É inevitável!
Mais cedo ou mais tarde os jogadores vão querer comprar armas de fogo para seus personagens e o mestre vai se perguntar se deve ou não permitir isso.
Como lidar com a questão das armas nas ambientações de horror? Já que estamos falando de armas de fogo vamos a algumas idéias que podem ajudar o Guardião a tratar da questão nos seus cenários.
Call of Cthulhu (e também Rastro de Cthulhu) se difere de outros RPG mais tradicionais por desencorajar personagens armados até os dentes ou com habilidades combativas elevadas. Em contraste com outros sistemas que privilegiam o enfrentamento, as regras de combate em ambientações tipicamente Lovecraftianas possuem apenas umas poucas páginas.
Isso acontece porque o foco principal da ambientação é a investigação e não o combate. Os personagens em essência são pessoas comuns, com ocupações comuns que não possuem familiaridade com armas.
Ao menos essa é a teoria.
Infelizmente os personagens logo descobrem que habitam um mundo incrivelmente perigoso. Cultistas e maníacos planejam matá-los na primeira oportunidade. Estranhas criaturas sedentas de sangue podem ser invocadas. Horrores assombrosos emergem das trevas do tempo e espaço. Quanto mais fundo os investigadores mergulham nos mistérios do Mythos, mais perigoso e instável se torna o mundo ao seu redor.
É natural portanto que eles queiram sentir a segurança (ainda que ilusória) proporcionada por armas de fogo.
Embora armas não possam substituir uma mente astuta, elas são ferramentas bastante úteis numa investigação. Uma vez que armas de fogo são o armamento mais poderoso disponível, elas quase sempre desempenharão um papel no seu jogo. O Guardião deve lembrar algumas coisas antes de permitir que seus jogadores banquem o Rambo e comecem a comprar armamento pesado, minas terrestres, bazucas, lança chamas e o que mais estiver no livro básico.
Em primeiro lugar, argumente com os jogadores que os investigadores são pessoas normais arrastadas para o horror através de acontecimentos extraordinários. Os personagens (via de regra) não possuem um treinamento apropriado para utilizar armamento. É mais provável que os investigadores em início de carreira tenham armas simples (se é que as tenham) como o .22 ou .32 ao invés de espingardas ou metralhadoras Thompson.
Além disso, o Guardião pode pedir que os jogadores justifiquem porque personagens absolutamente normais teriam em seu poder armas que não são sequer comercializadas. Qual seria a justificativa para um médico possuir uma pistola Colt .45? Por que a escritora teria em sua casa uma espingarda calibre 12? O que explicaria um pacato professor de antropologia possuir uma caixa de granadas?
E mesmo que os personagens tenham uma justificativa para possuir tais armas, é preciso ter em mente que esses indivíduos não esperam ter de usá-las. O antiquário pode ter em sua loja um Colt Peacemaker da Guerra da Secessão, mas ele normalmente não sai com ele na rua. O mesmo vale para o arqueólogo que possui em sua casa um rifle usado durante uma escavação na Guatemala ou o Diletante que certa vez fez um safari na África e guarda uma Elephant Gun sobre a lareira. Esses personagens possuem armas mas dificilmente ponderariam usá-las, exceto nas situações mais desesperadoras e mesmo assim com habilidades básicas.
Existem aqueles personagens que tem o direito de possuir armas de fogo como parte de sua ocupação. Detetives, militares, policiais e agentes federais tem a prerrogativa de portar armas para sua defesa e o treinamento necessário para usá-las. No entanto, mesmo estes devem obedecer uma série de leis criadas com o ímpeto de restringir o uso letal das armas.
Se o grupo sobreviver a sua primeira investigação do Mythos e tiver testemunhado a existência de criaturas e cultos, é bem provável que eles queiram comprar armas.
Isso nos leva a velha máxima: "aquilo que não nos mata, nos inspira a comprar armas maiores".
Contudo, armas são uma resposta pouco eficaz para combater o Mythos e é bem possível que o grupo descubra da pior forma possível que suas armas não serão úteis contra todos inimigos.
Na América e em outras partes do mundo que podem ser chamadas de "menos civilizadas" é possível para os personagens aumentar seu poder de fogo. Entretanto um grupo que começa a buscar no mercado negro por pistolas automáticas, metralhadoras e explosivos, acabará atraindo a atenção das autoridades que os investigará assumindo que qualquer um com tamanho arsenal deve ser um criminoso, contrabandista ou terrorista.
Um grupo inteligente usará suas conexões no submundo para obter essas armas através de terceiros e as deixarão ocultas até o momento de usá-las. Outra possibilidade é desviar armamentos através de contatos na polícia ou nas forças armadas. Sempre é possível que uma caixa de armas e munição à caminho da América Central se perca no caminho e vá parar nas mãos de alguém com os devidos recursos e contatos. Mesmo explosivos podem ser obtidos se o grupo tiver conhecidos que trabalhem com pedreiras, minas ou prospecção.
Investigadores sábios poderão aumentar seu poder de fogo sem atrair a suspeita da polícia recorrendo ao uso legítimo. Isso significa comprar rifles de caça e espingardas esportivas em lojas de armas. Ainda que estas armas sejam menos potentes que o armamento militar, elas são legais na maioria dos lugares.
Leis de Armas na América
Armas de fogo sempre foram extremamente comuns nos Estados Unidos. A Constituição norte-americana garante em sua segunda emenda possuir armas de fogo como forma de enfrentar governos totalitários, invasores estrangeiros, para fins de sobrevivência e defesa pessoal. Acreditem ou não, estes termos estão na Lei Máxima e justificam até os dias atuais o direito garantido a qualquer cidadão que deseja possuir uma arma.
Até o começo do século XX, armas de fogo e munições podiam ser compradas em lojas especializadas, armazéns, armarinhos, bazares e mesmo em farmácias sem necessidade de porte ou comprovação de treinamento.
Uma tradição consagrada - quase um ritual de passagem - era o pai ensinar ao filho como manusear armas de fogo. Armas de caça eram mais comuns no interior, mas isso não significa que a população urbana estivesse desarmada. Pessoas que viajavam frequentemente costumavam ter "armas de viagem", que eram levadas para auto-defesa quando o indivíduo tinha de pegar a estrada ou deixar a segurança de sua cidade. Armas também eram comuns para defesa da família e era comum o pai de família ter uma arma para defender seus parentes em aso de necessidade.
Nos anos 20, projetos de lei começaram a limitar o acesso civil a armas. A Legislação Federal passou a regular a fabricação, venda e posse de armas em todo território americano. O objetivo principal dessas leis era proteger o público de criminosos, lunáticos ou terroristas (anarquistas também eram uma fonte constante de preocupação na época) que adquiriam armas com facilidade. No início do século vários presidentes americanos foram vítimas de agressores armados o que justificava uma medida para limitar o aceso do público à armas.
Em 1927, passou a ser ilegal para civis fabricar armas caseiras, comprar pólvora e remeter armas através do correio. Além disso, apenas armeiros licenciados tinham autorização para produzir e negociar armas de fogo.
O Ato Nacional de Armas de Fogo, assinado em Julho de 1934 foi a lei mais significativa para regular o acesso à armas de fogo nos Estados Unidos. O ato baniu armas automáticas para a população civil, limitando seu uso a certas agências governamentais, polícia, militares e agências de segurança (inclusive detetives particulares e guarda-costas).
Não era permitido que civis portassem armas de fogo automáticas a não ser que tivessem uma licença especial assinada por alguma autoridade federal. Obter esses papéis exigem conhecer alguém na esfera federal, ter contatos ou convencer uma pessoa a conceder tal favor. Não é de todo impossível conseguir essa autorização, mas o investigador almejando essa licença deve especificar como a obteve, do contrário estará contra a lei.
Outro elemento importante do ato foi tornar ilegal a remoção ou adulteração de números de série e outras marcas de identificação em armas de fogo. Armas modificacadas dessa forma passaram a ser consideradas ilegais e seus donos processados.
Finalmente, o ato limitou a posse de rifles e espingardas considerados potentes além do necessário para caça, esporte e sobrevivência. Isso significou a proibição de armas como a mortal espingarda calibre 12 como arma de defesa e esporte.
Se por um lado a legislação limitou o acesso a certos tipos de arma, ela não se manifestou quanto a uma idade mínima para o porte ou a respeito de treinamento obrigatório das armas ainda permitidas. Leis restritivas a esses itens só surgiram a partir da década de 60.
Leis de Armas na Grã-Bratanha
Nos anos 20-30, armas de fogo eram ainda mais difíceis de serem obtidas por civis na Grã-Bretanha. As leis inglesas possuem uma antiga tradição contrária a disseminação de armas de fogo entre a população.
A população civil em geral não podia portar armas automáticas sob hipótese nenhuma. Licenças especiais podiam ser concedidas a ex-militares e detetives, mas estas eram bem mais difíceis de serem emitidas e a mesma precisava ser renovada anualmente.
Revólvers e armas semi-automáticas também careciam de um porte especial concedido pela polícia e que estava sujeito a avaliação. A Inglaterra foi o primeiro país a instituir o porte de armas. Curiosamente rifles e espingardas só passaram a ser consideradas como armas vedadas a população civil em 1938, isso explica porque era mais fácil encontrar rifles e espingardas entre civis do que pistolas.
As leis britânicas eram bem menos rigorosas a respeito de súditos que desejassem sair da Inglaterra e viajar pelas colônias que faziam parte do Império. O Gabinete Colonial podia emitir licenças especiais para cidadãos ingleses que desejassem adquirir e portar armas quando estivessem em territórios do império. Essa permissão incluía pistolas automáticas, rifles e espingardas. Dessa forma, um súdito do Rei podia justificar a compra de uma pistola se fosse fazer uma viagem para a Austrália, Canadá, Quênia ou India.
Força Letal e as Leis
Armas são adquiridas para auto-defesa. Indivíduos que compram armas e começam a disparar ao menor sinal de perigo correm o risco de terminar acusados de assassinato, presos ou abatidos pela polícia.
Na maioria dos países civilizados a auto-defesa é uma faculdade que exime o indivíduo de punição. Contudo existem princípios que devem ser seguidos por aqueles que alegam a legítima defesa: o uso de armas deve ser evitado à todo custo e o emprego dessas armas só é aceito em última instância. Mesmo assim, força letal só é aceita em último caso. Isso significa que uma ameaça não-mortal, jamais justifica o uso de força mortal para defesa.
Portanto, se um dos investigadores sacar uma arma e abater um cultista que avançava contra ele invocando uma magia, terá de se explicar com a justiça. Não importa se o cultista era um maníaco enloquecido, se ele não estava comprovadamente ameaçando a vida do investigador é quase certo que este enfrentará acusação por homicídio.
Os jogadores devem compreender esses princípios do contrário podem surgir na mesa de jogo personagens que não se importam de atirar diante da mera sugestão de ameaça.
Conclusão:
Armas de fogo podem ter uma importância crítica em seus cenários quando usadas corretamente. Elas são uma forma de salvaguardar a integridade dos personagens contra ameaças menores. Os jogadores devem compreender que armas de fogo são um recurso válido para a proteção de seus investigadores mas que nem sempre ele é uma garantia de sobrevivência.
Ademais precisam entender que possuir armas de fogo não se traduz em usar indiscriminadamente essas mesmas armas. Há graves implicações em disparar essas armas, mesmo contra cultistas se não existir evidências de que a situação demandava essa medida enérgica.
Investigadores devem pensar bem antes de atirar, mesmo que eles estejam se defendendo de um Byakhee dando um vôo rasante ou de um ghoul saíndo de um esgoto. Eles devem se recordar que armas produzem barulho e que atraem as autoridades. Se um policial ouvir o estampido de um revólver sem dúvida irá querer uma justificativa e de nada adiantará jogar a culpa em uma criatura que sumiu na noite sem deixar vestígios.
Vários personagens da ficção lovecraftiana terminaram presos por usar armas em um momento de desespero, pior ainda ao tentar justificar seus atos acabaram sendo considerados mentalmente perturbados por revelar em que eles estavam atirando. Portanto, cuidado com as explicações.