Tudo bem, o Blog é sobre Call of Cthulhu e os Mythos. Então o leitor habitual deve estar se perguntando, o que diabos faz aqui uma resenha de KULT: Beyond the Veil?
Bem, digamos que estamos de férias e que essa é uma boa oportunidade para falar de uma outra ambientação de horror que vale a pena ser conhecida.
Faz alguns anos que escrevi uma resenha sobre KULT publicada na revista Dragão Brasil. É ela que estou reproduzindo abaixo com algumas mudanças. Trata-se de uma apresentação dos principais elementos da ambientação, sem aprofundar demasiadamente nos segredos do jogo.
Kult sempre foi um dos meus RPG favoritos, infelizmente ele está fora de catálogo faz pelo menos uns dez anos. Uma pena, pois é uma ambientação que merece ser jogada pelos fãs de horror em busca de emoções fortes.
Mas não se engane! Kult é um jogo pesado cuja temática não é para todos os gostos. Minha esposa, por exemplo, não tem problema nenhum em jogar Call of Cthulhu e nunca se importou com as coisas escabrosas que ocorrem nos cenários de terror: Sacrifícios, monstros gosmentos, horrores, etc. Nada disso a deixava incomodada, mas bastaram os primeiros 50 minutos de uma aventura de Kult para que ela levantasse da mesa, pedisse licença e desistisse de jogar.
A controvérsia de KULT
Kult é um RPG que possui status quase lendário. Muito comentado, mas pouco jogado aqui no Brasil. Mesmo lá fora, ele tem certa notoriedade.
Criado por Gunilla Jonsson e Michael Petersén em 1991, o jogo esteve envolvido em controvérsia desde o início. Um crime na pequena cidade de Bujl no sul da Suécia teria sido motivado pelo jogo, embora nunca tenha se provado qualquer coisa nesse sentido.
Em 1993, o livro chegou aos Estados Unidos através da Editora Metropolis e logo se criou polêmica. A temática do jogo contempla elementos envolvendo horror, religião e filosofia oculta de uma forma como nunca antes fora visto nos livros de RPG. Essa abordagem não agradou a grupos conservadores que torciam o nariz até para o termo diabo (fiend) e demônio (demon) presentes nos livros de D&D (que acabaram transformados em Tanariis e Baatezus na segunda edição).
Apesar da pressão, a Primeira Edição de Kult foi publicada na íntegra e a polêmica se traduziu em boas vendas. Em 1994, no entanto, um novo crime, dessa vez ocorrido na Noruega, colocaria o livro no centro da discussão. Segundo os jornais, um rapaz chamado Andreas Hammer, teria desaparecido após participar de um jogo de Kult levado às últimas consequências. A imprensa norueguesa relacionou o jogo com o desaparecimento do rapaz cujo paradeiro nunca foi descoberto. A questão chegou a ser discutida no Parlamento Sueco que decidiu cortar subsídios a publicações de roleplaying games naquele país.
Quando a notícia chegou a América, a Metrópolis que detinha os direitos sobre o jogo, decidiu recuar. Em 1995, a editora publicou uma nova edição revisada contendo uma espécie de auto-censura do conteúdo, os elementos de ocultismo e os trechos mais pesados foram cortados dessa segunda edição considerada mais suave. Os fãs reclamaram muito e renegaram a segunda edição, como consequência a primeira se tornou um artigo raro e disputado.
Apenas em 2001, Kult foi relançado no mercado norte-americano através da Paradox Games. A editora decidiu lançar uma Terceira Edição em inglês baseada na versão francesa. Esse excelente livro foi um retorno às origens e Kult voltou a ter o conteúdo macabro da edição original.
Apesar disso, o livro não obteve o mesmo sucesso de outrora e o selo foi descontinuado. Atualmente o cenário é publicado apenas na França e Itália.
Ambientação
Mas quais os motivos para tanta polêmica em torno de Kult?
Sinceramente, Kult pagou o pato por ser um jogo pioneiro a respeito de horror e ocultismo realista. Hoje em dia esse filão é explorado por inúmeros RPG mas na época Kult foi o primeiro a trazer descrições acuradas sobre rituais de ocultimo, filosofia religiosa e gnosticismo, tudo isso embalado por altas doses de violência explícita. As ambientações da linha Mundo das Trevas da White Wolf devem muito a Kult nesse sentido, a temática entre eles, privilegiando o "horror pessoal" é bastante similar.
Kult é um jogo de horror moderno, cujas estórias se passam em grandes metrópoles do mundo real, cidades escuras, sufocantes e superpovoadas. A premissa do jogo é a seguinte: todo homem e mulher na Terra têm o potencial de ascender e se tornar uma divindade. Na verdade, todos um dia fomos seres superiores (verdadeiros deuses) que, milênios atrás, perderam essa divindade pela ação de uma entidade conhecida como Demiurge (Demiurgo).
O Demiurge criou um grande mecanismo para encarcerar a humanidade como um todo, fazendo com que ela esquecesse seu passado. Esse mecanismo chama-se "A Ilusão". Nós o conhecemos simplesmente como o mundo em que vivemos. Exatamente, o mundo nada mais é do que uma prisão construída para conter a humanidade e fazer com que ela não lembre de sua herança divina. Assim nascemos, crescemos, vivemos e morremos para reencarnar novamente sem imaginar que esse ciclo é uma mentira que nos é imposta. Revestidos de um corpo mortal, a herança divina da humanidade é praticamente desconhecida.
Parece familiar? E não é para menos... Sempre se soube que Larry e Andy Washowski eram jogadores de RPG e que beberam dessas referências para escrever o roteiro de seu grande sucesso: Matrix. Retirando os elementos sobrenaturais, a ilusão funciona exatamente como a Matrix no filme. Mas as coincidências continuam.
O Demiurge, não poderia comandar toda essa estrutura sozinho. Para fazer a sua prisão funcionar, ele empossou um sem número de seres poderosíssimos para manter a humanidade ignorante da sua real condição. Esses seres são os carcereiros, os guardas da prisão ilusória cuja missão é evitar que qualquer um desperte para a realidade. As hostes do Demiurge conta com Lictors, Nepharitas, Razides e outros horrores monstruosos. Os mais poderosos servos do Demiurge, Os Anjos da Morte, regem terras além da Ilusão, o Submundo, o Inferno, o Reino dos Sonhos e várias outras dimensões. Eles são os anjos e demônios descritos nas parábolas religiosas. Na fronteira entre a Ilusão e o Mundo real existem também coisas medonhas que se alimentam daqueles que exploram essas regiões.
De tempos em tempos, algumas pessoas encontram indícios sobre a verdade, seja por meio da descoberta da magia, de antigos livros, artefatos místicos ou seguindo um caminho espiritual que pode conduzir a iluminação ou à absoluta corrupção. Esses desbravadores começam a despertar; passam a ver além da Ilusão e de posse desse saber desenvolvem poderes que são apenas uma fração de suas faculdades divinas. Aqueles que mantém a razão após essas revelações passam a ver o mundo como ele é: um lugar repleto de maravilhas e terrores inenarráveis.
O grande perigo é que quanto mais conhecimento se obtém, mais ele irá atrair os servos do Demiurge, que passam a perseguir a pessoa. Em nenhum outro jogo (nem mesmo Call of Cthulhu) a idéia de conhecimento está tão ligada ao risco. Os agentes do Demiurge são implacáveis e agem sem tréguas para punir os transgressores que buscam revelar segredos que poriam em risco a própria Criação. Um personagem que obtém um livro proibido pode terminar sua carreira sendo mandado literalmente para o Inferno, um ocultista pode ser sequestrado e arrastado para o submundo apenas por pesquisar um ritual.
Os personagens dos jogadores começam o jogo ignorantes de qualquer verdade, eles então começam a explorar os segredos da Ilusão. Os jogadores assumem o papel de pessoas comuns que encontram uma trilha que pode levar à verdade (ou parte dela). Eles começam a montar o quebra-cabeças e a medida que avançam desenvolvem habilidades paranormais.
Mas o que torna o jogo tão perturbador?
Em primeiro lugar, a noção de bem e mal não é muito clara em Kult. Os jogadores podem criar personagens com sérios problemas psicológicos e com perturbadores segredos sombrios. Os personagens em Kult estão longe de ser heróis. Muitas vezes são exatamente o contrário, criaturas cheias de falhas de caráter, vícios e capazes dos atos mais baixos.
Além disso, o jogo trata de temas adultos como morte, ressurreição e ocultismo, acompanhado de um desfile de criaturas diabólicas e angelicais, além de monstruosidades apavorantes. A realidade de Kult é aterradora: cultos malignos tentam ver além da ilusão se multiplicando, matando e sacrificando. Anjos da Morte disputam territórios escravizando humanos, demônios torturam pecadores enquanto seres sobrenaturais agem como verdadeiros predadores atrás de almas. O terror aqui é barra pesada e em geral o desfecho das aventuras é desconcertante.
Regras
Os personagens são construídos pela distribuição de pontos. Jogadores criam seus personagens com base em um arquétipo de ocupação sugerido pelo livro. Os arquétipos são bem simples: o médico, o detetive particular, o policial, o membro de gangue, etc. O jogador deve empenhar uma determinada quantidade de pontos em oito atributos básicos. Cada atributo por sua vez define fatores como a resistência, a capacidade de causar e provocar dano, o número de ações que ele é capaz de realizar e com que rapidez.
Em seguida, o jogador deve distribuir pontos em habilidades relacionadas a ocupação do personagem. A lista de habilidades é bem longa e cobre uma variedade de conhecimentos que vão de contabilidade a paraquedismo, passando por artes marciais e ocultismo. Quanto maior o número registrado em uma habilidade maior o grau de conhecimento nela e mais fácil obter um resultado favorável.
Além disso, o jogador precisa escolher entre uma longa lista de vantagens e desvantagens que concedem uma faceta humana ao personagem. É com essa lista de defeitos e virtudes que o personagem irá determinar a sua Balança Mental, um dos conceitos mais importantes da ambientação. A Balança Mental mede se o personagem está alinhado com as forças das trevas ou da luz. Ter uma balança mental próxima de zero é o normal para 90% da população mundial. Aqueles que possuem números acima ou abaixo desse valor começam lentamente a ver além da Ilusão e passam a desenvolver capacidades estranhas.
Um personagem com muitas virtudes possui uma Balança Mental positiva, já os personagens com grande quantidade de desvantagens tem uma balança negativa que reflete as trevas dentro de si mesmo. Quanto mais o personagem se afasta do zero (seja para cima ou para baixo) mais estranho, excêntrico ou sociopata ele se torna. Com +/- 25 o personagem começa a manifestar fisicamente sinais de sua ascenção ou queda, tornando-se um santo ou uma criatura da noite.
Balança Mental negativa durante a criação dos personagens define também se ele possui um Segredo Negro, ou seja um acontecimento traumático que destaca o personagem do restante das pessoas. Não é preciso dizer que é importante ter certo grau de maturidade no momento de criar personagens para não construir maníacos psicóticos. O jogo não proíbe a criação de tais personagens, embora recomende ao mestre estabelecer certos limites de tolerância.
Kult é um jogo com regras bastante simples. Ele é voltado para o lado investigativo e, sobretudo, para a interpretação. Capacidade de observação, percepção e habilidades certas na hora certa podem ser cruciais para a sobrevivência do grupo. O sistema de regras utiliza apenas um dado de 20 lados e seu rolamento define se o jogador teve êxito em um teste e uma tabela diz qual foi o seu grau de sucesso.
O combate é um elemento secundário, mesmo porque as lutas são extremamente realistas e letais. Personagens podem morrer facilmente em um único ataque. Lutar contra os seres sobrenaturais que infestam o cenário é quase um suicídio. Além de muito mais poderosas, essas criaturas em geral resistem ao dano e sempre acabam retornando para se vingar. A melhor opção é aprender como se proteger dessas entidades e estar sempre preparado para lidar com decisões difíceis e perdas.
O sistema de magia é bem completo, a terceira edição já inclui as informações do suplemento "Earth, Mind, Body and Soul" que trata dos aspectos místicos. As magias precisam de longos rituais para funcionar corretamente. O livro apresenta uma detalhada descrição de cada magia, quais os preparativos necessários para sua realização, os gestos, os símbolos, ingredientes e o efeito. Aprender o mais simples ritual é arriscado e pode demandar meses ou mesmo anos de estudo. Além disso, a magia cobra um alto preço físico e psicológico, sem mencionar que ela funciona como um imã atraíndo as criaturas do Demiurge. Todo o cuidado é pouco na hora de lançar o mais simples encanto.
Existem cinco ramos específicos de magia: Morte, Tempo/Espaço, Paixão, Loucura e Sonho. Cada um deles permite que o personagem domine um determinado número de encantamentos e rituais.
Imagem Geral
Eu tenho duas edições de Kult, a Primeira e a Terceira. São livros com bom acabamento, arte bem feita e textos muito bem escritos. A Primeira Edição tinha um interior com toques de vermelho que acentuava o ar visceral do jogo. Eu gosto do resultado embora o ache meio enervante.
A terceira é toda em preto e branco e o uso dessas duas cores e várias tonalidades de cinza reforça a oposição entre luz e trevas no jogo. Ambas edições foram publicadas em capa mole, sendo que a terceira deixava um pouco a desejar, para meu desespero algumas folhas começaram a se soltar com o uso.
A qualidade da arte interna varia um bocado. Certos desenhos são excelentes, outros parecem meio deslocados. Muitas ilustrações foram reaproveitadas, o mesmo ocorrendo com trechos inteiros do texto. A capa, no entanto, é bem diferente de uma edição para outra. A primeira edição possui a clássica imagem do anjo sujeito a um tipo de tesoura gigante. A terceira não é tão emblemática, mas ainda assim apresenta vários elementos arcanos em destaque.
O material em ambos os livros é bem distribuído ao longo de três grandes tomos, cada um com um título sugestivo: A Mentira, Os Rumores e A Verdade.
A primeira parte, "A Mentira" cobre os aspectos funcionais do jogo como criação do personagem e regras básicas. As explicações possuem fartos exemplos que ajudam a entender a mecânica e assimilar a proposta do jogo. "Os Rumores" trata do clima e apresenta idéias ara mestre invocar uma atmosfera depressiva e assustadora. Traz ainda o sistema de magia com grande nível de detalhamento. Finalmente "A Verdade" é exclusivo para o mestre pois revela os mistérios do cenário, discutindo as criaturas que vivem nesse universo soturno, os poderes assustadores e os lugares que existem além da Ilusão.
Análise Final
As melhores referências para entender o estilo de horror de Kult são os filmes da série Hellraiser - Renascido do Inferno, a literatura assustadora de Clive Barker e as aventuras sobrenaturais de John Constantine e do Monstro do Pântano.
Atualmente é difícil encontrar qualquer uma das edições salvo em lojas virtuais que negociam RPG fora de catálogo. Para piorar, o preço pode variar muito de acordo com quanto quem está vendendo quer "meter a mão".
A Primeira Edição é um bocado rara, mas dá para encontrar em lojas que vendem versão digital como a Noble Knight, já a terceira edição exige mais trabalho uma vez que não teve uma tiragem muito grande. Ironicamente a edição mais recente tende a ser até mais difícil de achar.
Vale a pena salientar uma vez mais que a temática de KULT é destinada a um público maduro e portanto capaz de discernir os aspectos mais profundos da ambientação. É um excelente jogo de terror, um mestre com bons recursos será capaz de criar uma atmosfera assustadora e inquietante.
É realmente muito interessante ver como as pessoas não sabem diferenciar um jogo de uma ameaça real. Mas enfim achei muito bacana, já vi muito antigamente uma edição de Kult e não tinha ideia do que era, como é normal aqui no Brasil que acabamos sendo atingidos pelos RPG Mainstream. Não sei como, mas vou tentar encontrar um versãozinha pra dar uma olhada que fiquei muito interessado na temática, principalmente no correlação entre os carcereiros com a mitologia.
ResponderExcluirMuito boa a resenha.... eu jogava Kult em 1997...
ResponderExcluirLendo a resenha descobri que tenho um exemplar da 3ª edição. É um jogo incrível e de uma originalidade (e terror) impressionantes. Contudo, foi bom destacar na resenha que hoje Kult pode parecer "batido", o que é uma grande injustiça, pois na verdade ele foi o grande pioneiro no gênero.
ResponderExcluirHá tempos não ouvia falar de Kult é foi com extrema satisfação que li essa resenha e me lembrei da década de 90, quando o "RPG Proibido" era o ápice dos jogos com temática sombria. E lendo a resenha ainda me lembrei de outro RPG com uma temática semelhante: Unknow Armies (apesar de que esse segundo não engloba tanto o terro, mas o mundo da magia). Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirGostaria de saber da possibilidade de publicação dessa resenha, na íntegra e devidamente creditada, no nosso blog (www.almanake.net). Há uma sessão de RPG e estava justamente pensando em escrever algo sobre o tema. Grato pela atenção. dougedson@gmail.com
ResponderExcluiruma pena nunca ter vindo uma edição para o Brasil, mesmo com o risco da retratação do ministério da "moral e bons costumes"
ResponderExcluirClaro Doug, pode usar o artigo sem problema.
ResponderExcluirKult rules, jogava bastante no final dos anos 90, assim como In Nomine que tinha uma temática bem mais leve, mas era bem "divertido" tb
ResponderExcluirÓtimo artigo, Kult e universo hellraiser. Parabéns!
ResponderExcluirAmo Kult e tenho a primeira edição. Infelizmente quem mestrava para mim, não deu continuidade para ver o que ocorreria após "a morte".
ResponderExcluirAfinal:
"Death is Only the Beginning"
Bom texto mesmo! Estou eu procurando material para Kult (pretendo mestrar no Saia) e eis que encontro esse excelente texto! Valeu xará!
ResponderExcluirExcelente materia descobri hoje esse excelente Rpg. Ja encomendei os livros e estou ansioso para mestra-lo.
ResponderExcluirContinue assim. Seu Blog é foda.
Cara adoro seu blog, li todas as suas postagens desde a inauguração, fiquei muito interessado em Kult, como faço para achar o livro em Inglês, visto que o em português não existe...:( ?
ResponderExcluirPS: Aceito Pipipitchu em PDF pra quem souber me manda no e-mail: marcosrodrigues.brac@gmail.com
belo review! acho que poderíamos fazer um FC desse livro como foi feito do Chamado de Cuthullhu. você acha isso possível ?
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