domingo, 22 de junho de 2014

Navegadores Audazes - As Jornadas dos Vikings ao oriente


Mais de um milênio atrás, temidos saqueadores vindos do norte gelado lançavam medo no coração de todos que viviam na Europa Ocidental. Outros povos nórdicos entretanto se voltaram para o comércio e para rotas que os levavam para o oriente. Com grande ousadia e força de vontade, eles carregavam mercadorias exóticas: peles, âmbar, ferramentas e artesanato para os povos que habitavam as estepes que hoje conhecemos como Ucrânia, Bielorrússia e Rússia. Em suas viagens encontraram mercadores muçulmanos que pagavam pelas mercadorias trazidas de longe com moedas de prata, que os nórdicos não cunhavam, mas que cobiçavam.
Haviam várias rotas, e em meados do século X, uma rede de comércio regular foi estabelecida. Alguns desses comerciantes viajavam por terra e por rio, enquanto outros navegavam pelo Mar Cáspio e Negro, juntavam-se a caravanas e cavalgavam nas costas de camelos até grandes cidades como Bagdá, que na época estava sob o governo da Dinastia Abássida e tinha uma população de quase um milhão. Lá os comerciantes da distante Escandinávia encontraram um empório que ia muito além de seus sonhos, uma vez que nada em suas terras se comparava àquilo.
Para os árabes em Bagdá, a presença dos nórdicos não causava surpresa, uma vez que eles já estavam acostumados a encontrar povos das mais variadas culturas e civilizações. Eles também eram excelentes observadores, sempre interessados em se familiarizar com costumes de terras distantes. Os historiadores abássidas e os enviados do califado anotaram detalhes a respeito desses comerciantes, deixando um valioso registro que lança uma nova luz sobre um capítulo pouco conhecido da história desses povos.
Desde as primeiras invasões nórdicas à Inglaterra no início do século VIII e ao longo dos 300 anos que se seguiram, os navegadores escandinavos se aventuraram mais longe do que qualquer outro povo na Europa. Eles se lançaram ao mar, mapeando o Atlântico Norte, fundaram colônias e até estabeleceram assentamentos na América do Norte pouco depois da virada do milênio. Essas explorações voltadas para o oeste eram realizadas por povos das atuais Noruega e Dinamarca, enquanto jornadas para o leste eram empreendidas predominantemente por suecos que chegavam a destinos tão distantes quanto Kiev e Novgorod, onde a elite que enriqueceu com esse comércio se converteu em governantes e príncipes. Foi nessas terras que eles encontraram pela primeira vez historiadores árabes.
Os estudiosos muçulmanos não chamavam aqueles homens altos, loiros e de pele clara de "Vikings," ou mesmo "nórdicos", preferiam o termo Rus (pronuncia-se "Roos"). A origem do termo é obscura, e embora alguns apontem similaridade com um dialeto sueco, não se sabe ao certo de onde ele surgiu. Ainda assim, escritores bizantinos e árabes se referiam aos comerciantes e colonizadores suecos genericamente pelo nome Rus, que séculos mais tarde daria origem ao nome da moderna Rússia. 

Esse nome era aplicado apenas aos povos do leste. Na França e Sicília, os navegadores nórdicos eram conhecidos como Normandos. Uma guarda de elite formada no Império Bizantino, composta por estrangeiros com descrição similar aos nórdicos era conhecida como Varangianos. Em al-Andalus (a Andaluzia governada pelos árabes), na Espanha Mourisca, eles eram chamados de al-majus, ou "adoradores do fogo," uma referência pejorativa às suas práticas pagãs.
Além da própria Escandinávia, apenas os povos britânicos chamavam os saqueadores de "Vikings," e essa palavra decorre de vik, ou baía, e Viken, como Fjordes eram chamados. Outras fontes acreditam que o termo surgiu no Velho idioma nórdico, significando I-viking, o equivalente a "saqueadores". Mas "Viking" jamais foi um nome que se referiu a todos os povos que habitavam a região de onde eles partiam em suas jornadas. "Nós podemos nos referir a Era dos Vikings, a sociedade Viking, mas é importante entender que nem todos os povos da Escandinávia eram Vikings," diz Jesse Byock, professor de literatura nórdica na Universidade da California em Los Angeles. "Eles próprios utilizavam o termo para se referir a saqueadores que também os atacavam. Certamente o termo não servia para caracterizar fazendeiros e comerciantes que também viviam naquela região".
Na Europa Ocidental, ataques de Viking foram normalmente registrados por monges e padres cujo interesse era retratar aqueles homens como selvagens e sanguinários. E de fato, os saqueadores eram guerreiros ferozes que pareciam não temer nada, capazes de promover massacres e pilhagem. Entretanto, no oriente, as estórias eram bastante diferentes. Os Rus eram considerados exploradores, colonizadores e comerciantes, e embora eles sempre viajassem bem armados, os muçulmanos os descreviam primeiro como mercadores e depois como guerreiros. Os Rus tinham interesse no comércio Abassida e nos dirhams (a moeda corrente) que fluía pela região e que era aceita em praticamente todas as grandes cidades da época (até na China e Índia). Os árabes concordavam com esse comércio de bom grado pois era uma prática rentável para os dois lados. 
Não se saberia muito a respeito dos Rus, se não fosse pelos cronistas muçulmanos que tiveram contato com esses navegadores. De todos, o embaixador Ibn Fadlan, escreveu no século IX, uma série de Risala (Cartas) com o mais completo registro existente. Suas cartas formavam uma espécie de diário que detalhavam seu encontro com os Rus nas imediações do Volga. Ele descreveu mais tarde uma viagem empreendida a uma cidade dinamarquesa na qual revelou detalhes muito interessantes sobre as atividades do dia a dia desse povo. Outros registros, como o al-Mas'udi's, escrito em 943, e o al-Mukaddasi's, composto em 985, também mencionam os Rus de maneira respeitosa, como mercadores honestos e sérios com quem valia a pena fazer negócios. 



Diferente de muitos cronistas europeus, os escritores árabes não guardavam rancor contra os Rus, reação presente nos comentários de vários outros povos. Os relatos árabes possuem um certo afastamento e aos olhos de pesquisadores atuais, são mais confiáveis. Pesquisadores acreditam que os comerciantes da Escandinávia, aqueles que viajavam para o leste, acabaram sofrendo com a má-fama que seus compatriotas dedicados a saquear, destruir e conquistar. Uma vez que os nórdicos dispunham apenas de um alfabeto rúnico, usado majoritariamente em rituais e para marcar lugares, eles não estavam em posição de deixar um registro sobre si mesmos. Suas sagas eram compartilhadas de forma oral e dessa forma, seus heróis e deuses, não seriam conhecidos pela literatura até meados do século XII. 
Muitos dos relatos muçulmanos foram traduzidos para idiomas europeus nos últimos dois séculos, e eles tem se mostrado valiosos para interpretar evidências arqueológicas que continuam emergindo. Centenas de sepulturas da Era dos Vikings e tesouros enterrados, quando descobertos revelam moedas árabes ainda brilhantes, "a moeda que ajudou a abastecer a Idade dos Vikings," de acordo com Thomas S. Noonan da Universidade de Minnesota. Noonan é um dos maiores especialistas na Escandinávia medieval e de sua conexão com o mundo árabe, e um especialista na história da numismática.
É aceito como fato que o dirham ajudou a atrair o interesse dos navegadores nórdicos para o oriente. Prata se tornou a forma favorita de troca, mas com poucas fontes do precioso metal nas florestas do norte, eles tiveram de buscar em outros lugares. Mercadores árabes começaram a circular moedas de prata na região do Volga no século VIII, e comerciantes, desejando obter aquele tipo de pagamento pelas suas mercadorias, seguiram para o Báltico com suas embarcações abarrotadas.



Na Russia, eles foram pioneiros em desbravar o sistema de rios, rumando de um tributário para o outro, descendo corredeiras e enfrentando tribos de nômades até atingir os centros de comércio, sobretudo os mercados controlados pelos Khazars. Estes mercadores turcos haviam se tornado um poder dominante nas estepes do Cáucaso, e eles realizavam comércio com o mundo islâmico por mais de 300 anos. Aqui, em uma rede de rios navegáveis, os Rus suecos estabeleceram o primeiro contato com os árabes, persas e gregos. Daqui, alguns seguiram adiante até o Mar Negro, chegando a "Sarkland," uma terra que hoje podemos relacionar ao Azerbaidjão e norte do Irã; até a Fortaleza de Sarkel, às margens do Mar Negro; e as terras que os mercadores nórdicos chamavam de serk, significando "silk" (ou seda) para todos aqueles que pagavam grandes quantias.
As referências mais antigas sobre o contato entre árabes e nórdicos foi feito no início do século IX por Ibn Khurradadhbih, um mercador que trabalhava para o Califa al-Mu'tamid e servia como conselheiro político. Em 844 ele escreveu sobre as suas viagens e sobre os saqalibah, um termo normalmente usado para definir povos europeus de pele clara. Ele contou ter entrado em seus barcos e descreveu como eles eram marinheiros competentes. Descreveu também suas mercadorias: peles de castor, de lontra e arminho, armas de boa qualidade, artigos de couro curtido e madeira de qualidade trazidas dos recantos mais distantes. Ele descreveu que os Rus faziam transporte pelo mar, mas que também se aventuravam em terra, alugando ou comprando camelos que os levavam em caravanas até cidades na costa do Mar Cáspio. Alguns deles chegaram até Bagdá, contando com guias que falavam o idioma e serviam de intérpretes.
Bagdá, era a mais bela joia do Império Abássida. Uma cidade circular com 19 quilômetros de diâmetro, embelezada por parques, palácios de mármore, jardins, promenades e mosteiros. O mercador do Golfo, geógrafo e enciclopedista Yakut al-Rumi descrevia a cidade como um verdadeiro paraíso sobre a terra com todas as comodidades que a tornavam ela um dos lugares mais civilizados de sua época. 

Ela era muito mais avançada do que qualquer coisa da Europa. Os Rus nunca haviam visto nada como aquilo. Suas cidades não passavam de vilarejos se comparadas àquela metrópole. De fato, eles não tinham prédios maiores do que dois andares, seus muros eram baixos comparativamente e seus palácios estavam mais para casas modestas se comparadas. Ibn Rustah, um historiador da época descreveu que estrangeiros ficavam intimidados e fascinados com a grandiosidade de Bagdá, uma cidade que recebia visitantes de todos os cantos do mundo. Segundo Rustah, os Rus que visitavam Bagdá ofereciam excelentes lâminas e espadas, calças e vestimentas confortáveis e peles finas. Eles eram leais uns aos outros e preferiam a companhia de seus conterrâneos: "Sua maior preocupação é realizar comércio e retornar para suas casas, assim que negociavam suas mercadorias e recebiam seu pagamento, preparavam-se para zarpar de volta para seu porto de origem." ele escreveu, "Eles preferem moedas, que muitas vezes furam e prendem em cordões ao redor da cintura."
Os comerciantes nórdicos davam valor às moedas e aprenderam a usar o sistema de peso árabe para medir a quantidade de prata que tinham. Muitas vezes, a prata era derretida em lingotes ou em braceletes que podiam ser transportados mais facilmente. O mercado consumidor para produtos trazidos do norte da Europa foi aquecido por nobres que desejavam artigos luxuosos como pele de raposa negra, capas de arminho e botas com interior de pele de esquilo. Os senhores mais ricos e suas damas podiam pagar verdadeiras fortunas por esses artigos distintos. Outros itens comercializados incluíam cera, mel, couro de cabras, nozes secas, madeira, dentes de peixes e armas. Âmbar também era algo muito desejado, e embora os Rus não tivessem abundância dessa resina em suas terras, aprenderam a comprar carregamentos durante suas viagens e vender com um grande lucro para seus clientes árabes. Havia também espaço para o comércio de escravos, já que árabes tinham interesse de possuir escravos brancos, sobretudo como criados pessoais.

Mas e Ibn Fadlan especificamente? Quem foi o diplomata árabe que conheceu os Rus e escreveu o maior relato sobre eles de quem se tem notícia? Esse é o material da segunda parte desse artigo.

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