No primeiro artigo falamos de forma muito rápida à respeito do Horror Cósmico e seus conceitos básicos.
Nesse e nos próximos artigos vamos falar dos cinco Pilares que sustentam o Horror Cósmico e que juntos concedem legitimidade a ele como um gênero único do Terror. Mais do que isso, vamos tentar enquadrar cada pilar dentro de uma proposta de uso prático para mesas de RPG com sugestões de como esses pilares podem ser invocados nos seus cenários.
O PRIMEIRO PILAR
DA INSIGNIFICÂNCIA HUMANA
“Somos para os deuses como moscas para meninos travessos,
Quando desejam, arrancam nossas asas e nos matam por esporte.”
Shakespeare, Rei Lear
* * *
O princípio da Insignificância Humana é a base que define todo o horror cósmico. É ele que pontua todo o gênero colocando a humanidade num plano inferior diante do Universo como um todo.
Ele decorre da constatação que a humanidade — com sua história, religiões, artes e ambições — todos seus avanços, seu progresso, sua moral e seus triunfos, alcançados com grande esforço e dificuldade, não passam de um fenômeno efêmero em escala cósmica. É como um desenho feito na areia, apagado em segundos por uma onda.
No universo lovecraftiano (e nas obras que o seguiram), não há centralidade humana. A Terra não é o centro do cosmos; tampouco é a vida humana o ápice da criação. Somos uma coincidência biológica, um instante microscópico dentro de um tempo incomensurável.
Quando Lovecraft escreve que “a mais misericordiosa das coisas neste mundo é a incapacidade da mente humana de correlacionar todo o seu conteúdo”, ele está descrevendo exatamente isso: a proteção da ignorância diante da vastidão incompreensível. É a incapacidade de perceber nosso diminutivo papel na escala cósmica que nos impede de enlouquecer.
A insignificância humana, portanto, não é apenas um tema — é o horror essencial: perceber que nada do que acreditamos sobre o mundo ou sobre nós mesmos tem qualquer relevância.
Filosoficamente, esse pilar é um golpe direto contra o antropocentrismo, isto é, a visão de que o ser humano é a medida de todas as coisas. Desde o Renascimento, a cultura ocidental exaltou a razão e a capacidade humana de compreender e dominar o mundo. O horror cósmico inverte esse eixo: a razão é frágil, a compreensão é limitada e o cosmos é indiferente à mente humana.
Muitas pessoas se perguntam porque as histórias de Chamado de Cthulhu se passam nos anos 1920.
Boa parte das pessoas suspeitam de que é em virtude das histórias terem sido escritas nesse período, mas a explicação tem uma razão de ser muito mais interessante. O início do século XX, marca o momento em que a humanidade realmente acredita ser o centro da criação e que seus avanços abririam as portas para um futuro glorioso no qual ela assumiria seu lugar de direito. Pense bem, em poucas décadas o homem havia conquistado praticamente todo o globo, havia mapeado as extensões de mares e terras, alcançado o céu e as profundezas, conquistado a ciência e a chave para seu futuro. Esse era o momento em que a humanidade congratulava a si mesma, sem modéstia, pelas suas realizações.
Então surge o Horror Cósmico e diz para essa pequena raça (pouco melhor do que primatas selvagens) que ela não importa, que ela é desprezível e que nada do que ela fez é importante no contexto cósmico.
A constatação disso encontra ecos no niilismo de Nietzsche, que revela o colapso das certezas metafísicas e o vazio de sentido. No pessimismo de Schopenhauer, que vê o mundo como produto de uma vontade cega e irracional. Ou no existencialismo de Camus, que confronta o absurdo de viver em um universo sem propósito.
Mas Lovecraft vai além das correntes filosóficas e dá um soco no estômago dos teóricos transformando esse desamparo em realidade. No Horror Cósmico não é apenas que o universo seja indiferente — ele é ativo na sua indiferença, um oceano de forças e geometrias que seguem seus próprios ciclos eternos, alheios ao ser humano.
O punch line dessa piada cósmica é que o universo não nos ignora por maldade — nos ignora porque nem sabe que existimos.
Em uma narrativa de Horror Cósmico a insignificância humana pode ser abordada de várias maneiras. Seja para revelar o abismo, no qual a história leva o personagem da ilusão de controle à consciência de sua pequenez ou no colapso das certezas no qual as regras e leis naturais são colocadas em cheque.
Em determinada história os personagens descobrem que uma raça alienígena muito mais antiga, muito mais inteligente e poderosa criou os humanos em laboratórios por acidente. A descoberta de que o homem é resultado de um mero acaso, de uma combinação genética falha atende a esse pilar do Horror Cósmico. Da mesma maneira, quando um personagem se vê frente a frente com uma estrutura não euclidiana que se sustenta em bases de impossibilidade contrariando a natureza ele se vê imerso no horror cósmico. Portanto, uma história que revela verdades absolutas que contrariam todo o senso de normalidade são o suprassumo do Horror Cósmico.
Aplicando a Insignificância Humana em sua mesa de RPG:
Esse primeiro pilar é um princípio norteador de toda e qualquer aventura de Chamado de Cthulhu.
Em uma história envolvendo o Mythos a humanidade é confrontada com revelações absurdas, verdades difíceis de aceitar e com um saber que destrói nossa convicção. A descoberta é a ruína de nossa sanidade.
Para emular a Insignificância Humana, o Guardião pode recorrer a alguns truques enquanto estiver narrando uma aventura:
- A Arte de Encarar o Vazio
As pessoas que tem um lampejo da grandeza e vastidão do Universo não raramente se sentem afetadas em uma escala pessoal. Elas passam a compreender que não são nada além de poeira que está prestes a se dissipar. É impossível afastar a depressão e melancolia latente que advém dessa constatação. Muitas das pessoas tocadas pelo saber do Mythos se sentem incapazes, impotentes ou então, cobiçam o esquecimento. Esse sentimento pode ficar bem claro ao interrogar o único sobrevivente de uma incursão alienígena ou o membro de um culto que participou de seu primeiro ritual. O olhar de quem encarou o vazio é inigualável e aterrorizante.
- Silêncio e Vazio
Por vezes, a experiência individual é tão traumática que o indivíduo se fecha em seu próprio mundo e se vê incapaz de falar e descrever qualquer coisa. Essas pessoas são consumidas pelo vazio da revelação quanto a insignificância humana. Quando muito elas murmuram o quão pequenas são e o quão enormes são os poderes cósmicos. Talvez elas não falem nunca mais.
- O Colapso dos Sonhos
Os personagens aos poucos perdem sua conexão com aquilo que era importante e que dava significado a sua vida. Qual o sentido de trabalhar, de almejar alguma coisa, de constituir família ou de deixar um legado, se nada disso tem verdadeira importância no grande esquema das coisas? Ter um vislumbre da grandeza cósmica e de sua incrível vastidão pulveriza todo e qualquer sonho pelo qual, até antes da revelação, valia a pena lutar.
- As Leis naturais se mostram falhas.
O universo não é coerente e nem racional. Tudo aquilo que julgamos como certo e imutável é passível de interpretações e de questionamentos. Num universo tão vasto e caótico, as certezas humanas - frágeis e falhas, podem ser questionadas à todo momento. Ao encontrar os Mythos as coisas perdem o sentido e mesmo as certezas mais profundas desabam como um castelo de cartas.
- Ambiente alienígena
Utilize escalas inumanas — uma torre estreita que ascende até quase tocar o céu, uma floresta que parece eterna, uma ruína cujo tamanho desafia o olhar e cujas escadas possuem degraus que não foram talhados para pés humanos. Os Mythos não são humanos, então porque as suas construções ou territórios seriam adaptados a forma humana? Descreva formas geométricas impossíveis, construções inacessíveis, janelas altas demais, rampas inclinadas, paredes sólidas que parecem prestes a cair. Construções que só podem ser acessadas por seres capazes de voar. O horror de constatar que um lugar não foi construído para seres humanos explorarem é aviltante. Os personagens devem sentir-se minúsculos, como se a própria narrativa os engolisse.
- Formigas no Quintal
Uma maneira de representar como a humanidade é pequena diante do Mythos é simplesmente fazer uma entidade ignorar sumariamente os investigadores. Ele não irá atacar, não irá se mover, não irá interagir com seres menores. Quando estamos andando no quintal, sabemos que ali no chão há formigas mas não nos importamos se vamos ou não pisar nelas. Os deuses do Mythos se comportam da mesma maneira. Digamos que Yog-Sothoth seja invocado, porque ele deveria se importar com os humanos gritando aos seus pés? Se Shub-Niggurath for convocada por alguns segundos, ela deveria perceber a presença de humanos tentando atrair sua atenção?
Nós não nos importamos com seres menores que morrem esmagados sob nossos pés. Na maioria das vezes, sequer percebemos que elas estavam lá. Com os Deuses e Grande Antigos ocorre algo similar. Ao serem trazidos a nossa realidade eles não vão reagir e não vão se importar mais do que nos importamos com pequenos insetos. E se esmagar uma, duas, uma centena ou milhares de seres inferiores, isso será mero acaso.
- Nenhuma Vitória é definitiva
Mostre que o mundo segue seu curso com ou sem os personagens. Mesmo depois de grandes esforços, o mal cósmico continua lá — talvez adormecido, talvez simplesmente ignorando-os. O horror cósmico raramente concede vitórias completas — apenas adiamentos, lapsos ou ilusões de controle. Demonstre isso com desfechos agridoces. Após deter um culto em Innsmouth, os investigadores descobrem que outras células idênticas atuam em diversos cantos do mundo. Um NPC que os investigadores salvaram enlouquece dias depois e se suicida, murmurando que "as vozes voltaram". A sensação deve ser de que todos os seus esforços mesmo que aparentemente tenham logrado êxito, são transitórios e podem ser revertidos em uma próxima oportunidade. Ao terminar uma aventura o Guardião pode inserir uma vinheta de um horror ainda ativo, de uma criatura escapando ou de um indivíduo contaminado chegando a uma cidade carregando uma praga mortal.
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