poirot de Agatha Christie que nunca ergueu nada mais pesado que um lápis nos contos.
É compreensível que se deseje adaptar o personagem para um novo público e para novos tempos, mas o resultado final soa estranho e bem diferente de nossas memórias do bom e velho Poirot. O detetive que vemos na tela é um sujeito temperamental em excesso, que se deixa levar pelos componentes emocionais contidos no caso e que reage como um mártir quando revela suas conclusões. Poirot sempre me passou a ideia de ser um detetive que assume investigações por motivos egocêntricos; ele não persegue os criminosos por dinheiro ou mesmo por justiça, ele o faz porque deseja ser melhor que seus oponentes. Seu objetivo é confrontar os assassinos e criminosos e provar que sua mente analítica é superior e que não existe crime perfeito - ao menos enquanto ele estiver por perto. Ao acrescentar questionamentos dramáticos e sublinhar a melancolia, em detrimento da lógica racional, Brannagh desvirtua um bocado o personagem
Para os que não conhecem o personagem, talvez o resultado não pareça estranho e estes devem aproveitar bem mais o filme. Aos que estão familiarizados com o estilo e charme do Poirot das novelas ou de intérpretes como Albert Finney, Peter Ustinov e David Suchet, vai ser difícil engolir a versão de Brannagh, que não parece ter encontrado o ponto ideal em sua composição.
Quanto ao roteiro, ele deve ser familiar mesmo para os que não leram a novela ou assistiram as outras versões. Fiquem tranquilos, aqui não há spoilers e ler a resenha não vai atrapalhar sua diversão. A trama é a seguinte: O ano é 1935, e treze aparentemente estranhos viajam à bordo do suntuoso Expresso do Oriente, compartilhando o vagão da primeira classe de Istambul até Calais. Um deles é assassinado em sua cabine com dezenas de facadas, e o restante se vê aprisionado por uma nevasca que bloqueia a linha. O assassino deve estar entre eles, mas quem é o responsável pelo violento crime? Felizmente entre os viajantes encontra-se o famoso detetive Hercule Poirot ("possivelmente o maior detetive do mundo"), que é incumbido de solucionar o mistério.
Uma das grandes preocupações do roteiro era fazer com que o filme não se tornasse maçante, afinal a novela original se concentra em várias entrevistas e numa série de interrogatórios com os suspeitos, o que não funcionaria em um filme de duas horas de duração. Para tornar as coisas mais interessantes, a investigação de Poirot alterna paisagens e lugares e introduz algumas mudanças para conceder um ritmo um pouco mais ágil à trama. Isso funciona bem, o filme não fica confinado ao interior do vagão, há até a oportunidade de inserir uma perseguição ao longo de uma ponte, um tiroteio e algumas ameaças reais ao personagem, o que na novela jamais acontece.
O filme aliás começa com um trecho que também não está no livro. Nele Poirot é chamado para resolver um mistério envolvendo um padre, um rabino e um iman (sim, a inevitável piada que os três entram em um bar é feita). Um deles teria roubado uma relíquia sagrada e apenas o detetive é capaz de dar uma solução à contento. No processo, Poirot é apresentado como um perfeccionista inveterado capaz de, nas suas próprias palavras, "ver o mundo como ele deveria ser e encontrar suas imperfeições". Ao entrar no Expresso, Poirot parece sentir no ar que algo está prestes a acontecer, e sua perspicácia será essencial para a resolução do caso.
O restante do filme é uma adaptação razoavelmente fiel, com algumas variações e pequenas alterações aqui e ali. Dois personagens - o médico e o militar, são fundidos em um único, a motivação e origem de alguns personagens é levemente modificada, sem que se perca muito. Um ponto interessante é a inserção de uma questão racial e de preconceito que também não havia no livro. Além disso, um segundo ataque com faca é inserido para agilizar a trama com bons resultados. Outras mudanças parecem um tanto desnecessárias, entre as quais, um amor perdido de Poirot, outro adendo esquisito ao background do personagem, que jamais é devidamente explicado. Quem seria a tal Catherine sobre a qual o detetive murmura juras de amor ao olhar o retrato?
Um dos pontos altos da produção é a reunião de uma constelação de astros e estrelas de peso que geralmente é escalada para integrar dramas de mistério. Um elenco impressionante foi selecionado para interpretar os passageiros do Vagão Calais. A lista inclui nomes como Judy Dench, Olivia Colman, Penélope Cruz, Josh Gad, Willem Dafoe, Daisy Ridley, Michelle Pfeiffer (meu Deus essa mulher continua linda!!!) e Johnny Depp. Todos eles parecem comprometidos em fazer sua parte, mas o roteiro, muito concentrado em Poirot, não permite que nenhum se destaque. Infelizmente, com poucas oportunidades de brilhar, a presença deles acaba relegada quase a participações especiais de luxo com personagens que não tem muito a fazer além de ouvir as conclusões do detetive e agir de maneira suspeita.
A presença de tantos nomes e rostos famosos talvez pudesse ser mais bem explorada, mas muitos deles acabam passando batidos. Eu adoraria que o roteiro concedesse mais tempo para que pudéssemos absorver um pouco mais da interpretação de cada um, mas não é o que ocorre. Deveria haver uma lei contra escalar um elenco com atrizes como Judy Dench e Michelle Pfeifer e dar a elas tão pouco a fazer.
Tecnicamente Assassinato no Expresso do Oriente é um banquete para os olhos: figurino e direção de arte são incríveis com uma reconstituição de época deslumbrante. Boa parte do trem foi criado através de recursos visuais de CGI, bem como as cenas externas em que o Expresso corta montanhas e paisagens cobertas de neve, que parecem saídas de cartões postais. O esplendor visual é tamanho que você até se pergunta se a produção construiu sua própria versão do Orient Express nos mínimos detalhes. Não duvido que o filme vá colecionar uma série de indicações nas categorias técnicas nessa temporada de premiações e muitas delas estariam em boas mãos se forem concedidas a essa equipe.
Como disse antes, Assassinato no Oriente Express não é um filme ruim, mas é impossível não sentir uma pontada de frustração ao constatar que poderia ter sido muito melhor se a simplicidade tivesse superado as boas intenções. Contando com um elenco estelar, uma produção caprichada e uma ótima história, teria tudo para ser um dos melhores filmes do ano, mas ao invés disso ele acaba sendo apenas ok. Eu torço para que ele se saia bem nas bilheterias e para que marque uma espécie de revival do gênero mistério.
O ideal é que a inevitável sequência, cujo gancho é citado no trecho final (provavelmente "Morte no Nilo") seja mais bem conduzida. E se assim for, teremos um filme à altura de Agatha Christie.
Trailer:
Pensei que eu fosse o unico a achar esse filme mediano, exatamente nos pontos que rua resenha aponta.Eu tb achei que o filme entrega um pouco o final; mas talvez eu veja isso por ter lido o livro.
ResponderExcluirQuando eu vi uma prévia do filme em novembro, com o Poirot atentando sobre o "giz na manga do casaco" da personagem que-esqueci-o-nome eu falei... não... eu passo!
ResponderExcluirDavid Suchet sempre será o meu Poirot e a versão DELE em Assassinato no Expresso do Oriente será sempre a melhor.