segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Vaesen Starter Set - Uma Introdução ao Horror Nórdico


Um bom Starter Set tem que fazer uma série de coisas diferentes para justificar sua existência. Ele tem que introduzir e explicar um RPG de modo mais conciso e nem por isso menos envolvente. Tem que "vender" a ideia do jogo seja através da ambientação, das mecânicas básicas ou ambos. Tem que oferecer informações suficientes para despertar o interesse e a curiosidade dos potenciais narradores e jogadores em um espaço via de regra bem menor. E finalmente tem que conquistar seu publico com uma amostra de tudo o que ele pode render.

Não é obviamente algo fácil...

Mas os Starter Set se tornaram uma moda qie vem ganhando espaço cada vez maior, oferecendo além de um vislumbre mais simples do todo, uma série de outros presentes. Não é raro que muitos Starter set desempenham justamente o papel de "teasers" para o material completo. A função deles é atrair e conquistar um publico que muitas vezes se sentiria afastado ou intimidado por um livro básico de 400 páginas. O Starter Set é uma forma de facilitar as coisas.

E geralmente os Starter Set são tão caprichados que o investimento acaba valendo a pena, mesmo que às vezes você ja tenha o Livro Básico. É uma perfumaria fina. Além do charme nostálgico de vir em uma caixa, o material que acompanha o Starter Set é muito bem produzido contendo extras saborosos que fazem a alegria dos colecionadores. 

Mapas, handouts, tokens, cartas, fichas especiais, são um acréscimo que ajuda a trazer o mundo da ambientação de RPG à vida e fornece aos jogadores algo para olhar e interagir. Acima de tudo, um bom Starter Set deve apresentar o jogo e seduzir tanto p mestre quanto os jogadores a querer seguir no universo apresentado e investir seu tempo, recursos e dinheiro no Livro Básico e demais suplementos.

Então é isso... um Starter Set é um vislumbre de uma ambientação ainda mais ampla, uma provinha do que espera o grupo se ele decidir comprar a ideia de se aventurar naquele universo.

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O Starter Set de Vaesen é a introdução à ambientação de Vaesen, RPG de Terror Nórdico, um jogo baseado no Folclore Escandinavo, compilado e ilustrado por Johan Egerkrans e publicado pela Free League Publishing (aqui no Brasil foi lançado pela Editora Retropunk). Esse é um jogo de terror investigativo ambientado na Escandinávia do século XIX, utilizando o sistema Year Zero, apresentado pela primeira vez em Mutant: Year Zero, e posteriormente, em uma ampla gama de jogos de RPG da editora. 

A história se passa numa mítica Escandinávia, em algum ponto do século XIX, uma época em que as antigas tradições e os segredos do passado se chocam com a modernidade e a industrialização. Em florestas ermas e vales profundos, ao longo de rios escuros e à beira de bosques esquecidos, espreitam criaturas chamadas coletivamente de "Vaesen". Em tempos antigos, a humanidade sabia como interagir com os Vaesen, respeitando e rendendo a eles homenagem, permitindo que ambos coexistissem em paz. Mas com o tempo, esse saber se perdeu e a relação entre os homens e os Vaesen se deteriorou.  Além disso, a modernidade chegou às montanhas, rios e florestas, alterando e perturbando o equilíbrio natural. Em nome do progresso, as terras sagradas dos Vaesen foram saqueadas e exploradas. Com efeito, Vaesen passaram a odiar os humanos e se ressentir de sua presença. 

No passado, uma organização secreta conhecida como A Sociedade investigava tanto os Vaesen quanto seus conflitos com os mortais. Mas a Sociedade acabou se dissolvendo: seus membros se aposentaram, morreram ou foram confinados a asilos, e sua sede, o ancestral Castelo Gyllencreutz, na cidade sueca de Uppsala, foi fechada. Contudo, ainda existem aqueles que possuem a Visão, o dom (ou seria maldição?) que lhes permite ver e interagir com os Vaesen. Com base nesse grupo de indivíduos extraordinários (do qual os personagens fazem parte), a Sociedade busca se reerguer num mundo novo e perigoso, de desconfiança e horror.   


Esta é a premissa tanto do Starter Set de Vaesen quanto do RPG de Horror Nórdico Vaesen, mas o Kit Introdutório foi concebido como uma introdução não apenas às regras, como ao riquíssimo cenário. O material oferece um belo aprendizado tanto para os jogadores quanto para o mestre cobrindo os elementos fundamentais da ambientação: os Vaesen, a Sociedade, o Castelo Gyllencreutz, a dinâmica para se lançar em novas investigações e conduzir os personagens através dos mistérios (como são chamadas as aventuras nesse cenário).

Ao abrir o Starter Set de Vaesen, o Mestre encontrará primeiro um conjunto de dez dados de seis lados customizados para a ambientação, além de cartas que servem para definir a ordem de Iniciativa. Além disso a introdução "Primeiros Passos", oferece uma breve introdução a Vaesen e sugestões de como utilizar os elementos do Kit Introdutório. Temos ainda três livros curtos. O primeiro é o livreto de "Regras", com dezesseis páginas; o segundo é o livro de cenário "A Assombração do Castelo Gyllencreutz", com doze páginas; e o terceiro é o "Códice Oculto", com quarenta e quatro páginas. Além disso a caixa trás um conjunto de cinco Folhas de Referência — uma para cada jogador, três recursos (handouts) para o cenário, cinco Personagens prontos e dois mapas. Um dos mapas é uma planta inédita do Castelo Gyllencreutz, com um corte de seus muitos aposentos e câmaras destalhados. Já o outro mapa, maior, de dupla face, apresenta o Norte Mítico, enquanto o verso tem a cidade de Uppsala. 


O material é extremamente caprichado, muito bem produzido em papel de qualidade lustroso e de boa gramatura. Embora a maior parte da arte que ilustra o material ser repetida do Livro Básico, ela é muito bonita e agradável. 

Qualquer pessoa que já tenha jogado um RPG da série Year Zero entenderá instantaneamente as regras de Vaesen, mas elas são explicadas de forma rápida no livreto de "Regras". Um dos grandes méritos do sistema é justamente ser simples e intuitivo. O básico do básico envolve rolar um número de dados de seis lados igual a uma combinação do Atributo e da Habilidade de seu personagem, acrescido de quaisquer dados de bônus ou penalidade que o Mestre conceder. Para ter sucesso, é preciso obter um seis — embora às vezes alguma ação possa demandar mais. Sucessos extras podem ser gastos para obter efeitos adicionais. Em combate, isso resultará em mais dano, mas em outras situações geralmente significará aprender mais informações, realizar a ação de maneira elegante ou gastar menos tempo. As regras do Starter Set cobrem o básico sobre o sistema, o suficiente para jogar, mas não incluem alguns pormenores que carecem do Livro Básico. 

O combate segue uma premissa semelhante. As cartas de iniciativa que acompanham a caixa são numeradas de um a dez, elas determinam quando um PC, NPC ou Vaesen agirá em cada rodada. Os personagens tem uma ação Lenta e uma ação Rápida que permite a ele agir e se defender. Um teste de Medo é necessário quando um personagem encontra um Vaesen ou magia; o número de sucessos necessários é determinado pelo valor de Medo da criatura, magia ou situação. De modo geral, a explicação da mecânica contida no livreto "Regras" é concisa, mas abrange a maioria das situações e é respaldada por exemplos de jogo, o que sempre é bem vindo. 


O livro que contém o cenário "A Assombração do Castelo Gyllencreutz" começa com os PCs sendo convidados para uma taverna na parte pobre de Uppsala, onde encontrarão a idosa Linnea Elfeklint (uma NPC importante na ambientação). Ela lhes contará que eles são Filhos de Quinta-feira e possuem  a Visão, o que significa que podem ver os Vaesen, o que a maioria das pessoas não é capaz. Ela também lhes falará sobre a Sociedade, sobre o Castelo Gyllencreutz, e seus planos de reiniciar a Sociedade. No entanto, ela explicará que não tem acesso ao Castelo Gyllencreutz, mas que tem um plano para retomá-lo de volta, o que inclui admitir voluntários para sua primeira missão. 

Essa parte do cenário estabelece o mistério, enquanto a segunda metade envolve uma investigação no próprio castelo. O lugar encontra-se em ruínas, tanto por dentro quanto por fora, e é assombrado por luzes estranhas cuja natureza precisa ser determinada. O cenário é curto, mas proporciona aos Personagens Jogadores acesso imediato ao Castelo Gyllencreutz e permite a continuação da campanha de Vaesen a partir desse ponto. Uma ótima introdução!

Os cinco Personagens prontos são um caçador, um oficial militar, um sacerdote, um escritor e um vagabundo. Todos os cinco possuem uma ilustração e um breve histórico, além de estatísticas completas e detalhes de jogo, incluindo anotações sobre o que cada um pensa dos outros quatro Personagens Jogadores. Cada jogador receberá uma Carta de Referência, que resume as regras de forma concisa para facilitar o jogo. Tudo pensado para que a primeira sessão aconteça tão logo o Narrador tiver se inteirado dos detalhes.

O terceiro livreto contido no Starter Set, o "Codex Occultum", é na verdade o mais extenso e funciona como um guia compilado para os personagens se inteirarem sobre os Vaesen. O livreto oferece um panorama sobre as criaturas, ajuda a familiarizar os jogadores com a ambientação e serve como um belo Recurso que pode ser investigado. Da Mulher da Árvore de Freixo aos Trolls, ele ilustra e descreve cerca de vinte e dois Vaesen e como eles podem ser reconhecidos, apaziguados, abordados ou exterminados em uma sessão de jogo. Este é um ótimo livro de referência — tanto para o jogo quanto para fora dele — e é muito provável que seja o item mais usado pelos jogadores. Por fim, os mapas de Uppsala e do Norte Mítico são excelentes, enquanto o do Castelo Gyllencreutz o mostra em seu auge, um estado ao qual os Personagens podem potencialmente restaurá-lo no futuro. Aliás, restaurar o Castelo e reconstruir a Sede da Sociedade é uma das partes mais interessantes da ambientação dando liberdade ao grupo de reconstruir sua morada da forma que desejam.


Fisicamente, o Vaesen – Starter Set é muito bem apresentado. Tanto o livreto de regras quanto o que contém o cenário "A Assombração do Castelo Gyllencreutz" são fáceis de ler e compreender, e os componentes físicos são de altíssima qualidade, principalmente os mapas e o "Codex Occultum".

Surge então a questão mais importante quando se trata de Starter Sets, sobretudo quando o Mestre já possui o Livro Básico. Vale a pena investir nesse material se você já tem o Livro Básico e com ele o acesso a todas as regras e pormenores?

A resposta é um belo DEPENDE.

Colocando o colecionismo à parte, o material do Starter Set é bonito e muito útil. Para ambientar o sistema, ter os dados específicos, as cartas e os mapas é sem dúvida algo muito bem vindo. As fichas de personagens prontos também são úteis, ao menos até os jogadores quiserem criar seus próprios personagens. A aventura que acompanha o livro é ótima para introduzir o sistema e ambientação, mas ela não funcionará tão bem para uma campanha já iniciada, carecendo assim de mudanças. De um modo geral o grande atrativo do material é o "Codex Occultum" um recurso que pode ser lido e interpretado pelos jogadores e personagens. Na campanha de Vaesen que estou narrando, criei um recurso semelhante que se tornou bastante útil. Ter um pronto é excelente e o mestre não precisa se preocupar pois o livreto não tem estatísticas e mecânica, sendo um material de Fluffy.

Eu gostei desse material, achei que valeu a pena comprar e ter acesso aos extras exclusivos que vem nele. A caixa também é ótima para guardar o material na sua estante. Entretanto, para quem já tem alguns dos itens - comprados no Financiamento Coletivo da Retropunk aqui no Brasil, talvez não faça tanto sentido investir nesse material. Outrossim, o mistério é interessante e o livreto do Codex é um excelente acréscimo o que pende positivamente.

Vaesen é um dos meus RPG favoritos então ter o Starter Set fez total sentido.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Assassino Revelado - A controvérsia sobre a identidade de Jack, o Estripador

Por mais de um século, o caso vive nas sombras da dúvida e da incerteza. Uma lenda envolta em névoas e medo. Um assassino sem face assombrando os becos escuros da Londres Vitoriana. Centenas de livros, milhares de teorias foram oferecidas, mas nenhuma prova contundente foi obtida.  

Mas após 137 anos, o mistério pode ter sido enfim solucionado. 

Em 2019, dois cientistas britânicos revelaram o que seria um dos maiores mistérios criminais da historia. Eles teriam obtido evidências científicas, mais especificamente DNA, que apontava a identidade de ninguém menos do que o lendário Jack, o Estripador.

Os defensores da notícia não se apoiam em um teoria e muito menos numa suspeita, mas em um resultado cientifico. O caso de Jack, o Estripador, dizem eles, foi oficialmente fechado.

Mas será possível acreditar no que estes cientistas afirmam? 

Se a ciência estiver certa, então Jack, o Estripador não era um fantasma. Ele não era um Príncipe degenerado, não era um cirurgião demoníaco e muito menos uma mente criminosa brilhante. Ele era um homem de quem a polícia já suspeitava. Um homem que as autoridades vigiaram e que foi seguido na época. Essa figura era um dos vários indivíduos anônimos que chamavam White Chapel de lar e que vagavam pelo East End sem chamar a atenção, pois era simplesmente um rosto qualquer. 

Mais interessante, a polícia teria suspeitado dele, mas preferiu manter tudo em segredo. Eles permitiram que o homem simplesmente desaparecesse após o último assassinato ao invés de prendê-lo. A questão não é apenas quem ele foi, mas por que a Scotland Yard deixou que ele ficasse sem ser conhecido?

Para entender como os cientistas chegaram a sua conclusão, é preciso apresentar um objeto macabro e explicar como essa simples peça de vestimenta pode ter se tornado o instrumento que revelou a identidade do mais notório assassino de todos os tempos.

Por décadas os crimes de Jack, o Estripador se tornaram uma historia assustadora, mais até do que um caso criminal concreto. O mistério ganhou contornos quase sobrenaturais, na mesma medida que o homem se tornou uma lenda. Era como se o assassino vagasse invisível pelas ruas, sem ser visto e sem despertar a atenção de ninguém. Como era possível ele matar e não ser visto em uma vizinhança densamente povoada?

Muitos acreditavam que ele deveria ser alguém poderoso e influente. Essa suposição deu origem a teorias que envolviam escândalos reais, médicos ilustres, sociedades secretas... o mito demandava um monstro à altura. Mas a pista que desafiou esse mito não veio de um palácio, de um velho diário ou de uma testemunha secreta. Veio de algo pequeno e ordinário, uma peça de roupa puída e esfarrapada: um velho cachecol de seda. 

De acordo com a historia, essa peça foi obtida ao lado do corpo mutilado de Katherine Eddowes, a quarta vitima canônica do Estripador, assassinada em Mitre Square em setembro de 1888. 

Um oficial que esteve presente na cena do crime o recolheu do chão. Ele estava enrolado ao lado de Eddowes a poucos centímetros de seu corpo. Na época, o cachecol não foi considerado como uma evidência válida pois se tratava de uma peça reconhecidamente pertencente à vítima. O oficial perguntou se poderia ficar com ela, como um tipo de souvenir macabro e recebeu autorização para isso. O cachecol ficou em sua família por gerações. Ele foi dobrado, colocado em uma caixa e mostrado a visitantes curiosos como uma herança mórbida. 

Por muito tempo, os especialistas o desconsideravam como um item menor no vasto mercado de relíquias relacionadas ao Estripador. Mas um homem resolveu investigar essa peça mais à fundo. Entra em cena o investigador forense e autor britânico, Russel Edwards que decidiu comprar o cachecol quando ele finalmente foi levado a leilão em 2017. 

Russel apostou seu dinheiro e reputação profissional em uma ideia. Se o cachecol tinha realmente vindo da cena de crime em Mitre Square, talvez ele ainda pudesse carregar alguma pista que os Vitorianos não conheciam à fundo: DNA.

A principio, o objetivo de Edwards era descobrir se o cachecol realmente pertenceu a uma vitima canônica de Jack, o Estripador. O item foi mandado para um laboratório moderno, onde duas manchas de sangue do século XIX foram submetidas a ciência moderna. Em um laboratório estéril da Universidade John Moores, referencia em testes genéticos na Inglaterra, o tecido passou por um cuidadoso exame. O geneticista forense, Jari Luhalenan foi incumbido de realizar as análises. Com mais de um século de idade, manipulado por incontáveis pessoas, exposto ao ar, poeira, calor e sujeito ao tempo, o desafio parecia enorme.

A equipe do Dr. Luhalenan se concentrou nas duas marcas marrom castanhas que se acreditava ser sangue. Mas também buscou qualquer outra marca residual deixada no tecido descolorido usando um espectrógrafo. A procura era por DNA mitocondrial, que poderia sobreviver mesmo depois de tanto tempo. Ao contrário do DNA convencional, o mitocondrial podia ser traçado até a linha materna de seu doador. Além disso, ele era mais durável e se uma quantidade decente fosse obtida, seria possível ligar a amostra a quem se supunha ser a fonte.

Foi assim que a equipe forense conseguiu responder a primeira pergunta: o sangue na peça pertenceu a Katherine Eddowes? O perfil genético foi comparado a de um descendente da linha materna, no caso a da irmã da vitima. O resultado foi positivo, o que confirmou que o cachecol realmente carregava o sangue de Eddowes e que estivera na cena do crime.

Por si só, essa confirmação já seria notável, mas uma revelação ainda mais surpreendente viria em seguida. 

A equipe forense decidiu esquadrinhar milímetro por milímetro do cachecol em busca de qualquer outro traço que pudesse fornecer pistas. Concentraram-se principalmente em uma mancha quase invisível na ponta do cachecol. Esta quando analisada cuidadosamente revelou ser um traço material consistente com sêmen que jamais havia sido analisado. O trabalho meticuloso dos geneticistas conseguiu isolar essa segunda amostra de DNA mitocondrial que se provou autêntica. 

O cachecol não apenas possuía uma amostra do sangue da vitima, mas possivelmente guardava um fragmento do assassino.

Mas mesmo que fosse uma amostra válida de sêmen, como seria possível relacionar essa pista com Jack? A vítima afinal era uma prostituta e portanto seria aceitável que sua roupa de alguma forma fosse contaminada com material genético de um cliente.

De fato, a amostra poderia apontar para a escuridão, ser um material que jamais viria a ser identificado, mas os geneticistas tinham um plano. Mesmo sem saber de quem era o sêmen misterioso, eles poderiam compará-lo com amostras de DNA dos descendentes de indivíduos relacionados entre os suspeitos de ser Jack, o Estripador. Esse método de análise forense é adotado quando há suspeitos de um crime. O material genético é comparado ao de suspeitos ou seus descendentes.

A equipe elencou descendentes da linhagem maternal de 12 dos principais suspeitos de serem o Estripador. Eles conseguiram o DNA de nove destes descendentes diretos que ofereceram de bom grado amostras de seu perfil genético para serem comparados a amostra colhida no cachecol. Parecia um tiro no escuro, mas qual não foi a surpresa quando um dos perfis genéticos bateu perfeitamente com o da mancha. 

E assim um nome ganhou notoriedade: Aaron Kosminsky

Por décadas o imigrante polonês Aaron Kosminsky foi considerado pelos historiadores e pesquisadores um suspeito válido. Seu nome aparecia em memorandos internos e em documentos redigidos por investigadores da Scotland Yard. Ele foi citado pelo Chefe de Polícia Melville McNagden como um dos três maiores suspeitos de ser o maníaco. Chamado de "mentalmente perturbado" e "sexualmente pervertido" por McNagden, Kosminsky era suspeito de outros crimes violentos praticados contra mulheres.

Outro investigador ligado à caçada do assassino de White Chappel, o Inspetor Chefe Donald Swanson deixou cadernos e anotações pessoais nas quais suspeitava que o assassino não era outro senão Aaron Kosminsky. Ele ia ainda mais longe afirmando que este havia sido vigiado, entrevistado e identificado positivamente por testemunhas que o colocavam na cena do crime.

A equipe levou em conta a suspeita histórica que pesava sobre Kosminsky. Eles conseguiram rastrear um descendente maternal de sua linhagem que ainda residia na Inglaterra. Quando o perfil genético bateu, eles testaram outros três descendentes e o resultado foi o mesmo: correspondência perfeita.

Os resultados foram publicados em 2021 no Journal of Forensics Sciences, mas imediatamente causou controvérsia. Os autores defendiam que a evidência genética era suficiente para identificar Kosminsky como a fonte da evidência genética (sêmen) presente no cachecol de Eddowes. Os opositores afirmavam que a identificação do material, em especial tão antigo não poderia ser tão precisa.   

Para Russel Edwards, contudo, a prova era suficientemente contundente. Jack, o Estripador agora tinha um nome e este era ninguém menos do que Aaron Kosminsky!

Mas quem foi esse obscuro sujeito?

Se você andasse pelas ruas escuras de White Chapel em meados de 1888, provavelmente não iria reparar em Aaron Kosminsky. Ele era apenas mais um dos milhares de judeus refugiados que deixaram a violência e pobreza do Leste Europeu para se fixar na Inglaterra da Revolução Industrial. Sua família se estabeleceu nos pérfidos arredores do East End, uma das regiões mais pobres de Londres. Ele tinha o ofício de barbeiro, serviço essencial na época, que envolvia não apenas o corte de cabelo e barba, mas também pequenas intervenções cirúrgicas ligadas a pele. Um barbeiro tratava de feridas, supurava furúnculos e cauterizava a pele com instrumentos próprios. Era portanto um homem familiarizado com lâminas e ferramentas de corte.

Mas Kosminsky não era um sujeito 'normal" no sentido racional da palavra. As pessoas que o conheciam sabiam que ele tinha um comportamento estranho, considerado degenerado, sobretudo quando se tratava de mulheres. Havia sido pego "se expondo" e realizando auto abuso (masturbação) em público. Ele dizia detestar as mulheres e guardava um profundo rancor do sexo feminino. Era suspeito de agressão e conhecido por ter um gênio ruim, que o levava a explosões de violência, embora jamais tenha sido preso ou processado formalmente. 

Além disso havia a suspeita de que ele sofria de algum tipo de perturbação mental. O fato dele alegar ouvir vozes e manifestar uma severa paranoia sugerem que ele fosse esquizofrênico. Kosminsky alegava que pessoas misteriosas tentavam envenenar sua comida e por isso se negava a comer qualquer coisa que não fosse cozida por ele mesmo. O sujeito também bebia de maneira compulsiva, consumindo quantidades de gin barato que sem dúvida o deixavam ainda mais propenso a violência.

Não é de se estranhar que o comportamento de Kosminsky chamasse a atenção e acabasse por colocá-lo entre os suspeitos de ser o maníaco de White Chapel. De fato, ele vivia nas proximidades de onde ocorreram os crimes e portanto conhecia a geografia caótica de becos e vielas conectando o distrito. Ele também era um cliente habitual das prostitutas do bairro a quem tratava com desprezo no dia a dia. Kosminsky não tinha álibis para pelo menos dois crimes. Sabemos disso pois ele teria sido entrevistado por policiais envolvidos no caso que seguiam pistas oferecidas por terceiros. É provável que um vizinho tivesse apontado Kosminsky como um possível candidato a ser o maníaco, dada sua misoginia. Ao ouvir falar de Jack, o Estripador ele sempre gargalhava e defendia efusivamente que o assassino estava fazendo um "bom trabalho" limpando as "putas de rua".

Kosminsky chegou a constar em memorandos, o que indica que ele teria sido seguido ou ao menos investigado diretamente. Mas como ele teria conseguido escapar da prisão, já que esta era uma espécie de questão de honra para a Scotland Yard capturar o criminoso. A explicação oferecida é mais ou menos conveniente.

Sabe-se que após o último crime canônico, o medonho massacre realizado contra Mary Jane Kelly, Jack desapareceu sem deixar sinal de seu paradeiro. Muito se especulou à respeito, alguns sugerindo que a polícia encobriu a divulgação de outros assassinatos como forma de controlar o pânico crescente. Outros acreditavam que o assassino teria deixado Londres ou mesmo que ele tivesse sido preso por outros crimes que o tiraram de circulação. É difícil traçar o paradeiro de Aaron Kosminsky após o derradeiro crime de Jack, o Estripador, mas sabe-se que sua condição mental teria deteriorado a tal ponto que a família o internou num Manicômio. Não se sabe exatamente quando se deu essa internação, mas o nome dele constava como paciente no Mile End, uma instituição de tratamento em 1891. Posteriormente ele foi encaminhado para o Asilo Leavesden em 1894, especializado na hospitalização de pacientes perigosos. Ele foi tratado como "possível homicida" e mantido longe de mulheres já que constituía uma ameaça a elas. Não há dados sobre a transferência de Kosminsky para Leavesden, mas uma vez que se trata de um Manicômio para criminosos condenados, é possível que ele tenha sido direcionado para a instituição pela autoridade policial.

Há suspeitas de que a Scotland Yard acreditava que se o nome de Kosminsky fosse divulgado como o maníaco o resultado poderia ser uma revolta generalizada contra a minoria da qual ele fazia parte. Em outras ocasiões judeus e imigrantes do leste europeu já haviam sido acusados e a desconfiança contra estes grupos crescia no East End. Esse temor pode ter justificado o encarceramento perpétuo de Kosminsky como suspeito de ser o assassino de White Chapel sem grande alarde. Segundo os cadernos de Investigadores do caso, após a prisão de Kosminsky os assassinatos cessaram levando a crer que ele realmente poderia ser o responsável.

Seja como for, Aaron Kosminsky viveu por quase duas décadas trancafiado em uma ala de segurança do Asilo Leavesden. Durante o período ele foi descrito como inofensivo, já que sua condição mental colapsou de tal forma que ele deixou de falar e precisava ser alimentado e limpo pelo staff. Ele morreu em 1919, vítima de anemia severa e de uma ferida na perna que evoluiu para gangrena. Ele tinha 53 anos de idade.

No fim das contas a divulgação da suposta identidade de Jack, o Estripador dividiu opiniões.

Para muitos as conclusões eram duvidosas, sobretudo quando se considera a idade do material genético periciado pela equipe. O item do qual ele foi obtido jamais foi reconhecido como uma evidência policial e por mais de um século ele foi manipulado e guardado sem o devido cuidado. Todo e qualquer contato poderia ser uma chance para apagar o DNA real e inserir um falso. Os críticos também contestam a escolha de DNA mitocondrial como uma prova incontestável, já que para eles o método oferece variáveis duvidosas. Finalmente, alguns colocam em dúvida a transparência, aludindo para o fato de que a equipe não aceitou compartilhar com outros laboratórios o material para realização de uma análise neutra.

Para os defensores há suficientes provas. O DNA e sangue compatíveis, o nome do suspeito, sua presença nos arquivos, o fato dos crimes terem cessado após a sua institucionalização... todas essas seriam peças a serem consideradas em um quebra-cabeças que foi sendo montado e que no final mostrava a face de Aaron Kosminsky.

Então, será que finalmente fomos capazes de desmascarar Jack, o Estripador? 

A resposta mais honesta é que talvez sim, fosse ele, mas também, talvez não... o cachecol pode ser genuíno, o DNA pode ser conclusivo, o risco de contaminação pode ser menor do que os críticos imaginam. Ou então os céticos podem ter razão e tudo não passar de uma bem arquitetada autopromoção e de resultados inconclusivos. O mais provável é que nunca venhamos a saber com absoluta certeza. Contudo, mesmo essa aura de incerteza já causa uma incômoda sensação, pois, se Aaron Kosminsky foi o maníaco, então o mito de um monstro assassino sobre-humano cai por terra. O que temos é um homem doente e ordinário de uma vizinhança brutal, alguém que fez coisas terríveis que reverberam mais de um século depois. E esta versão da história pode ser menos cinematográfica, mas por ser muito mais humana, é ainda mais assustadora.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Pilares do Horror Cósmico - Fatalismo: Nada irá te salvar do Destino

QUINTO PILAR

FATALISMO - Nada irá te Salvar do Destino

"Abandonai toda a esperança, vós que entrais"

Dante - A Divina Comédia

*     *     *

O Horror Cósmico, em sua essência, é a própria antítese da esperança.

Ao contrário das narrativas tradicionais de RPG clássico, que investem no gênero de aventura e fantasia, Chamado de Cthulhu e os demais jogos com temática voltada para o Horror Cósmico se caracterizam por um profundo senso de fatalismo. A luta dos personagens não é para obter glória, riqueza ou prestígio, sua luta é por Sobrevivência, Sanidade e Preservação. Ainda assim, esse conflito é marcado pelo desequilíbrio entre as forças. O Horror Cósmico é esmagador e submete seus opositores aos mais terríveis testes.

De um modo geral, é preciso entender que o Mythos, a força que promove o Horror Cósmico, é implacável. Ele é inabalável e imbatível e pode, quando muito, apenas ser aplacado momentaneamente. Não há vitória decisiva, o que se obtém é mais tempo e a percepção de que a luta à duras penas, garantiu apenas uma sobrevivência... por enquanto.

Esse tipo de horror não é exorcizado para sempre, não é destruído por estacas de madeira através do coração, ou da luz do sol purificadora. Ele sequer é compreendido em toda sua blasfêmia. As forças podem retroceder ou até parecerem extintas, mas em algum ligar escuro elas estarão se reagrupando e tão logo estejam prontas, voltarão mais fortes e terríveis do que nunca. Aqui o terror é a constatação de que o universo é indiferente ao destino humano. Ele conspira constantemente e sempre está ativo.

A constatação de que este é um inimigo invencível conduz ao fatalismo e ao niilismo puro, sentimentos palpáveis no Horror Cósmico. 

Da mesma forma, não existe redenção para as forças nefastas que impregnam a narrativa com sua presença assombrosa. Nas novelas góticas o mal pode se redimir: o vampiro, o monstro, a criatura tem motivações minimamente humanas e portanto pode ser convencido a renunciar ao mal. Já o Mythos não é, e nunca foi, humano. Ele não sabe o que é se arrepender, postergar ou se adaptar. Como uma força da natureza, ele age sobre o ambiente sem prestar contas ou se importar com o que promove ou com suas repercussões. Ele simplesmente é o que é.

Na tradição das grandes histórias e contos do Horror Cósmico, uma aventura nesse estilo precisa possuir um DNA niilista que segue pautando a narrativa e as descriçoes. A seguir veremos algumas ideias e dicas de como imbuir sua história com uma profunda carga de fatalismo. Contudo é importante pontuar que RPG busca diversão o que pode contrastar com essa aura negativa que estamos promovendo. Em cenários mais aventurosos, tocados pelo germe do PULP, o fatalismo é menos exacerbado e a esperança não é sufocada por inteiro. Cabe ao Guardião saber dosar isso e se valer do que será mais adequado ao seu estilo. As sugestões a seguir, portanto, são mais adequadas a um estilo purista, mas no final das contas, cada mestre sabe o que é melhor para sua mesa.

Aplicando o Fatalismo em sua mesa de RPG:

Esse é um pilar que está ligado ao panorama do jogo, não como algo que pode ser visto ou descrito, mas como uma presença permeando a sessão. Ela se insinua em momentos chave, minando as esperanças e conduzindo a um amargor constante.

Em muitas aventuras, os heróis terminam comemorando uma grande vitória. Contabilizam os tesouros recolhidos, amparam as princesas resgatadas da torre do inimigo, se vangloriam de ter eliminado o Dragão, o Lich, o líder Orc que estava causando problemas. Mas aqui, não! A vitória é dúbia, transitória, questionável... conquistada com sacrifícios pessoais e apuros que deixam uma marca permanente. 

Mas como representar isso em uma mesa de jogo?

Como incutir na mente dos jogadores que seus personagens estão sob o constante stress e ameaça perene. Como criar os mecanismos que tornam a luta contra o Mythos algo significativo? 

Um universo indiferente

No centro do fatalismo cósmico está uma ideia brutal (que já martelamos exaustivamente): "O Cosmos não se importa".

Nem com o bem, nem com o mal, nem com a sobrevivência ou a extinção da humanidade. As forças cósmicas não são malévolas; são impessoais, neutras, inacessíveis.

O sofrimento humano causado pela incidência do Mythos, por mais que possa parecer, não é punição — é apenas um evento dentro da vastidão indiferente do tempo. Quando um meteoro despenca do céu e se aloja na terra, contaminando uma fazenda e pervertendo a natureza, isso não é motivado pela maldade. A contaminação se dá, porque essa é a função da criatura em forma de cor que caiu do céu. Quando os membros insidiosos da Raça Ancestral capturam e dissecam seres humanos, isso não é feito com intento maligno. Eles o fazem pois conhecer e catalogar formas de vida inferiores é uma de suas diretrizes. Mesmo o Grande Cthulhu, quando emerge das águas revoltas, após seu sono tumular, não é exatamente maligno. Ele deseja apenas despertar e reconquistar o mundo que escolheu como seu. Se a humanidade deve perecer ou enlouquecer, para ele, pouco importa.

Essa percepção destrói qualquer noção de heroísmo tradicional, pois se o vilão não é o mal personificado, o protagonista tampouco é um herói. O protagonista no Horror Cósmico está mais para uma testemunha que em primeira mão vislumbra as forças secretas que regem o Universo caótico, mas que pode fazer muito pouco para contê-las.

As testemunhas assistem, contemplam e tomam notas daquilo que acontece. Eles serão os portadores de um conhecimento perigoso que uma vez disseminado segue contaminando outras pessoas como uma praga.

Por vezes, um investigador pode ter participação direta em eventos, pode ser chamado a interromper um ritual ou conter uma incursão interdimensional. Suas ações podem representar uma breve ruptura no papel de mera testemunha e um passo na direção do herói. Mas no geral, as histórias raramente concedem essa distinção.

Como emular isso em sua mesa de jogo:
  • Transforme o epílogo das histórias em um momento íntimo no qual os personagens pesam os feitos e contabilizam suas baixas. Lance questionamentos aos investigadores sobre o custo de sua participação na história e se na visão deles, valeu a pena. Esse é um ótimo momento para que os personagens reflitam sobre suas perdas pessoais: ferimentos acumulados, sanidade perdida, família e amigos afastados, ruína financeira, fracasso profissional... enfrentar o Mythos não é uma tarefa simples, ela cobra um pesado preço de quem ousa fazê-lo. Em histórias lovecraftianas, o herói muitas vezes termina em um asilo gritando para monstros imaginários, em uma cama de hospital de recuperando de suas feridas ou sozinho erguendo um cálice de vinho em homenagem aos seus colegas que tombaram. Não raramente pode terminar com uma carta de despedida, antes de uma bala ser disparada rente à têmpora. Fatalismo... com certeza.
  • A conclusão não precisa ser sempre trágica, mas ela deve sedimentar a noção de que algo continua incompleto e a ameaça ainda paira. Quando a Cor que se instalou na velha charneca volta para o espaço, os efeitos dela persistem por gerações incomodando e surpreendendo quem visita o lugar. Quando a pedra mística que invoca o Assombro na Escuridão é atirada no mar, parece que é o fim, mas o texto indica que o artefato poderá ser reencontrado, como de fato aconteceu ao longo da História. A melhor maneira de emular isso é inserir uma cena adicional - como uma cena pós crédito - na qual fica evidente que o horror ainda está presente. Experimente colocar uma cena extra, sem personagens próximos ou mesmo sem testemunhas, na qual o Horror deixa claro que "não acabou" e que "Nunca vai acabar".
  • Nas histórias lovecraftianas — e em muitas que seguem sua tradição — não há resolução. O fim de uma história pode ser abrupto e estarrecedor. Ela termina de maneira incerta. O monstro pode ou não ter sido destruído; a entidade pode ou não ter sido banida; o mistério persiste a última frase dita. Os personagens podem acreditar que tiveram sucesso, mas essa certeza não é definitiva. Uma explosão pode ter destruído a casa assombrada, mas será que foi o bastante para atingir o porão e os túneis que se estendem muito abaixo da superfície? A morte do cultista colocou um fim na Assembléia blasfema que ele presidia. Contudo, alguns dos seus discípulos escaparam e o que os impedirá de reconstruir o Culto novamente? Os personagens sempre terão uma dúvida sobre a vitória completa e essa criará a paranoia ao longo de sua existência.
O inevitável metafísico

O horror cósmico é o horror do imponderável e do surpreendente, mas também é o Horror da inevitabilidade.

A destruição está em curso desde o início dos tempos, como uma ampulheta cuja areia está se exaurindo. A realidade, a matéria o universo encontra-se em colapso permanente desde o primeiro momento em que ele se formou. O tempo, a única constante universal, segue inexorável rumo ao seu ocaso.

Não há fatalismo maior do que a certeza do fim. E os personagens dos investigadores apenas despertam para isso.

A sensação predominante é a de que nossa existência não tem fundamento. Nossa presença aqui é transitória e sem propósito: tudo o que fazemos é irrelevante diante da vastidão do tempo e do espaço. E além deles, há o Mythos onipresente e onisciente.

O final é sempre o mesmo: "Nada mudou. Tudo foi apenas adiado."

No Universo do Horror Cósmico a marcha para o extermínio continua, o que pode ser oferecido é um atalho ou um atraso, mas a jornada sempre conduzirá ao mesmo destino. E este é irrevogável!

  • Nada cria maior terror do que a sensação do inevitável. Faça seus jogadores acreditarem que é impossível derrotar os inimigos. Em geral isso é fácil quando se vê as estatísticas dos monstros, criaturas e deuses... mas estamos falando de algo além de números e atributos. Para salientar a dimensão do Mythos permita aos personagens contemplar o tamanho deles. Um monstro que é imune a armas, não apresenta danos sofridos por tiros, facadas ou golpes que simplesmente desviam em sua massa alienígena. Como matar essa coisa que não é ferida por nada na Terra? Da mesma maneira, quando um Culto é enfrentado, permita ao grupo compreender o tamanho dele, que ele possui ramificações em outras cidades, em outros países, que ele sempre esteve presente. Como desbaratar um Culto desse tamanho que age em segredo há tanto tempo?
  • Por vezes acontecimentos alheios à vontade dos personagens/Jogadores acabam conspirando para o desfecho favorável de uma trama. O acaso ou a indiferença cósmica pode ser um aliado valioso para uma narrativa de Horror Cósmico. Lembre do que acontece no filme Caçadores da Arca Perdida. Nele Indiana Jones passa por terríveis testes e tribulações para chegar no final e sobreviver a abertura da Arca da Aliança. Os nazistas são varridos da existência pela Ira Divina, enquanto ele é poupado. O acaso conspira no final para que ele seja preservado. Mais do que isso: Se Indiana Jones estivesse ali ou não, o desfecho seria o mesmo! A Arca da Aliança protegeria a si mesma, com ou sem a ajuda do aventureiro. O acaso e a indiferença podem salvar a pele dos investigadores: nem sempre rituais são bem sucedidos, nem sempre os Deuses ouvem, e quando ouvem, nem sempre atendem os pedidos, de seus suplicantes. Se uma situação parecer impossível de ser superada, por vezes é o acaso que irá conspirar para uma aparente vitória. O acaso... nada mais!
O tempo como abismo

O fatalismo cósmico também é temporal. O tempo, no horror cósmico, é cíclico ou insignificante.

O que os humanos chamam de “história” é apenas um instante microscópico dentro de uma eternidade indiferente. |Os Deuses não registram dias, anos ou mesmo séculos, eles trabalham em uma noção de Eras. Azathoth criou o Universo através da Big Bang, no princípio de tudo, mas para ele, pode parecer que tal coisa acabou de acontecer. Cthulhu foi exilado pela Conjunção Estelar, e só será libertado quando as estrelas estiverem certas novamente, mas até lá ele irá dormir. Para seus cultistas, são milênios de espera arrastada, para ele, é um piscar de olhos, u bater das asas de uma borboleta.  

As entidades cósmicas — Cthulhu, Azathoth, Nyarlathotep, ou equivalentes metafísicos que se manifestam nas obras consagradas do Horror Lovecraftiano existem fora do tempo humano e não podem ser compreendidas com a nossa noção temporal. Elas dormem, sonham, esperam eras inteiras. Fazem isso porque tem todo o tempo do mundo ao seu dispor.  Para eles, a ascensão e queda de civilizações inteiras são algo tão efêmero quanto o surgimento e desaparecimento de um formigueiro em nosso jardim. 

Esse contraste destrói qualquer senso de progresso, destino ou missão que são o "destino manifesto" da humanidade. Desde o princípio, Lovecraft brinca com a noção de que a Humanidade em sua época estava no auge de seu desenvolvimento e progresso científico. Mas mesmo a humanidade que operou conquistas significativas nada tem a oferecer quando comparada ao Mythos. O Mythos estava lá antes da humanidade surgir, esteve lá presenciando suas realizações e estará lá quando tudo acabar. Essa é a verdade contida na frase: "Os Mythos foram, os Mythos são, os Mythos sempre serão".

Nas histórias de Horror Cósmico, tudo que nasce está fadado a se dissolver, enquanto o cosmos, grandioso, permanece inalterado. As conquistas humanas são o mesmo que nada, a transitoriedade do homem, fadado ao fim, apaga toda e qualquer façanha. No final nada importa.

  • Para simular isso em uma mesa de jogo brinque com a percepção do quanto são ancestrais o Mythos. Saliente que um determinado artefato já era antigo quando os primeiros homens ainda habitavam cavernas e temiam os elementos. Deixe claro que uma criatura hibernou por milênios nos recessos de uma ruína construída por proto-humanos. E o tempo pouco significou para ela. Brinque com a noção de que investigadores no passado tentaram deter as mesmas ameaças que os personagens continuam a combater. Faça a sugestão de que no futuro essas mesmas ameaças irão ressurgir, uma e outra vez, talvez pela eternidade.
  • Lovecraft sempre deixou claro o quanto a civilização humana é ínfima. O tempo que levamos para nos desenvolver como raça civilizada é nada para o Mythos. E quando o Mythos resolver agir, nós iremos desaparecer tão rápido que nossa presença sequer será presumida. Nesse contexto, sonhos premonitórios, visões apocalípticas e alucinações plantadas na mente dos personagens podem deixar claro que o destino final é inapelável. O sonho com um mundo devastado onde horrores ancestrais despertaram. A visão recebida ao contemplar um artefato de que um Horror está prestes a irromper pela barreira do real. Uma sensação de que algo está em curso para destruir tudo... cada uma dessas coisas ajuda a erguer a aura que permeia o Horror Cósmico.
O niilismo como estética

O fatalismo cósmico é, em essência, niilista — mas não o niilismo banal da desesperança adolescente.

É o niilismo filosófico profundo: a aceitação de que não há sentido inerente à existência, e que o universo não precisa de nós para continuar. Quando plenamente percebido, esse sentimento, não é apenas uma ideia — é a base do horror existencial.

O personagem percebe que não é um protagonista, mas uma anomalia passageira em um universo vasto e sem testemunhas. O terror, aqui, é o da derradeira lucidez que se apresenta como a única certeza. Assim como um homem que nasce tem por única certeza que um dia morrerá, no Horror Cósmico, o Universo tem como única certeza que um dia, será destruído por inteiro. E o que virá depois? Quem pode saber...

Na narrativa, a estética do niilismo se manifesta de formas sutis:

- Em momentos onde os personagens não conseguem entender a grandiosidade cósmica, ou quando, a compreensão parcial os arrebata e aniquila sua sanidade.

- Com NPCs soando como testamentos ou confissões póstumas. Talvez eles tenham testemunhado algo e compartilham com os investigadores suas revelações.

- A sensação constante de que "já é tarde demais"; e que não importa o que vem a seguir, o destino está traçado e não pode ser apagado.

- Com personagens que percebem o horror, se entregam e não tentam mais alterá-lo. Toda história lovecraftiana que se preze possui aquele coadjuvante que em algum momento dramático diz que não há o que fazer, que a batalha está perdida e que a morte é o que nos espera. Em geral são os loucos, os eremitas ou aqueles tocados pela verdade cósmica os incumbidos de dar esse recado. Talvez em breve os investigadores também estejam assim.

- Uma criatura poderosa e vasta, um Deus, é invocado, mas ele sequer dá atenção aos investigadores que se arrastam e enlouquecem aos seus pés. Ele não ataca, não os consome, não os aniquila como poderia fazer com extrema facilidade. Ao invés disso, os ignora e parte.

- O representante de uma Raça não-humana, um Fungo de Yuggoth, por exemplo, recolhe o corpo de um investigador tombado. Ele o analisa, o observa com aparente interesse, mas depois, desconcertado meramente o atira longe. Ele não é estimulante o suficiente para despertar mais do que um lampejo momentâneo de interesse.

- Os investigadores se veem diante de um marco, de um monumento ou de um arttefato ancestral. Eles não sabem o que ele representa, não sabem para que serve ou quem o ergueu. Mas compreendem que ele é incrivelmente antigo e que está ali desde a aurora dos tempos. Gerações nasceram e morreram e ele continua ali.

O sublime da ruína

Paradoxalmente, há uma beleza na aceitação desse destino.

O horror cósmico, quando levado ao limite, transcende o medo e toca o que os filósofos chamariam de um sublime trágico: a consciência de que, mesmo diante da insignificância, existe grandeza em perceber as dimensões do abismo.

Essa percepção não salva, mas serve para conceder dignidade ao olhar. Quando um investigador percebe a vastidão do Mythos é como se uma venda fosse removida dos seus olhos e ele pela primeira vez estivesse vendo o cosmos como ele foi concebido. As antigas tradições místicas e cabalísticas chamavam isso de "Desvelar" (unveil). Tirar a venda dos olhos é uma analogia a compreender ainda que parcialmente.

Em uma mesa de jogo isso pode se manifestar quando:

- O personagem não foge do horror: ele o encara de frente sabendo que não há escapatória viável ou maneira concebível de fuga. Essa certeza concede uma espécie de manto que anula o medo e terror diante do fim. Se a morte e o esquecimento são inapeláveis, de que adianta ter medo?

- O abismo se torna uma força aceitável. "Quando olhas longamente para o abismo, o abismo também olha para ti." e nesse momento os olhares se cruzam e vem a aceitação diante do imutável. É o gesto de lucidez final, que ecoa a frase nietzschiana, No horror cósmico, esse olhar mútuo é o clímax. Depois dele, nada resta — apenas o silêncio eterno do universo. Esse é um desfecho corajoso para um cenário de Chamado de Cthulhu.

Feche a sessão com imagens, não explicações. Uma visão panorâmica do alto, após uma grande explosão. O que aconteceu? Deu certo o Ritual? A criatura foi banida? Ninguém sabe e ninguém saberá. A história pode fechar com os investigadores diante de uma pirâmide negra sob uma constelação de estrelas desconhecidas no firmamento. E agora? Ninguém sabe... ninguém deverá saber o que vem em seguida. 

- O Horror Cósmico termina em silêncio, Sempre é o Silêncio que impera quando o Horror termina.

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Em síntese, Fatalismo é o último e mais devastador Pilar do Horror Cósmico porque ele encerra toda esperança de vitória e redenção. É a constatação de que o medo, a loucura e a ignorância não são desvios — são a condição natural da existência.

Não há salvação.

Não há propósito.

Só a dura realidade do Cosmos.