terça-feira, 29 de março de 2011

A Medicina a serviço do RPG | III. Lesões causadas por armas de fogo



Escrito por Rodrigo Spohr
comentado por Luciano Giehl (em azul)

"Um atirador é como um artista e sua arma o pincel que ele usa para pintar um quadro na cor vermelha".

"Tenho um par romântico em todos os meus filmes - uma arma." - Arnold Schwarzenegger

Armas de fogo são, em grande parte das aventuras de RPG “moderno”, o que distingue os personagens jogadores do restante da população comum e “sem graça”. Poucas coisas deixam um jogador novato (ou mesmo um experiente, porém belicoso) mais seguro do que uma escopeta carregada em mãos. Quem nunca tentou imitar o ruído de recarga de um cartucho de uma .12, ou até mesmo fazer o gesto de recarga da “pump shotgun” numa mesa de jogo?

Obviamente, no mundo infestado pelos Cthulhu Mythos, onde o ser humano e seu arsenal de pólvora e aço pouco podem fazer em frente aos grandes horrores, esta história muda o foco, bem como a importância de uma arma de fogo em mãos.

Sem dúvida! Um dos sinais de que um cenário será hard core é quando o guardião permite aos jogadores ter em suas mãos uma fartura de armas de fogo. Não canso de ver a expressão de jogadores de primeira viagem que descarregam uma espingarda em alguma abominação do Mythos apenas para decobrir que suas balas não surtiram o menor efeito ou que a carne esponjosa e fluida de um horror, simplesmente absorveu o chumbo e se fechou sem causar maiores danos.

O que é uma arma de fogo?

Utilizarei o termo Arma de Fogo (ADF, a partir de agora) para falar a respeito de armas que utilizam projéteis (ou ainda projetis, mas isto não vem ao caso) a base de pólvora para sua propulsão. Não sou um especialista em armas: se você perguntar detalhes sobre a anatomia de uma pistola, vou saber dizer apenas o óbvio, esse não é o objetivo desse artigo e portanto tais particularidades não serão abordadas.

O que é essencial saber a respeito de ADF é simples: são armas de manuseio básico simplificado (infelizmente até uma criança pequena vez ou outra consegue utilizar um revólver, e daí quando acerta um irmãozinho vira notícia na imprensa), que causam estragos diversos, dependendo da potência, calibre, munição, distância e local a ser alvejados, entre outros.

Distância é um fator importante quando se fala em ADF: um tiro em contato (à queima roupa) é muito mais perigoso do que um à distância. Para este artigo, considerarei pistolas e revólveres em um grupo, metralhadoras e rifles em outra, e escopetas em um terceiro grupo. Sei que existem diferenças dentre cada uma dessas armas, mas não entrarei nestes detalhes. O porquê desta divisão? Em instantes saberão.

1) Pistolas e Revólveres

Na prática, em ambiente civil, arrisco-me a dizer que sejam as armas de fogo de mais fácil acesso, e as de manuseio mais simplificado. Seja no mercado negro ou por meios legais, este tipo de arma de fogo, principalmente nos EUA, é incrivelmente disseminado.

As informações a seguir são a base para qualquer disparo de arma de fogo, então nas próximas sessões irei citar apenas as diferenças entre os tipos de arma de fogo. Um simples projétil é capaz de matar um ser humano, dependendo de onde acertar.

A munição de revólveres e pistolas, adotadas no mundo inteiro tem formato cilíndrico alongado com um núcleo de chumbo envolvido em uma jaqueta de cobre. Quando a arma é disparada, o conteúdo da bala que possui pólvora explode e ejeta o núcleo de chumbo. O tamanho do projétil varia de acordo com o calibre da arma que corresponde ao diâmetro da munição empregada em cada arma.

Raramente disparos nos membros (mãos, pés, braços, pernas, coxas...) são instantaneamente letais, a não ser que uma artéria importante seja atingida (quem viu o filme Hannibal pode lembrar-se de quando Hannibal Lecter esfaqueia um ladrãozinho em uma rua da Itália na virilha: se um tiro acertar a mesma artéria pode matar facilmente em poucos minutos).

Tiros na mão ou no pé são aliás uma forma sádica de tortura. Uma forma de punição no mundo do crime é disparar na mão ou no pé com o intuito de causar terror. Esse tipo de ferimento raramente causa a morte, mas o dano além de extremamente doloroso, deixa uma marca permanente e pode inutilizar o membro. Disparos contra os membros são capazes de causar um dano severo se a bala atingir um osso em seu caminho. Embora o osso humano seja denso, ele pode ser estilhaçado facilmente por um projétil de chumbo viajando a grande velocidade.
Apesar de dificilmente serem letais, estes disparos são deveras dolorosos, e com certeza debilitantes: tente correr quando os músculos responsáveis por movimentar sua perna estão em agonia ou um osso foi fraturado.

Tiros no tórax, abdômen e cabeça são muito mais letais, dependendo mais uma vez de onde atingirem. Ao acertar o tórax, é fácil perfurar um dos pulmões, prejudicando a respiração; caso acerte o coração ou uma artéria importante, a morte é imediata ou ocorre em poucos segundos. Além disso, caso a bala atinja a medula espinhal, pode causar perda dos movimentos abaixo do local do acerto. Por sua vez, um disparo no abdômen pode fazer com que literalmente vísceras saltem para fora da barriga, apesar disso ser mais comum em armas de maior energia (como um rifle ou escopeta); em geral uma bala na barriga irá perfurar alguma porção do intestino (temos mais de 20 metros de “tripas” em nossas barrigas, então não é nada difícil alguma porção ser atingida), acertar o fígado ou o baço.

Menos comuns são acertos em rins e no pâncreas, a não ser que o disparo tenha sido feito pelas costas. Ao sofrer um ferimento deste tipo no abdômen, é possível permanecer algum tempo ainda em “atividade”, já que o abdômen muitas vezes estanca o sangue pela faixa de minutos. Porém, pode haver dificuldade para respirar (por ser doloroso utilizar os músculos da barriga que nos ajudam a inflar e desinflar os pulmões), para movimentação e, obviamente, para alimentação: este último sempre levará a crises de náusea e vômito, pois os órgãos responsáveis pela alimentação, em qualquer situação de ferimento importante, param de funcionar.

Há relatos de soldados feridos no abdômen durante a Grande Guerra que resistiram mais de 12 horas caídos na Terra de Ninguém além do socorro dos médicos. O maior risco para uma pessoa atingida no estômago é a perda maciça de sangue. Em casos extremos é possível ocorrer hipotermia e consequentemente choque.

Já os famosos “headshots” têm letalidade absurdamente alta, sendo instantaneamente fatais na maioria dos casos. Quando alguém sobrevive a um disparo que perfura o crânio e atinge o cérebro, na maioria das vezes terá seqüelas, infelizmente. Tiros que não atinjam o cérebro ainda podem causar estragos importantes, como lesionar a medula (e causa perda de força e sensibilidade de todo o corpo, exceto cabeça), causar deformações importantes (ao arrancar uma orelha, por exemplo), mas em regra geral quase sempre atingirão o cérebro, e isso será um grande, grande problema.

2)(Sub)Metralhadoras e Rifles

São armas cujos projéteis adquirem uma maior energia cinética causando em via de regra um estrago maior. Os Rifles possuem uma maior precisão, mesmo a distância, e as metralhadoras possuem uma cadência de tiro aumentada, o que em via de regra transforma ambas as armas em um perigo mais desafiador para qualquer ser humano. Disparos de rifle tendem a ter uma área de lesão maior, o que consequentemente os faz romper mais artérias, nervos e tecidos, e causar um maior sangramento.

Rifles possuem munição mais alongada e com um poder de penetração maior. Os ferimentos de entrada causados por um rifle se resumem a um orifício redondo, contudo ao sair ele provoca uma grande lesão uma vez que a bala ao atingir algum obstáculo se esfacela.

A munição de metralhadoras e fuzis tem um efeito semelhante. Não por acaso metralhadoras são armas restritas às forças armadas na maioria dos países. Rifles no entanto são comuns nas áreas rurais constituíndo uma importante ferramenta para a caça, proteção e sobrevivência.

3) Espingardas (Escopetas)


Armas perigosas, principalmente em curta distância. Podem arrancar membros inteiros com um único disparo, e poucas pessoas sobrevivem a um tiro de escopeta em uma distância pequena. Escopetas talvez estejam entre as armas individuais mais perigosas já inventadas.

As escopetas são carregadas com cartuchos de munição contendo pequenas granelagens de chumbo. Quando elas disparam projetam uma nuvem desses pequenos projéteis de chumbo que se espalham em grande velocidade. O dano de uma escopeta é muito maior quando a nuvem de chumbo está concentrada o que acontece até 5 metros do cano da arma. A partir de uma determinada distância os projéteis se espalham reduzindo consideravelmente o efeito.

4) Ferramentas para o Narrador

Como posso usar estas informações em uma de minhas narrações?”, você me pergunta.

Em primeiro lugar, tente não banalizá-las. No Pronto Socorro é sempre um fator de preocupação quando chega alguém alvejado com um tiro, e SEMPRE há muita dor, nervosismo, preocupação e medo associados, principalmente quando a vítima for um “inocente” (apesar de mesmo policiais treinados e assassinos habituais chegarem às salas de emergência visivelmente abalados, com tiros em lugares de pouca letalidade).

Um ferimento causado por arma de fogo está associado a confusão e choque. Porque não considerar então que ser alvejado por uma arma de fogo tem um reflexo na perda de sanidade do personagem? Na minha opinião alguém ferido por um disparo deve fazer um rolamento de Sanidade para a perda mínima de 0/1d3 pontos e máxima de 2/1d6+1, dependendo da severidade do ferimento produzido. Um tiro que esfacela uma mandíbula ou faz com que as tripas sejam espirradas para fora causa um dano à sanidade quase tão grande quanto ao corpo.

Rastro de Cthulhu possui regras bem claras a respeito de custo de estabilidade por participar de um tiroteio.


Acredite em mim, tente transmitir toda a incerteza de vida ou morte em CADA situação, para deixar bem claro que um disparo de ADF não é o mesmo que receber uma martelada do Chapolin Colorado.

Trocas de tiros são incrivelmente romantizadas pela literatura e cinema. No mundo real um tiroteio não é algo bonito de se ver e menos ainda de se tomar parte. Poucas situações podem ser mais assustadoras do que ser alvo de um atirador que está tentando matá-lo.

Um tiroteio normalmente termina em uma questão de segundos, deixando pessoas ensurdecidas pelos estampidos, fedor de pólvora no ar, poças de sangue dos mortos e os gritos desesperados dos feridos. Apenas os realmente psicóticos não serão afetados pelo resultado de um tiroteio.

Em segundo lugar, descreva as conseqüências de cada lesão, seja dificuldade para caminhar, para movimentar o braço, para respirar. Imponha penalidades para deixar o combate mais realista.

Uma maneira do mestre eliminar o falso romantismo de uma troca de tiros é descrever minuciosamente as consequências de um ferimento à bala. É importante se ater aos detalhes quando o personagem do jogador for a vítima, mas também quando ele é o causador do ferimento. Um cultista por mais cruel e louco que seja ainda é um ser humano e quando ferido por um disparo irá reagir como tal. Espere gritos, xingamentos, choro e desespero de alguém que recebeu um tiro.

Os gritos de um homem com um buraco no estômago provocado por um disparo são algo horrível de se ouvir, mas como seria o grito de dor de um Mi-Go, Deep One ou Ghoul atingido por uma bala? Imagine esse tipo de coisa e o guardião tem um novo e medonho recurso dramático.



Em terceiro lugar, não esqueça-se das seqüelas! Nem sempre salvar-se da morte sai gratuitamente. Talvez tenha sido necessário amputar um ou mais dedos, até mesmo uma mão ou pé, devido ao comprometimento do membro afetado. Talvez um rim tenha sido perdido, alguns metros de intestino, ou mesmo um pulmão. Com sorte, apenas feridas, talvez algumas delas doendo quando está para chover...

Além do mais, se estivermos falando da década de 20, quando o uso de antibióticos estava apenas engatinhando, a gangrena e conseqüente sepse (infecção generalizada) é um fenômeno a ser considerado, principalmente em lesões no abdômen. Em geral feridas por arma de fogo NÃO infeccionam, pois a temperatura que o projétil possui ao entrar no corpo da vítima acaba cauterizando a ferida.

Mas não se esqueça do que citei no parágrafo acima: lesões no abdômen têm facilidade de criar infecções por fazer o conteúdo do nosso aparelho gastrointestinal literalmente vazar para fora...

Outro detalhe importante é em relação aos primeiros socorros: digamos que um personagem sem a habilidade adequada tente socorrer um amigo ferido; caso falhe o teste, pode PIORAR a situação da vítima, como por exemplo aplicando substâncias sujas (banha, café, açúcar, lama sobre a ferida... acreditem, já vi pacientes utilizando TODOS estes exemplos, no ano de 2011, então imaginem o que ocorria há mais de 80 anos atrás...)

Após o fim da Grande Guerra na Europa, havia uma enorme população de veteranos que traziam no corpo a lembrança dos campos de batalha. Era muito comum encontrar homens que sofreram amputação, deformação ou ferimentos visíveis. A ciência prostética e as cirurgias plásticas avançaram muito nos anos 20 e 30 com intuito de aliviar o fardo de combatentes que sofriam pelas seqüelas do campo de batalha.

E por último, não esqueça-se das seqüelas psicológicas; estrese pós traumático é um evento extremamente comum em vítimas de armas de fogo, e podem levar a um Investigador a reclusão total em casa, ou ao menos evitar eternamente o local onde foi ferido, o tipo étnico que lhe atingiu ou ouvir sons que lembrem disparos.

Muitos soldados que participaram da Grande Guerra ficaram tão traumatizados por participar de tiroteios que não eram capazes de tolerar ficar perto de armas quando voltaram para casa. O nome desse medo irracional de armas de fogo é Hoplophobia e é um terror bastante conhecido entre indivíduos que sofreram violência ou que estiveram envolvidos em situações de risco sob a mira de armas.

Outras fobias que podem ser consideradas são Algophobia (medo da dor - reflexo de um ferimento doloroso), Acusticophobia (medo de sons altos - decorrentes de estampidos de tiros) e Henophobia (medo de sangue - uma consequência direta de um ferimento por arma de fogo).


A seguir alguns vídeos do poder destrutivo de algumas armas, as imagens mostram armas sendo disparadas contra melões.

Pistola calibre 38, munição de 9mm.
Pistola Colt 1911, calibre 45
Espingarda Shotgun 12

3 comentários:

  1. Muito bom como sempre! Só acho que seria interessante uma matéria sobre cenários nas Dreamlands...

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  2. Eu pretendo em breve abordar as Dreamlands em uma série de artigos.

    Mas antes preciso ler novamente o livro para ter umas idéias.

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  3. Na realidade, .38 são apenas revolveres, pistolas com munição de "mesmo tamanho" são denominadas .380, pois assim não se confundirão as munições, sendo a de revolver mais longa, e a de pistola curta para caber no cabo da arma. 9mm é denominação de outro calibre, os numeros que pussuem um "." na frente indicam frações de polegada, sendo assim uma munição .380 (na realidade .375 arredondado) possui, 9,63mm, assim uma pistola calibre .380 (não .38) não poderia usar munição 9mm.
    Desculpa ser chato rs mais sou um entusiasta de armas, e espero contribuir com mais realismo a suas campanhas. Caso haja alguma duvida em relação a armas estou a disposição para sana-la pelo e-mail djongajgds@hotmail.com.
    Parabéns pelo blog, estou lendo sem parar desde ontem a tarde.

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