terça-feira, 14 de outubro de 2025

Os Pilares do Horror Cósmico: Das Forças Incompreensíveis

SEGUNDO PILAR

Das Forças Incompreensíveis

"Venha, então, tome a minha mão. 
Deixe-me mostrar-lhe o que se esconde nos espaços vazios 
onde pesadelos não ousam pisar."

 N. K. Jemisin, a cidade que nos tornamos


*     *     *

Se a insignificância humana estabelece o lugar do homem no cosmos — pequeno, frágil e desprovido de sentido — o segundo pilar do Horror Cósmico define o que ocupa o restante do universo: entidades, leis e consciências que transcendem completamente a razão humana.

Essas forças não são necessariamente malignas. O erro comum é tratá-las como "vilões" ou "monstros" no sentido tradicional. No Horror Cósmico, o Horror nasce justamente do fato de que elas não se importam conosco, ou pior, operam segundo uma lógica que nos é totalmente alheia. Nesse contexto, eles não são mais malignos do que um furacão, um terremoto ou tsunami. Se estas forças da natureza não são passíveis de tendência, porque os Deuses Cósmicos, que são ainda mais poderosos, deveriam ter alguma viés ético ou moral? Bem e Mal, conceitos humanos, se mostram inaplicáveis naquilo que simplesmente não é humano.

A mente humana busca constantemente estabelecer padrões, explicações e coerência. Há uma necessidade inata de compreender o mundo em que vivemos: racionalizar, dissecar, domar as forças e dobrá-las sob nossa vontade. Mas o universo lovecraftiano (e o horror cósmico em geral) nega essa possibilidade uma vez que o cosmos não é racional — é abissal.

As forças cósmicas não são apenas poderosas; elas são inconcebíveis. A concepção humana é incapaz de abranger a grandeza do Mythos e sua vastidão. Tentar entendê-las é uma forma de autodestruição.

Assim, o verdadeiro terror não está no contato físico com o desconhecido, mas na percepção de sua magnitude e incompreensibilidade. O horror cósmico, portanto, é epistemológico — ele nasce do limite do conhecimento e na impossibilidade de cruzar essa fronteira.

Os "Deuses Exteriores" e os "Grandes Antigos" que compõem o “Mythos” são imponderáveis. Embora possam ser encarados como Deuses, eles não são divindades no sentido teológico humano. Eles não representam o espirito superior da Deidade, um degrau acima da mortalidade e da natureza. O que eles são, quando muito, é a negação da ordem e da compreensão. O "ser" é a suprema anátema.

Lovecraft, por exemplo, descreve Cthulhu não como uma figura concreta, mas como uma presença que “escapa à geometria e à lógica do mundo”. Mais do que um monstro ciclópico com corpanzil e cabeça octópode, Cthulhu é uma sombra que se manifesta através de emanações psíquicas, em sonhos e portentos, em crenças e fanatismo. Outros autores modernos — como Thomas Ligotti — preferem nem nomear as forças cósmicas, deixando-as como presenças silenciosas, perceptíveis apenas por sintomas: sonhos perturbadores, distorções na realidade, desintegração da consciência.

Quando um personagem entra em contato com essas forças, ele nunca as compreende por inteiro. E jamais as compreenderá satisfatoriamente. O horror cósmico rejeita o "conhecimento". O que o ser humano capta é um mero vislumbre fragmentado, e é justamente esse fragmento que destrói. Um simples sonho, um som vindo do subsolo, um padrão estranho nas estrelas — tudo pode ser o reflexo de algo que excede infinitamente a compreensão.

É uma sensação de que o real forma apenas uma camada fina, um lençol tranparente lançado sobre um caos insondável logo abaixo.

O contato espúrio com as forças do Mythos desvela uma verdade terrível: não há propósito, nem moralidade universal, nem destino. E isso, para a consciência humana, é um golpe insuportável. A mente busca significado; o universo responde com silêncio O resultado é o colapso: a loucura. Não a loucura como doença, mas como efeito. O único modo de sobreviver ao choque do absurdo é abraçar a Insanidade de corpo e alma.

Aplicando as Forças Incompreensíveis em sua mesa de RPG:

De todos, esse talvez seja, o pilar mais sensorial e atmosférico.

Vamos destrinchar como aplicar esse pilar na prática de uma mesa de RPG, em cinco frentes: narrativa, atmosfera, percepção e mecânica, além de analisar algumas sugestões pertinentes.

Nas histórias e contos lovecraftianos vemos uma grande preocupação em tentar descrever o horror, ainda que o horror seja indescritível. O resultado são comparações falhas e verborrágicas na qual se tenta dar uma identidade racional a algo irracional. A simples incapacidade de descrever em termos lógicos é metade do horror. 

Na narrativa o Guardião jamais deve descrever os horrores de uma forma coerente. O núcleo da experiência de lidar com o Horror Cósmico é não conseguir captar sua grandeza. Para emular isso em sua mesa de jogo tente:

  • fazer descrições vagas, quase abstratas (“ângulos impossíveis”, “som que não pertence a este mundo”, “cor que não existe”)

  • ausência de explicações racionais; "a forma surge e pulsa, apagando e ressurgindo em nossa realidade", "seu tamanho varia, enorme e menor, depois maior novamente"

  • ênfase em atmosfera e sugestão, não em exposição; "você não sabe se viu ou não, o horror some do nada", "um cheiro pior que mil covas abertas varre o lugar e então desaparece"

  • uso da linguagem como tentativa e fracasso de comunicar o indizível. "Não é possível descrever, é medonho, simplesmente medonho", "você tenta se agarrar a palavras, mas não consegue descrever, ao invés disso você se cala".

Descreva sem explicar

Evite explicações racionais daquilo que está sendo visto. Em vez disso, descreva sensações contraditórias:

“A coisa não parecia se mover, e ainda assim, de algum modo, estava cada vez mais perto."

"Em um piscar de olhos ela se materializava em outro ponto"

“Você o vê, mas seu olhar escorrega, como se o cérebro não conseguisse decidir onde ele começa e onde termina.”

Use percepções fragmentadas sobre o mesmo objeto

Faça com que cada personagem perceba algo diferente naquilo que estão presenciando. O cérebro humano não é capaz de processar a grandeza do Mythos e nesse ínterim a experiência soa contraditória para cada indivíduo.

Enquanto um sente um calor sufocante, outro ouve cânticos preenchendo sua mente, outro vê luzes fosforescentes; nenhum deles experimenta o mesmo fenômeno por inteiro. Quando eles tentam comparar percepções, tudo se contradiz, e o evento torna-se impossível de reconstruir logicamente. 

É como o enigma do elefante, no qual homens são vendados e levados a tocar partes de um elefante - um deles toca a orelha diz que é uma folha de árvore, outro que toca a perna diz que é o tronco de uma árvore, aquele que encosta na tromba diz que é uma mangueira e assim por diante... o Mythos, incompreensível na forma, terrível nas partes e horrendo no todo, é igualmente impossível de ser compreendido em sua integralidade.

O mesmo evento pode ter múltiplas interpretações — nenhuma certa. O importante é o efeito psicológico do contato com algo que não pode ser descrito.

Como usar as entidades cósmicas sem mostrá-las

As Forças Incompreensíveis não precisam aparecer fisicamente. Muitas vezes a sensação de estar diante de um Horror Cósmico é mais potente do que simplesmente encarar ele de frente. 

A presença desses seres pode ser sugerida por efeitos indiretos, como:

  • sons guturais vindos de um ponto que não existe no espaço tridimensional;

  • sonhos compartilhados entre pessoas que nunca se viram;

  • objetos que desafiam as leis da física (um espelho que reflete ângulos impossíveis, uma sombra que se move contra a luz);

  • mudanças súbitas na paisagem: uma rua que termina onde não deveria, um horizonte que se curva de maneira errada.

O ponto é criar a sensação de que a realidade foi tocada por algo que não deveria estar ali. Se Shub-Niggurath se manifesta  natureza sai de controle, há crescimento em todo canto: a vegetação se espalha feroz e domina a paisagem, os animais se comportam de maneira absurda. Se for Azathoth que se manifesta, lagos se tornam estéreis, plantas murcham, animais saltam em precipícios e assim por diante.

Quando um ritual invoca uma entidade, ela não necessariamente se manifesta de forma concreta ou visível. Tenha em mente que esses seres não obstante serem gigantescos, podem ser imperceptíveis para nossos sentidos. Ainda assim, percebemos a estranheza sem sermos capazes de dizer o que é estranho e não-natural naquela paisagem contaminada.  

Como as regras podem ajudar (usos mecânicos)

Em Chamado de Cthulhu, há várias maneiras de traduzir o "incompreensível" em mecânicas:

  • Não use a perda de sanidade apenas como “perder pontos”, ela simboliza o contato com o impossível e a experiência que advém disso.

  • Ao falhar em um teste de sanidade, descreva a perda de percepção lógica, não apenas o medo

    “Você entende o som, não importa que seja alienígena, por um instante ele parece fazer sentido — e isso o destrói. A percepção da grandeza fragmenta seu espírito”.

Raciocínios errados

Permita que os jogadores tirem conclusões equivocadas que pareçam coerentes, até que algo mostre que estavam completamente enganados. O Mythos, por serem totalmente alheios ao homem, nos obrigam a tentar compreender aquilo que não faz sentido. 

"Na cabeça de uma criatura, não existem olhos, mas ele ainda assim vê, não há ouvidos, mas ele ainda assim ouve, não há nariz, mas ele é capaz de farejar", "O monstro possui uma infinidade de patas e tentáculos que deveriam servir para agarrar e andar, mas ele ao invés disso, flutua no ar e move coisas com  o poder da mente", "A criatura parece estar molhada, úmida e gotejante, como se tivesse emergido do mar, mas sua pele ao contato parece seca e áspera como uma lixa". 

Isso reforça a noção de que a mente humana tenta impor sentido diante do que não faz sentido.

Distorções físicas

O mundo se comporta de uma maneira diferente quando o Mythos se manifesta. Ele se dobra, inverte, perverte e rearranja a noção do correto para se adequar ao impossível. 
  • Permita lapsos de tempo ou espaço: “você piscou e o sol já está nascendo, mas ninguém lembra de ter dormido", "Você acorda a cerca de três quilômetros da clareira, perdido e sem entender como chegou lá, "suas roupas estão cobertas de fuligem e cheirando a produto químico, mas não estão amarrotadas ou sujas". 

  • A forma de um lugar parece se alterar. Uma gruta se transforma em uma caverna que parece não ter fim, uma escadaria ascende por degraus intermináveis, um lago de repente se mostra profundamente interminável, uma porta é muito mais alta do que a alguns instantes, o deserto está florescendo com plantas estranhas e amareladas. 

  • Um personagem enfrenta mudanças repentinas: "Seus olhos! Seus olhos estão vermelhos! E brilhando na escuridão!" Um ou mais personagens parecem estranhos, como se eles próprios estivessem mudando em face da estranheza que os cerca. "O suor de seu corpo tem cheiro de enxofre", "Seus braços estão pesados, seus dedos parecem se juntar e você não consegue agarrar nada", "Sua respiração falha, você tem lapsos respiratórios e quase sufoca, como se tivesse esquecido como é respirar".

Comunicação e compreensão

As Forças Incompreensíveis não se comunicam ou se o fazem, não será da mesma maneira que nós humanos.

É muito raro que uma criatura do Mythos fale. Como os seres humanos não falam com uma formiga, um cupim ou uma minhoca no solo de seu quintal, os seres do Mythos não dispensam um segundo sequer tentando se fazer entender por seres menores. Muitas vezes esses colossos cósmicos nem sequer compreendem que os seres diante deles são conscientes ou vivos. Na maioria das vezes, a ação deles será simplesmente ignorar. 

Além disso, a linguagem é uma barreira intransponível. Não suponha jamais que um ser do Mythos compreenda um idioma humano mais do que nós podemos compreender o yithiano ou Mi-Go. 

Ademais, as criaturas não compartilham de nossa forma de comunicação. Os homens se expressam através da fala, uma coleção de sons vocais que dão significado a intenções. Uma criatura do mythos, no entanto pode se comunicar por intermédio de uma trompa soprada que produz um som de flauta, outra pode produzir bolhas purulentas em sua pele que estouram e cada estampido alto ou baixo tem um significado diferente. Já outra possui uma estrutura no que seria a cabeça, que muda de cor reproduzindo toda uma miríade de conversa. 

Os seres do Mythos são simplesmente diferentes demais em relação a humanidade e a comunicação se mostra inviável.

A comunicação é uma invasão dos sentidos

Nas raras situações em que uma comunicação é estabelecida, isso ocorre por meios que quebram a linguagem humana: símbolos, visões, padrões sonoros, fórmulas matemáticas sem sentido. Uma divindade que possui capacidades psíquicas pode implantar imagens na mente de uma pessoa causando uma onda terrível de asco a medida que sonda a mente e vasculha suas memórias. Outro ser pode tentar se comunicar mentalmente, literalmente gritando na mente de um pobre infeliz, causando ruptura de vasos sanguíneos no cérebro humano.

Uma criatura que se comunica por dispersão de feromônios pode causar uma reação adversa num indivíduo. Talvez os feromônios causem uma severa reação alérgica ou ocasionem uma reação inesperada. Uma simples tentativa de estabelecer comunicação pode resultar em uma violência inexplicável, uma espécie de violação.

Lembre-se de que o horror nasce do fracasso da interpretação:

“Você sente que a criatura quer algo. Mas não existem palavras humanas para representar o que ela deseja.”

 Construindo o Incompreensível no ritmo do jogo

Não existe exatamente uma receita de como as Forças Incompreensíveis se manifestam, mas esta é uma boa explanação de como conceituar a exposição a ela.
  1. Primeiro sinal: algo estranho, mas ainda explicável: sons esquisitos, coincidências acontecem, sentidos se misturam, a mente tenta ordenar e conceituar, ainda que o sentido das coisas se perca.

  2. Segundo sinal: fenômenos contraditórios: testemunhas descrevem eventos opostos, a percepção falha, os sentidos são amortecidos ou se tornam hiperaguçados.

  3. Terceiro sinal: ocorre uma quebra da lógica: objetos impossíveis se manifestam, distorções do espaço e do tempo surgem, ele se dilata ou retrai discretamente, o espaço se molda em uma nova ordem

  4. Contaminação: os personagens tem seus sentidos amplamente alterados por visões, sonhos, lapsos de tempo, horrores e maravilhas que lhes são reveladas, nada faz sentido. É o momento em que a mente se fragmenta em um esturpor.

  5. Contato: o momento em que o incompreensível toca o mundo — e o mundo se rompe por inteiro. O impossível acontece e se torna regra.

Essa progressão mantém a tensão crescente e reforça o terror de que a realidade está se desmanchando diante dos personagens.

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