No vasto universo habitado pelos seres do Mythos de Cthulhu, é difícil apontar para uma única criatura e dizer que ela é a mais hedionda e assustadora.
Cada pessoa reage de forma diferente aos horrores do Mythos. Alguns podem se sentir mais intimidados pela descrição dos horrores batráquios como os Abissais, outros pela aparência de criaturas absurdamente inumanas como os Fungos de Yugoth ou ainda pela bestialidade dos ghouls. Cada um reage de uma maneira particular a esses horrores, aquilo que afeta a uma pessoa, não causa a mesma sensação em outra.
H.P. Lovecraft certa vez comentou à respeito da criatura que em sua opinião era a mais terrível dentre aquelas que ele mesmo havia criado. Em uma carta endereçada ao seu colega Clark Ashton Smith ele escreveu:
"De todos os horrores que saíram de minha imaginação, creio que o mais dantesco, o mais febril em conceito e forma, tenha sido a raça que servia aos Anciões, no tempo em que estes habitavam a Antártida pré-histórica. Há algo de incômodo em imaginar seres dessa natureza: massas amorfas e gelatinosas que se movem lançando apêndices e pseudópodos e em cuja superfície protoplásmica criam um sem número de olhos e bocas. Em certa ocasião acordei sufocado após um pesadelo com essas criaturas e dessa experiência vívida extraí boa parte das situações do conto em que elas figuram".
É claro, Lovecraft está se referindo a uma de suas criações mais famosas, os Shoggoths.
Apresentados no conto "Nas Montanhas da Loucura" os Shoggoth de fato são coisas medonhas de se imaginar. Uma massa amorfa, negra como piche, cheia de olhos vítreos, gigantesca como um lago e capaz de absorver vorazmente tudo aquilo que consegue alcançar com seus tentáculos.
ORIGEM DOS SHOGGOTH
Há lendas sobre criaturas amorfas gigantescas em várias culturas e civilizações ao longo das eras. Tais seres são mencionados em vários compêndios de conhecimento esotérico.
Eles são citados com enorme reverência no Necronomicon de Abdul Al-Hazred e descritos pelo árabe louco como "a matéria viva que dá forma aos pesadelos mais negros". São citados também nos Manuscritos Pnakoticos como os guardiões dos desertos gelados de Kadath. Há referências sobre eles nos mais blasfemos rituais dedicados a Cthulhu contidos no Unaussprechlichen Kulten de Friedrich von Junzt. Entretanto, para compreender a origem e impacto do mito é necessário examinar os registros trazidos pela expedição empreendida pela Universidade Miskatonic à Antártida em 1931.
Ao retornar de sua jornada, os cientistas trouxeram consigo baixo-relevos esculpidos pelos Anciões, uma raça não-humana que habitou a cidade construída no superplatô antártico há incontáveis milênios. Nestes rudes artefatos de pedra está delineada sua história.
Lá está escrito que os Seres Ancestrais (Anciões ou Elder Things) experimentaram eras de progresso científico em que projetaram máquinas extremamente complexas. Contudo, tais mecanismos eram de pouco uso para criaturas capazes de se adaptar a qualquer ambiente, de se locomover através do ar e viajar pelo próprio espaço. Com o tempo, eles passaram a se dedicar exclusivamente a manipular a estrutura da vida. Seu domínio sobre a Engenharia Genética era tamanho que podiam fabricar outras formas de vida ao seu bel prazer, combinando e rearranjando genes, forçando mutações e metamorfoses.
Ao chegarem ao nosso planeta milhões de anos atrás, os Seres Ancestrais encontraram poucas formas de vida nativas, mas um ambiente rico em possibilidades. Manipulando os recursos disponíveis criaram condições para garantir sua sobrevivência. A medida que elaboravam um plano de colonização permanente, concluíram que necessitariam de ferramentas para essa árdua tarefa. Sua avançada ciência genética lhes permitiu construir em laboratórios aquilo que necessitavam: serviçais. De todas as "máquinas orgânicas" que construíram, a mais impressionante, sem sombra de dúvida, foram os Shoggoth.
A fórmula correta para criar um Shoggoth, através de manipulação genética se perdeu no tempo e é possível que não exista em lugar algum do universo.
Durante a colonização do planeta, os Shoggoth se converteram na mão de obra empregada pelos Anciões para sedimentar a base de sua conquista. Os Shoggoth ergueram colossais cidades de pedra, construíram prédios, monumentos e templos cuja grandiosidade nenhuma civilização humana conseguiu rivalizar. Não é exagero afirmar que os Shoggoth foram essenciais para os Anciões se estabelecerem na Terra.
A medida que eles expandiam a colônia para fora dos oceanos em direção aos continentes ainda em formação, o material protoplásmico dos Shoggoth foi empregado na criação de formas de vida animais e vegetais, marinha, terrestre e aérea. Confortáveis na sua condição de senhores do planeta, os Anciões permitiram o florescimento de incontáveis formas de vida. Esta concessão levou ao surgimento da própria raça humana, cuja matriz genética foi fabricada em algum laboratório dos Seres Ancestrais.
Era procedimento padrão exterminar qualquer espécie capaz de desenvolver inteligência racional, portanto é de se supor que a evolução dos primatas passou desapercebida pelos cientistas, o que possibilitou o acidental surgimento da humanidade.
Contudo, em algum momento do passado, o direito dos seres ancestrais sobre a Terra foi colocado em cheque. Vindos de lugares distantes do cosmo, outras formas de vida alienígena descobriram nosso planeta e se interessaram por ele. "Por que?" alguns podem se questionar. A verdade é que não se sabe ao certo por qual razão raças alienígenas desejavam nosso pequeno planeta a ponto de lutar umas contra as outras pela sua posse.
Os Fungos de Yuggoth foram os primeiros a se precipitar das fronteiras do espaço para desafiar os Seres Ancestrais. Eles travaram uma longa e terrível batalha pela hegemonia da Terra e no processo destruíram incontáveis cidades. As placas deixadas com o testemunho desses dias atestam o horror dessa guerra em larga escala. Muito da arte e ciência dos Anciões foi devastada pelos ataques incessantes dos Mi-Go.
Finalmente, a disputa terminou sem um vencedor, mas esse cessar fogo durou apenas até a chegada de outros conquistadores cósmicos que ambicionavam o planeta.
O mais terrível deles, o Grande Antigo Cthulhu e seu séquito, vieram de Xoth com o objetivo de exterminar a Raça Anciã e tomar o planeta. Se a guerra contra os fungos foi terrível, a luta contra Cthulhu e sua horda foi ainda pior e trouxe consequências dramáticas. Incapazes de fazer frente a essa ameaça, os Anciões tomaram uma decisão desesperada: usar os Shoggoth como armas. À princípio isso equilibrou a disputa, as Crias Estelares de Cthulhu eram poderosíssimas, mas três ou quatro Shoggoths podiam fazer frente a elas.
O que os Seres Ancestrais não esperavam é que os Shoggoth tivessem uma evolução espontânea. Até então, eles eram uma espécie privada de inteligência racional, construídos para servir exclusivamente como ferramentas obtusas, incapazes de pensar e tomar decisões por conta própria. O envolvimento dos Shoggoth na guerra, despertou neles um perigoso instinto nato de sobrevivência. Eles passaram a desejar sua liberdade, algo até então impensável, nutrindo um ressentimento cada vez mais profundo contra seus criadores.
Na Era Permiana (270 milhões de anos atrás), pouco depois das estrelas forçarem Cthulhu a se refugiar nas profundezas, os Shoggoths se voltaram contra seus senhores. À princípio em ações aleatórias, mas logo eles organizaram a ponto de promover ataques coordenados. Suas mentes primitivas voltadas para um único objetivo: destruir os Seres Ancestrais.
Horríveis imagens dessa revolta podem ser encontradas nos baixo-relevos resgatados pela Expedição Miskatonic. Com inegável habilidade artística, os escribas esculpiram cenas assustadoras que mostram a extensão da depredação sofrida.
O Professor Dyer (um dos chefes da Expedição Miskatonic) deixou claro em suas anotações o asco que sentiu diante da crueza de detalhes do massacre. Ele escreveu:
"Mutilados, comprimidos, torcidos, a maioria deles decapitados. A maneira como a cabeça em forma de estrela do mar era arrancada de seus corpos evidenciava um prazer mórbido, animalesco, cruel... o sangue escuro da raça ancestral corria pelas ruas das cidades abandonadas".
Apesar de surpreendidos, os Seres Ancestrais retaliaram empregando curiosas armas moleculares e de fissão atômica. A revolta finalmente foi contida, mas a um alto custo de vidas. Incapazes de destruir os Shoggoth mesmo com seus mais poderosos engenhos de guerra, tiveram de se contentar em "reprogramar" suas mentes e torcer para que eles não desenvolvessem novamente o dom de pensar.
Mas com o balanço de poder alterado, a relação entre os Shoggoth e seus mestres nunca mais foi a mesma. Nas eras seguintes os Seres Ancestrais esvaziavam regularmente a mente dos seus servos na esperança de assim evitar uma nova insurreição. O medo que sentiam se transformou em paranóia.
Então, de repente, mudanças acentuadas no clima do planeta colocaram a Raça Ancestral em perigo. A aproximação de uma implacável Era do Gelo causou danos maciços às cidades, um novo desafio que se mostrava difícil de ser contornado. Sabendo que não era possível se manter na superfície enfrentando essa mudança climática abrupta, os Anciões devidiram retornar às profundezas dos mares onde haviam originalmente se estabelecido na aurora dos tempos. Para esse fim, utilizaram os Shoggoth em um último e magnífico esforço de engenharia, construíndo cidades submarinas em regiões insondáveis. Com tudo pronto, migraram para essas regiões abissais deixando para trás um planeta à beira do desastre ecológico.
Mas alguma coisa deve ter dado errado pois a raça ancestral eventualmente retornou à superfície para habitar uma vez mais as ruínas da cidade na Antártida descoberta em 1931. Alguma coisa os levou a preferir o deserto gelado em que seu império havia se transformado ao invés da cidade submarina que construíram com enorme zelo.
As placas não revelam qual o teor dessa catástrofe (ela parece ser até tratada como um tabu), mas tudo leva a crer que foi ela que enfim decretou a decadência dos Seres Ancestrais como espécie.
É possível que os Shoggoth tenham conseguido sua vingança e se libertado violentamente do jugo de seus senhores. É possível também que a cidade nas profundezas ainda exista, habitada por estes mesmos Shoggoth que tiveram milênios para desenvolver sua inteligência e se converter na espécie dominante. Felizmente, nós humanos provavelmente jamais venhamos a saber.
Antigos tomos falam dos Shoggoth e lançam dúvidas sobre a sua existência nos dias atuais. Abdul Al-Hazred afirmou desesperadamente que tais seres não mais existiam, a não ser nos sonhos febris de homens tomados pela loucura. Mas Al-Hazred pode estar enganado, pois vários livros relatam que os Shoggoth não apenas continuam existindo, mas que certos círculos místicos aprenderam como invocá-los e controlá-los. Há rumores que os Profundos também tenham encontrado e submetido Shoggoths à sua vontade, algo arriscado para dizer o mínimo visto o histórico de revoltas desses seres.
Será que os demoníacos Shoggoths um dia poderão retornar para reclamar o mundo da superfície? E se isso um dia acontecer, o que a humanidade poderá fazer diante de uma força que não conhece fraquezas ou limites?
A única coisa que se pode afirmar com certeza é que o melíflua melodia "Tiki-li-li", seria o último som a ser ouvido pela nossa espécie, caso um dia os Shoggoths retornem.
Nota: Fiz um update no nome "Ancião" para "Seres Ancestrais" por uma questão de familiaridade já que esse é o termo usado no livro básico de Rastro de Cthulhu. Ao meu ver, os dois nomes estão corretos para representar o original "Elder Thing".
Infelizmente não consegui uma tradução para o termo "Elderian" que se refere a Civilização dos Elder Things. "Civilização Ancestral" talvez seja uma boa pedida.
Adoro seus posts.
ResponderExcluirMuitas idéias para meus jogos.
Abração.
Muito bom.
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