sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A Sombra sem Face - Anatomia do Noitesguio


A escuridão perene da noite esconde mistérios e perigos que nem podemos imaginar. E dentre os maiores perigos que as noites sem lua reservam aos viajantes que trilham por sendas místicas, estão os enigmáticos Noitesguios.

Essa raça de humanoide alados pode ser encontrada tanto na Terra dos Sonhos quanto no Mundo Desperto, sendo predominantes na primeira, onde habitam o Reino subterrâneo, localizado abaixo das montanhas que limitam Inganok e Leng. Seus domínios são imersos em sombras estígias onde a claridade parece ser engolfada pelas trevas. Lá, nas profundezas, eles se espalham pela abóboda das cavernas e nas fissuras, buscando tocas e nichos nos quais se confundem com bolsões de negritude perpétua. No Mundo Desperto eles preferem lugares desolados, o mais distante possível da presença da humanidade. Cavernas, grutas ou recessos são seu habitat ideal, contudo eles podem adotar antigas ruínas e moradas abandonadas como covil temporário. Não raramente o coração de florestas especialmente aquelas mais densas com copas fechadas, oferecem a proteção necessária para suportar a luz do sol que lhes desagrada.

Se um viajante invade o território de um Noitesguio, a criatura pode reagir agressivamente como uma fera desafiada. Eles são conhecidos por planejar emboscadas nas quais se valem de sobrenatural velocidade e furtividade, saltando sobre o oponente, agarrando-o e voando para o céu carregando-o como um fardo. Se a presa se mostra recalcitrante e tenta reagir, o Noitesguio simplesmente a solta assim que consegue ascender alto o bastante para causar danos pela queda. Vítimas que não reagem, são levadas para lugares afastados, geralmente inóspitos nos quais despertam sem reconhecimento de como lá chegaram ou de como retornar. Na Terra dos Sonhos, o Vale de Pnath é um dos lugares favoritos, e uma vez lá, os cativos se veem perdidos sem saber como retornar a civilização.


O Necronomicon menciona os Noitesguios como companheiros fiéis de feiticeiros, quase como os notórios familiares, seres com os quais bruxos se associam. Contudo, eles não são meros consortes, e menos ainda escravos dos caprichos daqueles que singram as sendas do sortilégio. Muitos alegados feiticeiros cometeram o erro fatal de acreditar que invocar um noitesguio era suficiente para lhes impingir os grilhões da servitude. Nem mesmo o famoso Livro dos Mortos fornece o ritual para dominar e compelir essas criaturas e quando elas decidem atender as ordens de um bruxo é porque tem seus próprios motivos ocultos. Não obstante, é sabido de poderosos taumaturgos que comandavam não apenas um, mas hostes inteiras desses horrores voadores. Em que circunstância tal coisa se dava, permanece um mistério, ainda que o favor direto de divindades ofereça uma explicação razoável.

Além do Necronomicon, o Unausprachlicten Kulten e o Ghorl Nigral são outros compêndios esotéricos que dedicam algumas páginas a natureza dos Noitesguios. Todos os tomos são unânimes em reconhecer que esses seres seguem majoritariamente Nodens, o Senhor do Grande Abismo, mas que eles estão de alguma forma, também aliados aos Povos Carniçais, a Yegg-Ha, aos Lordes de Luz e Yibb-Tstll, Aquele que Aguarda. O promíscuo consórcio dos noitesguios com diferentes facções dos Mythos, aliás, parece ser objeto de interesse de Von Junz que elabora uma cuidadosa análise de entidades que compelem os noitesguios à condição de servitude. Sabe-se através dos textos de Von Junz que eles são tão aliados com Nodens que comanda revoadas inteiras de noitesguios, quanto com Yibb-Tstll que oculta sob seu manto inúmeros deles, forçados a sorver o leite negro que goteja das suas milhares de tetas entumecidas. 

Quais são as razões dos Noitesguios para servir este ou aquele mestre, nem mesmo Von Junz, conseguiu determinar. Já foi sugerido que os noitesguios são nativos do Grande Abismo, mas que quando capturados e levados a outro senhor podem ser submetidos à vontade deste. Se isso for verdade, é possível que um destes seres possa ser compelido a servir um mestre humano.


O Ritual de Invocação do Noitesguio só pode ser realizado à noite, de preferência numa noite sem lua na qual a escuridão predominante se faz um requisito. O feiticeiro precisa ter uma pedra na qual foi consagrado o Símbolo Ancestral. Após realizar as invocações iniciais nas quatro direções cardeais, o feiticeiro deve recitar palavras específicas em pelo menos sete idiomas obscuros ou línguas mortas usadas na Terra dos Sonhos. As palavras servem para simbolicamente destrancar os portais e permitir o acesso dos noitesguios para nossa realidade. Se tudo correr conforme o esperado, o som de grandes asas será ouvido e nesse momento, o Símbolo Ancestral deverá ser erguido diante da criatura que respondeu ao chamado.

O noitesguio então tocará o chão com suas asas, ficando impassível, aguardando o feiticeiro concluir o Ritual. Existem feiticeiros que invocam esses seres alados para servirem como guardiões ou mensageiros, outros mais ousados, valem-se dos noitesguios como montarias afim de carregá-los por grandes distâncias. Uma vez que o ritual não compele a criatura à servitude, esta pode se negar a desempenhar a função esperada e simplesmente partir. Por alguma razão, entretanto, a maioria deles concorda em auxiliar o invocador por razões que não podemos inferir.


É provável que existam outros Rituais de Invocação, mas o descrito acima é largamente o mais utilizado pelos bruxos.

A aparência medonha dos noitesguios encontra eco na descrição de seres demoníacos e horrores diabólicos presente em várias religiões. Não raramente, estas criaturas foram tratadas como provenientes do Inferno e vistos como os grandes inimigos da humanidade. O fato de muitos cabais de feiticeiras na Europa medieval terem aprendido o Ritual de Invocação que permite atrair os noitesguios, reforçou a crença de que as feiticeiras estavam em conluio com seres demoníacos. O mesmo ocorreu durante a Caça às Bruxas no Novo Mundo, em especial Salem. Não há nada entretanto que ligue estas criaturas com alegadas entidades demônicas.

Um típico noitesguio tem um corpo humanoide bastante magro, quase ao ponto de ser esquálido, decorrendo disto seu nome (a conjunção das palavras "Noite" e "Esguio" - ou no original Nightgaunt). O noitesguio é leve, seus ossos e carne não passam de 30 quilos, sendo as asas sensivelmente mais pesadas. As pernas e braços são finos, ainda que o tórax seja consideravelmente avantajado compondo um porte físico incomum.


Nas costas do noitesguio projeta-se um par de asas que embora se assemelhem à dos quirópteros, encontra sensível diferença com estes, sobretudo na textura e espessura. Enquanto as asas dos morcegos são membranosas, as do noitesguio são coreáceas, extremamente pesadas, resistentes e dotadas de músculos. Essas formidáveis asas que podem atingir uma envergadura de até 2,5 metros quando abertas, são independentes dos membros superiores. Quando em movimento, elas são capazes de impelir o noitesguio rapidamente, permitindo a ele atingir a velocidade de até 350 quilômetros por hora. Entretanto, ele não é capaz de sustentar esse esforço por muito tempo, administrando sua velocidade de voo de acordo com a distância que pretende percorrer. De forma geral, eles podem manter uma "velocidade média" (de 100 Km/h) por cerca de seis horas até precisar descansar. Noitesguios não possuem fisiologia adaptada ao espaço, portanto, diferentemente dos Byakhee e Caçadores Noturnos, não são capazes de deixar a atmosfera.

A pele dos noitesguio é lisa sem nenhum sinal de pelo, penas ou escamas. O revestimento de seu corpo pode ser comparado em textura e densidade a pele de cetáceos, sendo a correlação mais aproximada a da baleia jubarte. Essa camada protetora extremamente lisa é dotada de micro-poros que produzem uma substância oleosa responsável por proteger a criatura de variações de temperatura. Um noitesguio pode suportar tranquilamente variações climáticas em um amplo espectro positivo e negativo. O revestimento também age como um invólucro impermeável contra água, poeira, neve, sujeira e quaisquer outras substâncias que poderiam aderir a ele. Negro como piche, a pele da criatura se ajusta às sombras, permitindo a ele literalmente desaparecer em um ambiente noturno, como uma sombra silenciosa .

Estudiosos assumem que o noitesguio é incomodado pela luz do sol que os deixa cegos. Na verdade, a luz do sol incomoda a pele da criatura que não é adaptada a exposição direta do espectro ultra-violeta. Via de regra, a exposição a luminosidade é desagradável e por isso seus hábitos são noturnos, contudo, essa exposição não se reflete em ferimentos como sugerem alguns teóricos dos Mythos. Expor a criatura ao sol não resulta em nada além de irritação.


Conforme mencionado, o noitesguio possui dois pares de membros, os braços são longos e dotados de tendões retesados, enquanto as pernas são curtas e atarracadas. Parece óbvio que as pernas da criatura não foram feitas para movimentação terrestre, sendo usadas para agarrar e carregar. Todos os membros terminam em longos dedos finos que por sua vez são dotados de unhas afiadas. Quando em posição de relaxamento no solo, o noitesguio apóia as terminações de suas asas - semelhante a polegares, no chão e usa sua longa cauda como sustentação para o restante do corpo. Essa é a posição que ele adota quando é invocado. Ao se esconder, eles tendem a se pendurar de ponta cabeça envolvendo-se em suas enormes asas numa posição semelhante a adotada por morcegos.

A cabeça do noitesguio talvez seja responsável pelas suas peculiaridades mais fascinantes e bizarras. A face da criatura é destituída de feições: não há olhos, não há nariz ou cavidades nasais, não há orelhas ou ouvidos e nem mesmo boca. O "rosto" da criatura é uma superfície lisa e lustrosa, sem relevo, com a pele esticada como uma máscara de couro negro esticada sobre o crânio. O topo da cabeça é coroado por dois chifres recurvos em formato de "V", projetando-se a partir da testa. Espiralados eles vão afinando até as pontas que terminam de forma aguda. O fato da criatura não possuir feições desperta uma sensação inquietante na maioria das pessoas que os encontram, um misto de terror primitivo e confusão que pode estar conectado com a ausência premente de empatia. Humanos aprendem desde cedo a ler as feições alheias, a ausência das mesmas é algo extremamente perturbador.

Incrivelmente enigmáticos, não se sabe praticamente nada a respeito de como o noitesguio absorve comida e líquidos ou se tais nutrientes são necessários. Alguns estudiosos postulam que talvez eles se alimentem da escuridão, embora essa noção pareça ridícula. Uma vez que de fato eles não possuem boca ou estômago, nem cloaca ou órgãos excretores visíveis, não é possível presumir nada sobre seus hábitos. Similarmente, nada se sabe a respeito de seu ciclo reprodutivo ou sua expectativa de vida.

A cauda do noitesguio também merece ser citada. Longa e musculosa, ela fornece equilíbrio, mas é usada com distinção quando uma presa é capturada. Existem menções a criaturas usando a cauda de forma preênsil, com o intuito de agarrar objetos ou pessoas, contudo há relatos desse apêndice ser usado para um fim inusitado: fazer cócegas. A cauda possui laterais serrilhadas que a criatura esfrega suavemente sobre a pele de suas presas produzindo súbitos arrepios. Não se sabe exatamente porque eles fazem isso, mas esse comportamento curioso tende a ser recorrente em vários espécimes.

Seres sociais, ainda que pouco inteligentes, os noitesguios costumam viver em grupos, sendo que nas terras oníricas hostes com dezenas, ou mesmo centenas deles não são incomuns. É possível que eles tenham desenvolvido um tipo de comunicação telepática, visto que conseguem transmitir informações entre si. Incapazes de falar, alguns aprendem a fazer sinais simples que podem ser interpretados por humanos. Embora não tenham olhos, ouvidos ou nariz, é provável que os noitesguio possuam algum tipo de sentido de orientação espacial que substitui a visão, audição e faro. Essa percepção também lhes permite identificar com acuidade a proximidade dos grandes Pássaros Shantak seus inimigos naturais nas Terras do Sonho.

Obviamente muitas pesquisas precisam ser realizadas afim de compreender a natureza e as habilidades dessas criaturas. Infelizmente, a captura de espécimes é tarefa extremamente difícil e os poucos obtidos dessa maneira não sobreviveram ao cativeiro. Após a morte, a carcaça do noitesguio tende a se desintegrar aceleradamente, desfazendo-se em questão de minutos em uma substância escura como tinta.


Notas sobre os Noitesguios: Essas criaturas figuram no Ciclo dos Sonhos de Lovecraft e também em algumas histórias dos autores dos Mythos de Cthulhu. Lovecraft escrever o poema "Night-Gaunts" quando ainda era adolescente e mais tarde reaproveitou a ideia sobre o monstro sem face em sua novela mais longa "The Dream Quest of Unknown Kadath". Os Noitesguios também fazem uma aparição em "The High House in the Mists", embora a a presença deles ao lado do Deus Ancestral Nodens seja mais sugerida do que mostrada.

A respeito dos Nightgaunts, Lovecraft escreveu a um colega de correspondência: 

"Quando eu tinha 6 ou 7 anos de idade eu costumava ser atormentado por um tipo peculiar de pesadelo recorrente no qual uma raça monstruosa de entidades voadoras (chamados nightgaunts - não sei de onde tirei o nome!) costumava me sequestrar e me carregar para longe... sem dúvida eu me inspirei em desenhos de Doré (sobretudo Paraíso Perdido) que tanto me fascinavam, para compor a aparência da criatura.

(Pearsall, "NIGHTS-GAUNTS", The Lovecraft Lexicon, p. 301.)

Quanto a escolha do nome - "Noitesguio" concordo é um nome polêmico para nosso querido Nightgaunt, mas depois de ponderar bastante a respeito da criatura, acho que seria a tradução mais correta para se enquadrar no sentido desejado pelo criador quando decidiu chamar de "Nightgaunt" sua criatura. Ao pé da letra, "Magronoturno" talvez fosse uma escolha mais correta, mas francamente soa muito mal. E quanto mais eu ponderava, "Noitesguio" cada vez mais parecia a escolha acertada.

3 comentários:

  1. Muito bom. Estou fundamentando uma campanha inteira no Dark Age Cthulhu, usando o sistema Pathfinder. Porém o carro chefe da campanha são os Elder Thing e não encontro material sobre eles no blog.
    Seria genial um post sobre eles.

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  2. Ótimo texto. Eles estão na mitologia do cenário que es5ou criando em D&D e pretendo usá-los em minha campanha de Call of Cthulhu.

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  3. Achei essas criaturas mórbidas, porém fascinantes.

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