quarta-feira, 18 de março de 2015

La Piel de Toro - Livro de Call of Cthulhu explora a Espanha dos anos 1920

Meu conhecimento do idioma espanhol não é lá grandes coisas, mas ao menos é o suficiente para entender o básico de um texto com a providencial ajuda de um dicionário.

O que não deixa de ser uma boa, pois os espanhóis publicam material de RPG de primeira.

Uma dos livros mais legais que encontrei recentemente perambulando pela internet é um guia completo a respeito da Espanha em 1920. O livro intitulado "La Piel de Toro" (A Pele do Touro) é simplesmente sensacional dentro de sua proposta. Trata-se de um manual com tudo que se precisa saber à respeito da vida na Espanha dessa época com direito a história nacional, a importância do país no cenário mundial, os acontecimentos que levaram à sangrenta Guerra Civil e uma infinidade de detalhes e curiosidades sobre os costumes e práticas locais que facilitam (e muito) a tarefa de conduzir um cenário nesse ambiente riquíssimo.

Além disso, trata-se de um livro específico para Call of Cthulhu, portanto há uma profunda análise das principais lendas, das criaturas fantásticas que fazem parte do folclore ibérico e de seres mitológicos que habitariam essa região. Há uma boa quantidade de novos monstros e horrores, acompanhados, é claro, pelas entidades, cultos e aberrações aos quais já estamos acostumados. É uma ótima pedida para quem quer variar um pouco o local de suas avenuras, dando um merecido descanso para os EUA e Inglaterra, os dois países que tradicionalmente hospedam os horrores lovecraftianos.

Escrito por um respeitado autor espanhol chamado Ricard Ibañez, "La Piel de Toro" é dividido em sete grandes capítulos, cada um cobrindo um aspecto específico sobre a ambientação ou sobre a sociedade espanhola. Faz realmente muita diferença ter em mãos um trabalho assinado por um autor que nasceu e foi criado no país. Fica claro ao leitor que Ibañez sabe sobre o que está escrevendo e esse grau de conhecimento ajuda a afastar qualquer visão estereotipada ou preconceituosa que um autor estrangeiro poderia ter.


O livro começa com uma detalhada descrição da sociedade espanhola, focalizando nas velhas oligarquias que detém as riquezas e influência, passando para as classes trabalhadoras das grandes cidades e finalmente os camponeses. A diferença entre a vida nos grandes centros urbanos industrializados e o interior agrícola, recebe um grande destaque. Há várias ocupações que são devidamente adaptadas a realidade da Espanha da década de 20, enquanto outras como anarquista, cigano, camponês e Guarda Civil (uma das várias facetas da polícia local) são apresentadas em detalhes. Estas opções servem para conceder a ambientação um sabor diferente. Mesmo as ocupações tradicionais descritas no livro básico são adaptadas para se encaixar aos investigadores espanhóis.

Os movimentos intelectuais e as correntes ideológicas mais importantes, além da conturbada atmosfera política e religiosa são discutidas à seguir ajudando a compreender o panorama em um país prestes a ser varrido por uma das mais terríveis guerras do início do século XX. Ibañez consegue se aprofundar nesses temas sem tornar a leitura exaustiva, muito pelo contrário, sua narrativa ajuda a compor um panorama histórico para a ambientação com toneladas de fatos, biografias de figuras ilustres, eventos importantes e lugares essenciais. Numa boa, eu aprendi muito mais a respeito da história recente da Espanha lendo esse livro do que através de qualquer outro.

Mas Piel de Toro vai além e mergulha na moda, culinária, artes, recreação, música e cinema do país apresentando uma nação com duas facetas distintas: uma disposta a abraçar a modernidade e outra arraigada nas velhas tradições. A Espanha de Piel del Toro é um caldeirão borbulhante de disputas internas, onde os Mythos encontram espaço para florescer.

Uma vez que se trata de um livro de Call of Cthulhu, um capítulo inteiro é dedicado aos aspectos mais profundos da sanidade e loucura na Espanha. O que significa ser legalmente insano no país? Quais as implicações legais? Onde é possível buscar tratamento, quais as instituições e quais os tratamentos disponíveis?

Madri, Barcelona, Sevilha e San Sebastian são as quatro cidades que recebem um maior enfoque. Lendo esses capítulos, o Guardião encontrará recursos mais do que suficientes para lançar os jogadores nas ruas, distritos e praças dessas cidades. Uma sacada genial foi inserir entre as páginas notícias de jornal (verdadeiras e fabricadas) que ajudam a formar um compreensivo painel sobre a época, sem falar que permitem a criação de ótimos recursos.

O autor não esqueceu também de falar das colônias que estavam sob domínio do Império Espanhol em vias de se esfacelar. Digno de nota é o tópico à respeito da brutal guerra entre Espanha e Marrocos em que os militares espanhóis ganharam valiosa experiência em batalha massacrando rebeldes no Norte da África. Experiência essa que seria crucial no decorrer da Guerra Civil.

Não bastasse todo esse vasto material de referência, La Piel del Toro ainda tráz seis cenários prontos. A qualidade dos cenários varia, mas de um modo geral, fazendo algumas alterações na estrutura é possível integrá-los em uma mini-campanha, ainda que nem todos sejam dedicados ao Mythos. A última aventura especialmente, "La Penúltima Verdad" é uma excelente estória que leva os investigadores da Espanha até o Norte da África em uma narrativa cheia de reviravoltas e pistas.

Grande material!

La Piel de Toro é um excelente exemplo de como um manual de referência pode ser completo sem ser exaustivo. Uma boa pedida para aqueles que gostam da série "Secrets of" que a Chaosium editou por algum tempo. A Chaosium aliás, deu o seu aval a "La Piel", sendo que o prólogo é assinado pelo próprio Sandy Petersen (criador do sistema BRP) que calorosamente proclamou: "Cthulhu, por fin, había llegado a España".

Para aqueles que procuram novos ares ou desejam situar seu jogo em um local diferente, a Espanha dos anos 20 é um terreno fértil para horrores e afins. Uma vez que estou planejando conduzir um cenário que se passa nos dias negros da Guerra Civil Espanhola, esse livro será de suma importância.

Ah sim, em tempo:

Fiquei curioso à respeito do título incomum: "La Piel de Toro". Resolvi fazer uma pesquisa sobre as origens desse termo. Ao que parece, a expressão se refere ao formato do território da Espanha que se assemelha a silhueta de um touro. Não tenho tanta certeza, mas com a importância que os espanhóis dedicam a esses animais, nada mais justo que ele seja de alguma forma incorporado a um símbolo nacional.

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