Uma das coisas mais assustadoras em Hereditário, um filme recheado de horror e angústia, é um som.
Trata-se de um som inocente, um que qualquer pessoa pode conjurar simplesmente estalando a língua de encontro ao céu da boca: CLOK! (Imagino que alguns dos leitores dessa resenha estejam tentando fazer nesse momento. Se não tentou, tente: CLOK!). Raramente nós reproduzimos esse som peculiar, talvez apenas para imitar o som do galope de um cavalo, mas Charlie Graham faz esse "CLOK" com frequência. É uma espécie de marca registrada da personagem e um indicativo de que ela está por perto.
Quando assisti Hereditário em um cinema bem vazio no meio da semana passada eu fiquei algum tempo afundado na poltrona olhando os créditos finais subindo. Enquanto isso as pessoas iam saindo. Quando o último casal estava na porta eu fiz o que estava querendo fazer desde o início do filme: coloquei a língua no céu da boca e... CLOK!
O som saiu mais alto do que deveria, o casal, virou com uma expressão de susto tão grande que foi impossível disfarçar a surpresa e risada que veio depois.
Eu não culpo o casal, a moça estava sentada umas duas fileiras atrás de mim e eu ouvi ela respirando e suspirando alto algumas vezes, em uma ocasião comentou baixo (mas alto o bastante para ouvir): "Não estou gostando desse filme, você não me disse que era de terror".
Não sei o nome da moça, mas acho que da próxima vez ela deveria se informar um pouco melhor a respeito do que está indo assistir.
Hereditário não é apenas "terror", é HORROR, com letras maiúsculas, em negrito e sublinhado (e como ainda não bastava, aumentei a fonte).
Isso levanta a questão: Um filme de Horror ainda consegue ser realmente assustador? As primeiras resenhas a respeito de Hereditary diziam que a sinistra saga da família Graham era uma das coisas mais assustadoras dos últimos anos. Ele foi saudado como o novo Exorcista, o novo Bebê de Rosemary e o novo Iluminado, apenas para citar três clássicos de um gênero que demora décadas para contribuir com um filme considerado "importante" para a sétima arte.
Marketing? Construção de Hype? Exagero puro e simples?
Surpreendentemente não.
Eu não sei se Hereditário será um filme tão transcendental quanto os citados, mas eu tenho quase certeza de que, daqui uns 10-20 anos, ele ainda vai ser citado como um dos maiores filmes de Horror de todos os tempos. E isso, considerando a quantidade de filmes que se produz e de como eles são facilmente "esquecíveis", não é pouca coisa.
Ele é sim, facilmente o melhor filme de horror de 2018 (desculpe "Um Lugar Silencioso", seu reinado foi curto!), mas também é um dos melhores filmes do ano (de qualquer gênero que se queira colocar na disputa).
Hereditário é esmagadoramente opressivo, profundamente chocante e mergulhado em tanta angústia, luto e apreensão que em determinado momento da projeção você chega a ficar sem fôlego. Sim ele é um HORROR daqueles que te pega de surpresa, tira o seu ponto de equilíbrio e te visita na calada da noite, quando seu quarto está escuro e todos estão dormindo. Ele conspira para criar sombras escuras nas paredes e ruídos inconvenientes no outro cômodo. Ele tem corpos decapitados, gente fanática maluca e doentia, sessões espíritas com objetos se movendo, insetos de balde, pesadelos bizarros, acidentes horríveis e sangue, mas também é uma obra de arte.
Nenhuma história de fantasmas hoje em dia consegue ser totalmente inovadora, mas o diretor Ari Aster (em seu primeiro filme) consegue construir uma narrativa recorrendo a uma família despedaçada por danos psicológicos que poderiam derrubar uma manada de elefantes. E isso é uma baita façanha! O horror no filme não está ali para causar sustos bobos, mas para conduzir a trama e através dela gerar o choque e incômodo que vão ficar com o espectador ao longo de toda duração (e possivelmente mais além). Eu particularmente sei que esse filme vai ficar comigo por um bom tempo, ele bate fundo e ao longo dos dias, quem se deixar envolver pela trama, vai ser visitado por ele diversas vezes.
E esse é uma viagem selvagem!
Hereditário é um filme produzido pela A24, um produtora que está se notabilizando pelo fantástico trabalho de transformar filmes de horror em produções notáveis. A A24 possui em sua conta apenas três filmes do gênero, desde seu surgimento: "Corrente do Mal" (It Follows - 2015), A Bruxa (The Witch - 2017) e agora Hereditário (Hereditary - 2018). Em comum eles tem o fato de que, todos e cada um, serem visualmente perfeitos, com interpretações acima da média, fotografia, efeitos visuais, direção de arte e som impecáveis... O resultado? Três filmes considerados marcos nessa nova Era Dourada do Horror moderno.
Mas vamos ao que importa, falar de Hereditário.
O filme abre com a notícia de um funeral e a recepção que se segue. Annie Graham (Toni Collette), uma artista de galeria que cria detalhados modelos em miniatura, está conduzindo os preparativos para o sepultamento de sua mãe, que, como ficamos logo sabendo sofria de vários problemas de personalidade. Annie é casada com Steve (Gabriel Byrne), e eles tem dois filhos: Peter (Alex Wolff), um adolescente típico de high school americana e sua irmã mais nova Charlie (Milly Shapiro), a típica menina esquisita de high school americana, com olhos assombrados, uma expressão sempre séria e que nunca sorri. Charlie é uma preocupação constante dos pais; ela parece sempre distante, encara as pessoas e diz coisas sem muito sentido. Depois do sepultamento da avó, coisas ainda mais estranhas vão começar a acontecer com ela.
Annie nunca teve um relacionamento fácil com a falecida mãe, e isso é colocar panos quentes na situação: as duas nunca se entenderam e os anos finais da mulher foram complicados, para dizer o mínimo. A família de Annie por sinal, não era exatamente normal, com uma boa dose de doença mental, suicídio, loucura e comportamento excêntrico como ficamos sabendo quando ela procura um grupo de apoio que a ajude a lidar com a morte da mãe - ou sua falta de empatia com o acontecimento.
O catalizador dramático em Hereditário - o medonho incidente que move a história para um lugar que ninguém poderia antecipar, ocorre quando Peter é obrigado pela mãe a levar sua irmã a uma festa. Não há como negar que o que acontece a seguir é um dos acidentes mais bizarros já filmados e que produzirá ondas de choque até a conclusão frenética do filme. Chocado com tudo que aconteceu, Peter começa a ver coisas fantasmagóricas que não estão necessariamente lá. O casamento de Annie e Steve entra em colapso e vai para o fundo do poço, tão rápido quanto as relações afetivas entre os membros da família.
Tentando achar uma tábua de salvação, Annie retorna ao grupo de apoio onde conhece Joan (Ann Dowd) outra mãe que foi visitada pela tragédia. Ela lhe oferece primeiro um ombro amigo e depois uma opção para suportar sua perda. E é assim que Annie começa a buscar nas sessões espíritas uma forma de superar o seu trauma e reparar os laços de família abalados pelo luto.
Parece o roteiro de um dramalhão pesado sobre perda e reparação, certo? Bem, nem tudo é o que parece ser!
Em um ritmo lento, como parece ser mandatório para filmes de horror atualmente, algumas peças do grande quebra-cabeças vão sendo jogadas para a audiência e aqueles atentos o bastante começam a perceber que algumas delas se encaixam. Hereditário é daqueles filmes em que as coisas vão acontecendo e você vai compreendendo o quadro geral devagar, juntando as pistas para formar uma imagem. À princípio ela é desfocada e não faz muito sentido, mas se continuamos olhando com atenção, tem um momento que vem um estalo e aí você entende tudo. O significado de pequenas coisas apenas sugeridas. A relação de alguns detalhes apresentados. E o por que do título do filme. E é quando vem o choque!
A história cresce como uma tempestade prestes a desabar à qualquer momento. A música densa da trilha sonora parece saída de um saxofone fantasmagórico e permeia toda trama subindo nos momentos perfeitos. Os efeitos visuais, de maquiagem e prostético, por conta do mestre Steve Newburn, também são incrivelmente eficientes. Ainda assim, Hereditário não nos choca com cenas de gore (embora ele esteja lá) ou violência visceral (que também aparece), mas com terror psicológico do tipo que é difícil de encarar. O filme aposta em closes e nas expressões de choque dos personagens quando confrontam o pavor sobrenatural. Mostra o quanto aquelas pessoas estão nos limites de suas forças e da própria sanidade.
Sem um elenco tão afinado, é provável que a trama não funcionasse. Alex Wolff tem uma atuação impressionante, ele consegue passar a ideia de uma mudança gradual e de como o trauma muda uma pessoa. Sua atuação na cena final, de surpresa e dúvida, são impressionantes. Milly Shapiro, como Charlie passa uma tristeza e um senso de isolamento notável. Mas é Toni Collette, que domina o filme do início ao fim. Famosa como uma coadjuvante que rouba várias cenas, ela ficou famosa como a mãe do menino que "via pessoas mortas" em "O Sexto Sentido". Lá já havia provado o quanto se encaixava no papel de mulheres confrontadas com o improvável. No papel da mãe arrastada para uma conspiração de horror sobrenatural, ela entrega a atuação da sua vida. Ainda é bastante cedo para dizer, mas imagino que ela vai estar em praticamente todas as listas de premiações cinematográficas do ano que vem.
Toda história de fantasmas de respeito precisa de uma casa assombrada, e Hereditário possui uma fantástica. Os Graham vivem em um elegante chalé de madeira aos pés de uma montanha. A casa possui várias dependências, inclusive uma que Annie utiliza como ateliê para suas miniaturas que vão ficando cada vez mais bizarras e sinistras a medida que o filme avança. A relação dos aposentos da casa com as miniaturas da artista, criam uma dimensão paralela, quase um universo miniatura, que antecede alguns incidentes, num trabalho incrível. A cena inicial em que um quarto vai sendo apresentado em detalhes como parte do modelo em miniatura e no fim se torna um aposento de verdade é sensacional.
Não faltam influências claras dentro de Hereditário que apontam para clássicos. O roteiro invoca em vários momentos O Bebê de Rosemary ao focar em indivíduos que parecem absolutamente normais, mas que escondem segredos aterrorizantes entre quatro paredes. E ao tratar da ambição e do desejo de comungar com o mal e extrair dele recompensas. O isolamento do chalé dos Graham remete ao frio e impessoal Hotel Overlook, vazio de pessoas, mas repleto de almas perdidas. A fragmentação da unidade familiar por eventos orquestrados por forças malignas incompreensíveis encontra sintonia com O Exorcista. Buscando nesses clássicos o respaldo necessário, Hereditário presta a eles uma grande homenagem e ousa pleitear um merecido espaço entre estas obras primas.
Hereditário leva o horror e angústia a um ponto quase insuportável, um que poucas vezes foi atingido e que vai deixar a platéia perplexa em uma jornada apavorante. Em Hereditário não há maldição de Família, a Família é a própria Maldição. E dela, não há como escapar!
CLOK!
Trailer:
Deu até medo de assistir! Nunca assisti 'O Exorcista', só li o livro... vamos ver se aguento a tensão de 'Hereditário'. :D
ResponderExcluir👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽
ResponderExcluirEu adorei o filme. Senti desconforto e até vontade de sair correndo durante uma determinada cena, mas fiquei até o fim para saber o que iria acontecer. Este não é um filme para ver por ver. É preciso prestar atenção para resolver o quebra-cabeça. O final me deixou chocado. Eu estava precisando ver algo diferente. Esse filme conseguiu me mostrar isso e muito bem.
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