domingo, 25 de junho de 2017

Lovecraft e o Sexo - Ou a vida sexual do Cavalheiro de Providence


O artigo a seguir foi baseado no texto escrito pelo biógrafo Alain Everts, publicado em 1979. Este por sua vez foi publicado muitos anos após uma série de entrevistas feitas no final dos anos 1960, com Sonia Greene, a esposa de HP Lovecraft que já estava em idade avançada.

Nas entrevistas, ela relatou como era sua vida pessoal com Lovecraft, o que ajudou a levantar um véu de incertezas a respeito de uma faceta da vida do autor que a maioria das pessoas desconhecia. Embora Lovecraft estivesse morto há muitas décadas e ela própria tivesse casado mais uma vez, pela terceira vez, Sonia descrevia seu conflituoso relacionamento com Lovecraft de uma maneira respeitosa, com certo grau de carinho e admiração.

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Durante o curso de minha amizade com Sonia Lovecraft (Greene), o tópico de seu relacionamento sexual com Howard Phillips Lovecraft não veio à tona por minha iniciativa nenhuma vez - muito mais por conta da minha juventude na época, do que por descaso biográfico. Felizmente para mim, entretanto, várias vezes a ex-senhora Lovecraft tocou no assunto por conta própria, permitindo que eu pudesse fazer o registro pertinente de um tópico complicado no que diz respeito ao conhecido autor.

Em alguns momentos de suas memórias sobre HPL, Sonia mencionou esse aspecto de seu relacionamento íntimo. É claro, assim como Lovecraft, ela compartilhava de certo grau de puritanismo vitoriano no que diz respeito a sexo; entretanto, Sonia viveu para conhecer uma época de maior liberdade sobre esses assuntos o que lhe permitiu fazer revelações que ela não ousaria fazer décadas antes.  Além disso, Sonia já era mãe de duas crianças antes de completar os vinte anos, filhos de seu primeiro casamento com um marido abusivo. Essa experiência, ainda que traumática, significava que ela tinha um conhecimento que Lovecraft na época do matrimônio não compartilhava, já que em 1924, ele era virgem. 


Não era inteiramente incomum para a época, que um homem de 34 anos não tivesse experiência sexual. É preciso lembrar que estamos falando de uma época de grande repressão e pudor, na qual a iniciação sexual de homens e mulheres, muitas vezes estava condicionada ao casamento, a não ser que o interesse levasse à busca de "profissionais do sexo". Lovecraft, no entanto, não parecia muito curioso a respeito. Muitos consideram que ele fosse neutro no que tange aos prazeres carnais, o que também não era raro para os cavalheiros do período.

Sua noiva, por outro lado, dificilmente deve ter ficado encabulada ou confusa com o que esperar na lua de mel. Embora ela reconhecesse que nenhum dos dois era especialmente entusiasmado sobre sexo no seu sentido literal, ambos eram perfeitamente capazes de satisfazer as necessidades um do outro.

Sonia contou que antes de seu casamento, HPL comprou e leu todos os livros que pode obter sobre casamento, sexo e os deveres do marido na cama. Ele era, por força das convenções um amante consciencioso. É provável que HPL tenha obtido o material e informações adicionais com alguns de seus amigos mais próximos. James Morton, um de seus colegas por exemplo, era bastante liberal e franco sobre sexo e provavelmente tinha bastante prática no tema. Seu conhecimento mais do que teórico, especialmente a cerca de temas mais obscuros, era vasto - a poesia erótica de Morton incluía trechos explícitos no qual ficava claro certas façanhas. Além do que, ele foi por muitos anos um defensor ferrenho do amor livre. Esse tipo de conhecimento era algo incomum na época, visto que muitos casais recém casados ignoravam até as particularidades da anatomia de seu parceiro, quanto mais, como proporcionar a eles prazer. Não há nenhum indício de que Lovecraft possa ter procurado Morton para tirar suas dúvidas, mas tal coisa pode muito bem ter ocorrido.     

Sabe-se entretanto, que Lovecraft abominava ter de discutir com qualquer pessoa aspectos do sexo, especialmente sua própria vida sexual. Sonia recordou que "quando Lovecraft e seus amigos costumavam se reunir no estúdio de Sam Loveman, na Rua Clinton, por vezes um dos colegas para provocar ou chatear Lovecraft começava uma conversa a respeito de sexo, sabendo que ele detestava ouvir estórias sobre esse tópico. Certa vez, Sam perguntou se HPL se sentia envergonhado ou enojado ao pensar que seus próprios pais tinham de dividir uma cama para que ele pudesse ser concebido". 

Segundo Sonia, o marido não respondeu a provocação, mas ficou constrangido a ponto de sair sem dizer uma palavra. Mais tarde, ao relatar o ocorrido para a esposa, ele não deixou escapar sua raiva: "HP jamais foi um brigão, mas ele contou que por pouco não deu um soco em Sam. Não o fez apenas por ser um convidado em sua casa naquela ocasião".

Embora ficasse incomodado de falar sobre a vida sexual de seus pais, Lovecraft revelou à esposa com certo grau de orgulho que o colchão no qual os dois dormiam era o mesmo em que ele havia sido concebido. Com certeza o grau de intimidade entre HPL e Sonia devia ser considerável para que ele fizesse tal revelação: "Isso acredito eu, ele só contou para mim".    


Sonia reafirmou também uma declaração que foi ouvida posteriormente por várias fontes - de que as admoestações da mãe de HPL tiveram um impacto "devastador" em sua vida adulta. A mãe de Lovecraft não o poupava de críticas, sobretudo a respeito de sua aparência física - ela o chamava de "grotesco"e dizia que ele não deveria sair durante o dia para não assustar os vizinhos. Quando ele tinha 3 anos, insistia em vesti-lo como uma menina, deixava seus cabelos longos e colocava nele vestidos. O pai não ficava satisfeito com aquilo, mas raramente dizia alguma coisa.

Sem dúvida, algumas admoestações de caráter sexual também devem ter sido feitas pela mãe de HPL. Sonia lembra que Annie Gamwell, uma prima de Lovecraft, contou certa vez como a mãe o incomodava, reclamando constantemente das escapadas sexuais de seu marido. Ela sabia bem das aventuras com prostitutas e mulheres que Winfield Lovecraft buscava em suas viagens como negociante de jóias e que deram a ele a doença venérea que terminou por matá-lo. Não há como saber ao certo, mas a sífilis que matou o pai deve ter causado no jovem Lovecraft um severo efeito psicológico. Talvez por isso, assuntos ligados ao sexo o incomodavam sobremaneira. 

Annie também disse algo que deixou Sonia perturbada, ela foi enfática que os dois não "podiam" ter filhos - o que soou como uma espécie de alerta para Sonia na época. Ela sempre se perguntou por que Annie não usou "não deveriam" ter filhos. É provável que Annie desconfiasse que HPL tivesse herdado algumas das paranoias da mãe. Um dos maiores terrores de Lovecraft era que ele pudesse de alguma forma ter o mesmo comportamento da mãe que no final da vida teve de ser institucionalizada.

Em outra memória não publicada, Sonia conta que - "É claro, eu nunca esperei que ele fosse um marido perfeito mas eu nutria expectativas particulares que ele pudesse, no final das contas, demonstrar ser um amante normal. Eu sentia, entretanto, que suas inibições haviam sido provocadas pela sua severa criação puritana". Essa inibição foi explicada por Sonia quando conversei com ela e gravei nosso diálogo. Sonia contou que HPL nunca iniciou nenhuma proposta sexual durante seu casamento, cabia a ela propor o início das relações. Sonia contudo deixou claro que HPL sempre cumpriu seus deveres maritais de uma forma adequada. 

"Ele agia de maneira inibida, deixando que eu o conduzisse, mas ainda assim, ele estava muito longe de ser neutro ou assexual como alguns supunham. Eu sempre achei que esse comportamento era derivado de sua criação, a maneira como ele foi educado o deixava inseguro e tímido diante de funções perfeitamente naturais. A simples menção da palavra "sexo" parecia o deixar incomodado. Ele declarou que se um homem não estivesse casado por volta dos 19 anos, quando seu desejo sexual atingia o ápice, este passava a apreciar pouco o ato quando chegava na casa dos 30. Eu fiquei chocada com esse comentário". 

Muito provavelmente, na idade em que finalmente casou, Lovecraft não tinha mais nenhuma motivação para desejos sexuais. Eu acredito que a essa idade, ele era uma dessas raras pessoas que não sentem desejo ou nutrem muito interesse pelo sexo. Isso não significa que ele não fosse perfeitamente capaz de levar à cabo sua performance, ele apenas não sentia vontade de fazê-lo.     

Lembro de Sonia contar que Lovecraft era perfeitamente adequado sexualmente, uma declaração que, nos anos seguintes, se tornou famosa sobretudo quando surgiam questionamentos a respeito de uma possível homossexualidade de Lovecraft. A ex-esposa sempre afastou essa possibilidade, considerando que ele não tinha qualquer interesse em relacionamentos com parceiros do mesmo sexo, tanto quanto não tinha com o sexo oposto. Contava, entretanto, que ele sabia perfeitamente como agradar uma mulher do ponto de vista sexual. Sonia já havia sido casada e tinha muito mais experiência que Lovecraft. Ela o considerava seu melhor e mais adequado parceiro até então. Parece claro que Sonia não se referia a proezas ou sofisticação sexual, mas a dedicação, gentileza e cuidado que ele lhe reservava. Ela assegurava que Lovecraft não era, em absoluto, repudiado pelo sexo ou pela relação sexual, e que no quarto do casal, ele se comportava como um perfeito cavalheiro.


Quando compartilhei essas declarações com outro amigo de HPL, este se mostrou surpreso, visto que para ele estava claro que Lovecraft jamais havia tido qualquer experiência sexual antes do casamento. Este amigo contou que manteve uma amizade duradoura com HPL, por mais de dez anos, mas que nesse período, jamais conversaram a respeito do assunto. "Não era algo de interesse para Lovecraft", resumiu de maneira sucinta. 

Mesmo quando tinha de pensar a respeito do assunto para compor suas histórias, ele era econômico nas descrições. Em "O Horror de Dunwich" e "A Sombra sobre Innsmouth", está clara a existência de um componente sexual; as abominações semi-divinas e batráquias respectivamente nasciam de um processo biológico. Mulheres eram fertilizadas por parceiros que embora fossem de espécies diferentes se mostravam perfeitamente compatíveis. Parece emblemático que nos contos em que o sexo está subentendido, o resultado sejam seres aterrorizantes. Curiosamente não há nenhuma informação sobre o que Lovecraft pensava da possibilidade de ser pai. Sonia jamais tocou nesse assunto, o que levanta a possibilidade de haver certo atrito entre eles quanto a isso.

Após a separação de Lovecraft e Sonia, muito provavelmente ele não voltou a ter relações sexuais. Lovecraft parecia satisfeito em agradar a esposa quando esta precisava dele, e havia compreendido o suficiente para cumprir a sua parte. 

Contudo, a necessidade pessoal, esta, ao que tudo indica era nula e assim permaneceu até o fim de sua vida aos 47 anos.

3 comentários:

  1. Ótimo tema. Nunca pensei a respeito por achar que tem pouca (na verdade nenhuma) fonte confiável sobre o assunto. Gostei bastante.

    Na minha particularidade sempre fiz um paralelo entre HPL e Van Gogh. Pela ausência de reconhecimento da obra de ambos em vida, junto com a melancolia e vida reclusa.

    Esse texto reforça ainda mais essa proximidade que sinto. Muito Grato.

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  2. Sou um admirador das obras de Lovecraft e de outros autores (quase todos) da mesma estirpe quanto ao estilo e ao gênero. Eu quis homenageá-los no nome dos meus filhos, que são (o mais velho) Victor Stephen King Barker e os gêmeos Hector Lovecraft Stoker-Shelley e Szánctor Sienkiewicz Allan Poe.
    Gostei muito deste e de outros artigos relacionados a HPL. Parabéns pelo blog.

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