Entre os temas mais recorrentes na ficção de horror, narrativas que envolvem a ideia de canibalismo tem um lugar de destaque entre as mais aterrorizantes. A despeito da carnificina, do tabu, da reprovação que o ato em si encerra, o tema tende a ser tratado com um misto de repulsa e fascínio. Quando se fala de canibalismo, uma figura que se tornou pop nas últimas décadas vem à mente, a do genial médico Hannibal Lecter, personagem de vários romances de Thomas Harris. Lecter, ainda que seja um serial killer monstruoso consegue atrair a atenção a tal ponto que muitos acabam torcendo por ele.
No horror moderno persiste a premissa de que o canibal age a despeito da necessidade, ele mata e se alimenta de suas vítimas movido pela sua mente degenerada, pela loucura, pelo desejo proibido de satisfazer uma sede nada metafórica de sangue.
Embora Lecter permaneça como o mais popular canibal do cinema e literatura, outros estão presentes no gênero em várias formas. Um dos maiores nomes entre os aficionados pelo horror é o recentemente falecido diretor Wes Craven, que trabalhou o conceito de uma família de canibais vivendo no deserto de Nevada. O filme era "Quadrilha de Sádicos" (The Hills Have Eyes de 1977). Nele uma família em viagem é cercada e atormentada por canibais implacáveis que atacam todos aqueles que passam pelo seu território.
O que poucas pessoas sabem é que a premissa de Quadrilha de Sádicos, a de canibais vivendo em túneis subterrâneos, ideia que é repetida em "Mortos de Fome" (Ravenous - 1998) e "Abismo do Medo" (The Descent - 2005) é baseada em uma lenda muito antiga. Trata-se de um dos mitos mais antigos sobre o canibalismo, devidamente entranhado no folclore das Ilhas Britânicas.
Ao sul da pequena cidade de Giran, na Escócia, fala-se de um curioso surto de desaparecimentos que teve início nos primeiros meses de 1500. Aldeões lá, assim como em localidades próximas como Ballantrae, começaram a perceber que pessoas sumiam na calada da noite. Amigos, vizinhos, familiares... Todos pareciam conhecer alguém que simplesmente havia sumido sem deixar vestígio. Grupos se reuniam para procurar aqueles que sumiam, mas as buscas não resultavam em nada. Sendo uma região escura e isolada, com profundas ravinas e grutas inexploradas, muitos culpavam a geografia pelos acontecimentos. No entanto, era difícil conceber que mesmo em um lugar tão ermo tantas pessoas poderiam desaparecer da face da terra sem deixar qualquer pista.
Durante uma busca, um grupo encontrou a abertura para uma caverna subterrânea que à noite era encoberta pela maré. O lugar chamado Bannane Head, era tido como assombrado, embora muitos presumissem que os incômodos ruídos, semelhantes a murmúrios e gemidos eram causados pela água invadindo as cavernas mais fundas. Com certeza, ninguém poderia viver naquele lugar, quanto mais um ser humano. Ainda assim, parecia haver algo errado naquela caverna, algo que causava arrepios e fazia as pessoas olhar com uma expressão de medo para aquela escuridão profunda.
Algum tempo depois, um grupo de pessoas que retornavam de um festival após o anoitecer se depararam com uma horrenda cena em uma trilha rural que levava ao seu povoado: um casal havia acabado de ser atacado, o marido estava morto e a esposa lutava para sobreviver. Os agressores ainda estavam no local: pessoas vestindo trapos, roupas imundas que ocultavam seus corpos cobertos de feridas e pústulas. Carregavam facas que haviam usado para ferir suas vítimas, enquanto outros traziam machadinhas que eram empregadas na horrível tarefa de destrinchar, esquartejar e separar pedaços de carne dos ossos. As testemunhas ficaram apavoradas. Era uma visão absurda que remetia às descrições do próprio inferno.
Quando descobertos, os canibais correram em disparada carregando sacos pingando sangue, contendo grotescos nacos de carne humana recém cortada. Tamanho foi o choque que a maioria se viu incapaz de empreender uma perseguição. Um dos homens, no entanto, foi mais rápido e enquanto os maltrapilhos fugiam, ele conseguiu arremessar uma pedra que acertou um deles em cheio. O sujeito caiu desmaiado com o impacto.
Levado para a aldeia de Giran, o prisioneiro que a princípio não parecia compreender o idioma inglês se mostrou perfeitamente cooperativo tão logo o ameaçaram com ferros quentes e lâminas afiadas. Ele revelou que seu nome era Canen e que fazia parte de um clã que escolheu viver isolado nas cavernas naturais que pontilhavam o litoral. O bando tinha seus próprios costumes, sua própria crença religiosa e seus próprios hábitos que incluíam matar e devorar os cadáveres das pessoas que conseguiam capturar. O clã era composto de uma dúzia de homens, mulheres e crianças que só saíam à noite para caçar. Eram todos parentes de sangue, casavam entre si o que havia gerado gerações de pessoas com deformidades gritantes. Não obstante, tinham seu próprio dialeto e seguiam o mais velho dentre eles. Os canibais haviam se adaptado bem à vida nas cavernas e viam a antropofagia como algo perfeitamente natural.
Quando perguntado a respeito de seus motivos, Canen simplesmente sorriu e disse que era assim que ele e seus antepassados viviam desde o princípio. A carne dos mais fracos, sustentava os demais. Eles podiam até comer peixe ou a carne de algum animal, quando não encontravam uma "presa humana", mas nada era mais saboroso do que a carne fresca de humanos.
Canen relatou que se tivesse tempo, ele e seus familiares teriam carregado os dois corpos de suas vítimas e desaparecido com os cadáveres, arrancando o que precisavam dele e lançando os restos em alguma ravina. Já haviam, salientou sem demonstrar qualquer arrependimento, que haviam feito o mesmo inúmeras vezes.
A notícia do que havia acontecido se espalhou rapidamente por toda região. Canibais, um clã inteiro deles eram os responsáveis pelos trágicos desaparecimentos. Diz a lenda que o Rei Jaime I da Inglaterra se sentiu pessoalmente ultrajado pela notícia e que ordenou que os culpados pelo horror fossem encontrados e eliminados. Um destacamento inteiro foi enviado para a região com ordens de revistar cada caverna, cada despenhadeiro até que o esconderijo dos amaldiçoados canibais fosse encontrado. O prisioneiro, Canen, acabou morrendo poucos dias depois de sua captura, garantindo que o covil dos canibais mudava constantemente e que eles poderiam estar em qualquer lugar.
Dias se passaram e tudo o que o destacamento real encontrou foram os restos de uma dúzia de pessoas desaparecidas nos últimos anos. Muitos dos cadáveres apresentavam claros sinais de terem sido esquartejados e deliberadamente descarnados. O macabro serviço dos canibais açougueiros.
Finalmente, alguém se lembrou da caverna de Bennane Head e suspeitou que o lugar poderia esconder o Clã degenerado. A caverna, acessível apenas por uma acidentada trilha que margeava o rochedo tinha mais de 60 metros de profundidade. O grupo encontrou logo na boca da caverna rastros e alguns restos de ossos que haviam sido lançados no mar, mas que a maré trouxe de volta. Avançando pelos corredores subterrâneos, dezenas de ossadas humanas começaram a surgir descartadas no chão rochoso.
Eventualmente, o objeto da caçada foi encontrado: nas profundezas da caverna, ficava o covil do Clã Beane, liderado por um repulsivo ancião que um dia atendeu pelo nome de Alexander "Sawney" Beane. Na companhia de seus parentes (a maioria gerado através do incesto), ele havia regredido a um estado semi-primitivo que contemplava o canibalismo como um meio de vida. O chefe foi descrito como um homem já velho, de pele branca macilenta e longos cabelos brancos como giz, com uma expressão selvagem oculta sob o azul pálido dos seus olhos. Ele e os demais vestiam apenas trapos sujos que lhes faziam parecer leprosos, e por isso eram evitados por todos que os encontravam.
Disseram mais tarde que Beane havia sido um marinheiro, um viajante, um soldado e que a loucura era parte de sua herança ancestral. Todos em sua família haviam em algum momento enlouquecido. Ninguém tinha notícia do sujeito há mais de duas décadas, tempo que utilizou para se estabelecer, junto de sua família, nas cavernas. Beane era um monstro, um tirano que brutalizava os demais e cuja autoridade jamais era contestada.
Três dos canibais foram mortos com disparos de mosquete ou golpes de espada quando investiram contra os agentes reais. Outros tentaram resistir ao avanço dos soldados, mas quando ficou claro que estavam em minoria e que não havia escapatória, se renderam.
Diz a lenda que Alexander e os membros do seu clã foram sumariamente executados sem que fossem a julgamento. Um representante da Coroa teria afirmado que as leis permitiam que ele assim procedesse uma vez que o crime cometido podia ser enquadrado como alta traição. A crônica da época é sucinta em descrever como ocorreu a execução, um único documento sobrevivente afirma que a mulher de Beane e suas filhas foram incendiadas como tochas vivas. Piche foi espalhado em seus corpos e em seguido elas foram consumidas por um inferno de chamas. Os homens Beane foram decapitados depois de serem envenenados. Os corpos então passaram por um cuidadoso esquartejamento, sendo a seguir atirados no mar.
A cabeça de Alexander Beane foi colocada em um barril de carvalho e enviada para Londres. Preservada com dentes de alho em sua boca e uma solução de cânfora, ela chegou em perfeito estado até Jaime I. Dizem que quando se deparou com o troféu arrancado do canibal, o Rei por pouco não desmaiou. Alguns acreditam no rumor de que a boca de Beane se moveu minimamente em um sinistro sorriso enquanto o monarca o estudava. Verdade ou mentira, o Rei ordenou que a cabeça fosse destruída ao invés de enviá-la para a apreciação pública na ponta de uma lança.
Historiadores e folcloristas nos dias atuais enxergam elementos similares entre as lendas sobre o Clã Beane e um açougueiro chamado Andrew Christie que viveu alguns anos antes. Esta história, datando de meados de 1300, ocorreu durante os anos da Grande carestia de 1350-56. Christie era o líder de um bando de catadores e carniceiros que viviam na região das Montanhas Grampian. Em dado momento, a falta de alimentos os forçou ao canibalismo, consumindo aldeões para sobreviver.
Um trecho presente num livro escocês de Provérbios do século XVII, menciona a lenda de Christie da seguinte forma:
"Diziam que o monstro Christie aguardava pela passagem de pessoas, em estradas isoladas. Ele e seu bando de desesperados derrubavam homens e mulheres, não se importavam com que quer que fosse, todos podiam ser vítimas. Os corpos eram arrastados para lugares ermos onde eram destrinchados para o preparo de cozidos que os alimentassem. Dizem que Christie morreu muitos anos mais tarde, como um homem casado e próspero mercador em Dumfries. Por séculos, a mera menção de Christie era o suficiente para silenciar a mais barulhenta criança".
Pouco mais se sabe a respeito das lendas de canibalismo na Escócia, mas é provável que em períodos históricos de fome, indivíduos desesperados tenham se entregue a tais práticas, consideradas odiosas pela maioria das civilizações humanas. Durante a Grande Fome que varreu a Irlanda no século XVIII, casos isolados de canibalismo foram relatados, o mesmo tendo ocorrido na Ucrânia durante o horrível Holodomor promovido pelos Soviéticos no século XX. Mas diferente dos pobres infelizes nesses tristes casos historicamente comprovados, os Beane e Christie pareciam se deliciar com carne humana, nem um pouco constrangidos de ingressar nessa prática medonha.
Mas até que ponto as lendas de canibais contadas na Escócia há séculos são verdadeiras?
Embora centenas de pessoas tenham sido supostamente vítimas do Clã Beane, existem poucas informações e documentação corroborando os acontecimentos. Por um lado, não é estranho haver poucos registros do ocorrido, afinal o incidente envolvendo os Beane ocorreu no início do século XVI. Mesmo assim, deveria haver menções sobre as mortes em algum registro civil, não há, contudo, praticamente nada. O que se sabe e presume-se como verdadeiro sobre o incidente vem de rumores e da tradição oral responsável por disseminar a narrativa com pequenas variações.
No caso das histórias não serem inteiramente verdadeiras, existe a possibilidade de que as macabras lendas de canibais tenham sido construídas sobre tradições culturais e narrativas colhidas de diferentes fontes sobre esses tempos difíceis. Nesse contexto podem ter ocorrido apenas casos isolados de canibalismo. Mas como saber ao certo?
A despeito da origem e veracidade dos incidentes Beane e Christie, tais histórias serviram para alimentar lendas que inspiraram filmes como "Quadrilha de Sádicos" séculos mais tarde. Talvez o terror a respeito de canibais tenha sido inclusive difundido por essas lendas em especial que ganharam notoriedade a partir do século XVIII sendo incluídas em vários compêndios a respeito do folclore das highlands.
Sensacional o blog!
ResponderExcluirmuito material pra ler, já que só o encontrei ha poucos dias!
agradeço por todas matérias!
abraço!
Acabei de conhecer o Blog.Parece ser muito bom :)
ResponderExcluirLembro que em Vampiro a Mascara o Cla Giovanni tinha uma linhagem escocesa que era composta de canibais :)
ResponderExcluirEdgar Allan Poe abordou o tema em "A narrativa de Arthur Gordon Pym". TEM uma passagem quando os sobreviventes do brigue "Grampus" decidem sacrificar um deles para que os outros possam viver. Sinistro.
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ResponderExcluirfaltou informação... e quem para no local exato - como uma armadilha mesmo- começa a sofrer dos mesmos sintomas que levou a vitima anterior a morte, ou seja, fome.
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